Não dá para separar os bons dos maus neste processo que o Departamento de Justiça (DoJ) dos Estados Unidos acusa a Google de práticas monopolistas no licenciamento do seu sistema de buscas a outras empresas como a Apple. Isto acontece porque a iniciativa governamental surge às vésperas de eleições presidenciais e é apoiada por empresas e meios de comunicação que temem o vertiginoso crescimento não só da Google, mas das outras quatro maiores empresas de tecnologia do mundo: Amazon, Facebook e Microsoft, além da já mencionada Apple.
Por seu lado, o chamado Grupo das Cinco Grandes (Big Five Group no jargão norte-americano) não esconde o seu objetivo expansionista, alimentado pela corrida frenética por inovações, usando como matéria prima informações e a atenção fornecidas gratuitamente por quase três bilhões de usuários da internet em todo o mundo. As Cinco Grandes da era digital tiveram, conjuntamente, em 2019 uma receita bruta estimada em 899,2 bilhões de dólares, um lucro líquido de US$ 158,8 bilhões e possuem um valor de mercado avaliado em 6,4 trilhões de dólares.
Nesta queda de braços entre o lobby do establishment político/financeiro/empresarial e a nova elite tecnológica não há o que os norte-americanos batizaram de Good Guys (Bons Garotos) porque a acusação de práticas monopolistas levantada contra a Google é claramente apoiada por setores econômicos que também já foram acusados de ignorar o princípio da livre concorrência.
O que na verdade está em jogo é uma batalha política, jurídica e financeira onde o establishment dos Estados Unidos tenta controlar o enorme crescimento das empresas de tecnologia de ponta que ameaça a supremacia, e em alguns casos, a própria sobrevivência de corporações tradicionais que enfrentam uma traumática adaptação às novas condições impostas pela chegada da era digital.
Não dá para apostar num vencedor, pelo menos a curto prazo, porque as empresas de tecnologia têm a seu favor a irreversível digitalização da vida contemporânea, logo têm um faturamento garantido. Mas não têm o controle dos centros políticos, financeiros e empresariais onde são tomadas as grandes decisões nacionais. Já os grupos tradicionais sabem que não podem mais frear o avanço da tecnologia, o que significa perder posições nos negócios e na política, mas ainda têm força institucional suficiente para arrancar concessões dos tecnófilos de Silicon Valley, a meca da nova era digital.
Uma luta de gigantes
É um confronto de gigantes onde um lado tenta ganhar tempo no esforço para conciliar a herança analógico/mecânica ao novo ambiente cibernético, enquanto o outro aproveita a volúpia por inovações para conquistar posições chaves na economia. A previsão é de que o Big Five Group continue avançando em matéria de poderio financeiro às custas das dificuldades enfrentadas pelos segmentos tradicionais na indústria, comércio e finanças.
Mas terá que negociar em questões pontuais como é o caso atual do processo por práticas monopolistas. Trata-se de uma questão juridicamente complexa porque a legislação americana é vaga no que se refere a violações da livre concorrência. A Microsoft já foi punida em 1997 pelo DoJ, porque obrigou outras empresas a usarem o navegador Explorer sob pena de não poderem usar o sistema operacional Windows. Mas o caso da Google é diferente e não tem enquadramento legal claro, porque a empresa paga para o seu sistema de buscas ser usado nos produtos da Apple. A mesma Google responde a três processos por violação da livre concorrência nos países da União Europeia, envolvendo uma multa de oito bilhões de Euros (cerca de 53 bilhões de reais).
Esta é uma das muitas questões envolvidas na transição do paradigma analógico nas relações econômicas, políticas, sociais e culturais para um modelo baseado em práticas, normas e valores baseados na realidade digital. Estamos apenas no começo desta transição que implica muitas incertezas e inseguranças dada a natureza exploratória do caminho rumo à digitalização. Sempre que ocorreram mudanças de paradigmas globais, ao longo da história humana, as incertezas geraram conflitos nem sempre pacíficos. A torcida de todos nós é que apareçam “good guys” capazes de conciliar o velho e o novo nesta transição de modelos.
Publicado originalmente na plataforma Medium.
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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.