Silvia Federici em seu livro “Calibã e a bruxa” estuda por qual razão a execução de centenas de milhares de “bruxas” no começo da era moderna coincidiu com o período de construção do capitalismo. Na visão da autora o genocídio perpetrado pela “caça às bruxas” teve como objetivo a destruição do controle que as mulheres haviam exercido sobre sua função reprodutiva, o que foi base para o desenvolvimento de um regime patriarcal cada vez mais opressor.
Além disso, a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompanharam o surgimento do capitalismo. Por meio da crise demográfica dos séculos XVI e XVII, das políticas de terra e do trabalho da era mercantilista, Federici demonstra que a perseguição às bruxas se tornou um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno.
No Brasil e no mundo observa-se como crescentes os discursos de ódio direcionados às mulheres políticas em cargos públicos. A tentativa de as mulheres deixarem suas funções meramente reprodutivas e se posicionarem politicamente é mal vista pela sociedade patriarcal que não aceita a presença de pessoas que podem abalar a herança do capitalismo que afasta as mulheres de posições políticas.
Assédios, violências físicas, ofensas… As estratégias de afastamento das mulheres dos palanques políticos e da representatividade no Estado Democrático de Direito são compostas por diversas táticas que reforçam o machismo estrutural das diferentes sociedades pelo mundo.
A plataforma The Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED) apresenta um painel de controle que mapeia as situações de violência política nos diferentes continentes. A plataforma traz dados que mostram que a violência física contra mulheres na política está aumentando, o que cria obstáculos à participação das mulheres em processos políticos.
Um relatório da ACLED publicado no ano de 2021 constatou o aumento da violência física contra mulheres em praticamente todas as áreas de cobertura da plataforma, especialmente na África, Ásia Central, Cáucaso, Europa, América Latina, Oriente Médio, Sul da Ásia e Sudeste Asiático. De acordo com o relatório, desde 2020 alguns dos países mais violentos com as mulheres na política são: México, Colômbia, China, Brasil, Burundi, Mianmar, Afeganistão, Filipinas e Cuba.
No Brasil, o caso mais emblemático e ainda sem solução da justiça foi a morte da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, em 14 de março de 2018. Uma mulher negra, periférica e homossexual teve o veículo atingido por 13 tiros que não somente a mataram, como também o motorista Anderson Pedro Gomes.
Em 04 de agosto de 2021 foi aprovada a lei 14.192 que estabelece normas para “prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, nos espaços e atividades relacionados ao exercício de seus direitos políticos e de suas funções públicas, e para a assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais e dispõe sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral”.
Apenas um mês e meio depois de a lei sancionada, a senadora Simone Tebet (MDB-MS) foi chamada de descontrolada pelo ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário. O ministro tentou descredibilizar a fala da senadora afirmando que ela deveria ler novamente o processo e proferiu a ofensa.
O atual presidente da República, Jair Bolsonaro, quando era deputado, em 2014, direcionou à Deputada Federal, Maria do Rosário (PT-RS) falas machistas e ofensivas. Jair Bolsonaro afirmou que não estupraria a deputada “porque ela não merece”. A associação do estupro a um “prêmio às mulheres ‘bonitas’” fica evidente na frase de Bolsonaro.
Em 2020 a deputada Isa Penna (PSOL) foi vítima de assédio sexual durante uma sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). O deputado Fernando Cury (Cidadania) levou a mão ao seio da deputada abordando-a por trás e mesmo quando a deputada reagiu e o afastou, Fernando Cury insistiu e tentou novamente contato físico, o crime aconteceu na frente do presidente da Assembleia e, após análise do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Alesp, Fernando Cury foi acusado de importunação sexual com afastamento de seis meses sem salário.
Em 2021, a ONU Mulheres publicou um guia de orientação que oferece assessoria técnica sobre como apoiar os Estados-Membros para que eles enfrentem a violência contra as mulheres na política. O guia define que a violência contra as mulheres na política é uma violência de gênero e que qualquer ato ou ameaça de violência física, sexual ou psicológica que impeça a mulher de exercer ou realizar seus direitos políticos e uma série de outros direitos humanos.
Na definição sobre as maneiras específicas de tipos de violência, o guia inclui, mas deixa claro que não se limita, a violência física, o que inclui assassinatos, sequestros, espancamentos com a intenção de forçar a mulher a renunciar ou se retirar da vida política. A violência sexual, que inclui assédio, avanços indesejados, agressão sexual, estupro, ameaças sexualizadas, alterações pornográficas ou sexualizadas, imagens destinadas a questionar publicamente as mulheres, suas competências ou envergonhá-las. A violência psicológica, o que inclui ameaças, assassinato, perseguição, abuso online, bem como violência econômica, como negação de salário ou política de financiamento, roubo de propriedade ou danos (ONU, 2021:5, tradução própria).
Desinformação de gênero
Os crescentes discursos de ódio vêm atingindo mulheres políticas em diversos cargos públicos. Suportadas pela distribuição de desinformação e fake news, os ataques direcionados às mulheres se relacionam frequentemente a estereótipos.
Em novembro de 2020, Manuela D’Ávila, candidata à prefeitura de Porto Alegre à época, foi alvo de um ataque vindo do candidato Rodrigo Maroni (Pros). Ao chamá-la de “patricinha mimada” que “poderia estar comprando bolsa no shopping”, o autor do ato machista ligou a candidata ao estereótipo da mulher consumidora, vazia e que não deveria ocupar um cargo público. Maroni completou dizendo que se fosse abrir a boca “não acabaria com a carreira, mas com tua vida”. Na ocasião, apenas a deputada Fernanda Melchiona (PSOL) se pronunciou acusando Maroni de machismo.
A desinformação de gênero é uma informação manipulada em que armam estereótipos de gênero para fins políticos, econômicos ou sociais. Isso também inclui falsas imagens sexuais com abusos contra as mulheres. Ellen Judson (2021) publicou um artigo sobre as seis razões pelas quais as liberais democracias precisam responder a essas ameaças, são elas: a desinformação de gênero é uma arma, trata-se de ameaças individuais, ameaçam também o exercício da democracia, a segurança e os direitos humanos.
A desinformação amplia a existência de estereótipos e preconceitos, é um conceito difícil de identificar em peças individuais tanto para observadores humanos quanto para máquinas, haja vista que esse tipo específico pode parecer uma desinformação tradicional. Sobre esse ponto, Judson define que as bases da desinformação de gênero são estereótipos e julgamentos sociais existentes sobre atributos ou comportamentos de gênero “apropriados” e que podem não soar como falsos. Informações verdadeiras sendo apresentadas ou manipuladas de forma enganosa, rumores improváveis ou julgamentos de valor.
Em março de 2020 uma empresa petroleira canadense chamada X-Site Energy Service assumiu ser de sua autoria uma campanha contra a ativista ambiental sueca Greta Thunberg, que no momento tinha apenas 17 anos de idade. A imagem utilizou o nome de Greta e trouxe um desenho de uma menina nua e em posição sexual enquanto duas mãos a puxavam pelas tranças.
No Brasil, grande parte desses ataques violentos ainda são direcionados às mulheres negras, lésbicas e mulheres que não são cisgênero. A vereadora trans Isabelly Carvalho (PT) de Limeira registrou boletim de ocorrência no dia 11 de fevereiro deste ano após sofrer ataques transfóbicos nas redes sociais. A ativista Erika Hilton (PSOL), negra, também trans e vereadora da cidade de São Paulo é constantemente agredida por mensagens privada e nas redes sociais. Os criminosos chegaram a ameaçar incendiar a sua casa, o seu corpo e a chamaram de “satanás do inferno”.
Em 2015 a campanha da direita brasileira contra a Presidenta Dilma Rousseff foi repleta de misoginia, objetificação, sexualização e comparações de cunho sexual com a Marcela Temer, esposa de seu vice, Michel Temer. Memes que a colocavam com as pernas abertas em automóveis no local em que a gasolina seria inserida competiram espaço até mesmo com a capa da Revista Isto É que sob o título “as explosões nervosas da presidente”, replicou o padrão machista e misógino de colocar as mulheres como desequilibradas. Todas elas, maneiras de desqualificar a trajetória intelectual e política da presidente do país.
Em agosto de 2019 um internauta postou uma foto de Bolsonaro com a primeira-dama, até então com 37 anos de idade. A imagem, que era uma montagem com Macron e Brigitte, à época com 66 anos, continha a frase: “entende agora porque Macron persegue Bolsonaro?”. O próprio Jair Bolsonaro reagiu ao comentário dizendo “não humilha, cara kkkkkk”.
O número de postagens nas redes sociais com memes e desinformações é estratosférico. Clickbaits, mentiras, fake news e histórias fabricadas associadas à misoginia com as protagonistas políticas no mundo não são novidades e reforçam a tentativa machista de afastar as mulheres das lutas pelo Estado Democrático de Direito.
Enquanto os inquisidores utilizavam torturas físicas nos séculos XVI e XVII os homens (e algumas vezes mulheres) da política brasileira usam a desinformação para alimentar discursos de ódio, o assédio e outras formas de acuar as mulheres para que não ocupem cargos públicos.
Ao mesmo tempo, há poucas diferenças entre os pensamentos da idade moderna de que seria por meio das torturas e métodos de confissão que haveria a salvação das mulheres que se desviaram dos dogmas, hoje é pela desinformação, pelas ameaças, pela morte e tortura psicológica que são geradas situações de medo pelas mulheres políticas brasileiras.
O conservadorismo, as leis “santas” e o patriarcado continuam permeando os dois períodos. A única diferença é que agora a perseguição é mediada por um código binário, bits, bytes, cliques, likes e pela digitalização das ofensas contra as vítimas. Esse é o tempo da inquisição digital.
Será que cabe, no campo da comunicação, o nascimento de um jornalismo feminista para dar conta dos assédios sexuais e morais, direitos reprodutivos, métodos contraceptivos, discussões sobre aborto, maternidade, violência doméstica, feminicídio e outras tantas formas de ataques às mulheres na política ou fora dela?
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Notas:
Federici, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva, 2017. The Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED). Disponível aqui.
LEI 14.192. Disponível aqui.
ONU Mulheres. Guidance Note. Preventing violence against women in politics. Disponível aqui.
JUDSON, Ellen. Gendered Disinformation: 6 reasons why liberal democracies need respond threat. 2021. Disponível aqui.
BARBOSA, Karina Gomes e VARÃO, Rafiza. Erro, dúvida e jornalismo generificado: um olhar sobre a cobertura de estupro a partir da reportagem “A rape on campus”. Disponível aqui:
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Nadini de Almeida Lopes é Doutora e Mestra pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), doutorado em Co-tutela com a Faculdade de Letras da Universidade do Porto pelo Programa Doutoral em Informação e Comunicação, jornalista e professora da pós-graduação da Belas Artes. Membro do grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade do Instituto de Estudos Avançados da USP