Publicado originalmente no site objETHOS.
Os códigos de ética jornalística pelo mundo são variações de contextos e especialmente das culturas, mas é notável que, em maior ou menor escala, eles estejam intimamente ligados à Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento de 1948 considerado um marco para a pacificação social após um turbulento período de guerras. Talvez por isso, estudos de caráter mais normativo assegurem ao jornalismo uma função de auxiliar na condução dessa paz social por meio da informação.
O jornal Notícias do Dia, que circula na grande Florianópolis, distorceu essa lógica na edição de 28 de maio ao manchetear que “SC [Santa Catarina] tem mais armas e menos violência”. A frase projeta uma relação de causa e efeito capaz de estimular uma população a viver em guerra, já que indica que o volume de armas está estatisticamente relacionado aos índices de contenção da violência.
A reportagem segue o mesmo tom, mas já no lead fica claro que o objetivo da narrativa é convencer o leitor de que “a facilitação do porte e da posse de armas não está relacionada ao aumento da criminalidade”. Ou seja, busca-se, na verdade, derrubar o argumento expresso no debate público de que o aumento de armas significa o aumento da violência.
Já no segundo parágrafo, a reportagem convoca um especialista a produzir efeitos de verdade ao seu argumento. A fonte afirma que o decreto de Jair Bolsonaro sobre posse e porte de armas é um avanço “gigantesco no respeito ao direito de defesa do cidadão”. Depois, o repórter retoma a narrativa alegando que o decreto tem como objetivo “desburocratizar o acesso às armas”. Em uma retranca, outra fonte traz ponderações, alegando que há fatores diversos que incidem nos índices de violência, tais como “questões sociais e econômicas ou mesmo o tráfico de drogas”.
Para pensar sobre a força dos discursos e como seus efeitos podem ser conduzidos a partir daquilo que os veículos de comunicação pretendem, é possível fazer o exercício oposto e projetar uma manchete alternativa a partir das mesmas informações, valorizando o contraponto exposto no texto secundário. Ao optar por usar como efeito de verdade a fala de um especialista a favor do decreto e das armas, o jornal se posiciona e dá força a argumentos falaciosos, que distorcem a realidade a partir da percepção de que armas representam o fim da violência.
Arma da desinformação?
No editorial da mesma edição, o jornal Notícias do Dia chama o decreto de Bolsonaro de “quebra de paradigma”. “Nosso estado é um bom exemplo que contraria a tese de quem defende uma população desarmada por conta de um possível aumento de criminalidade”, assinala. O texto ainda fala em “acabar com a hipocrisia e a ingenuidade de muitos políticos de esquerda”.
A retórica distorce a realidade e cria um estado paralelo. Ao reforçar o argumento da reportagem de que os índices de violência de Santa Catarina não são altos, apesar do grande percentual da população armada, o texto exprime uma lógica falsa, já que também é possível dizer o contrário, com o mesmo argumento – se houvesse menos armas, haveria ainda menos violência. E, se não houvesse armas, o índice de criminalidade chegaria a zero.
O Notícias do Dia pertence ao grupo RIC, afiliado à Rede Record. Desde o processo eleitoral de 2018, este tem sido o canal escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para dar entrevistas e divulgar os principais objetivos do seu mandato. Essa relação de proximidade e entusiasmo também se traduz em cifras: até abril de 2019, o governo havia despejado mais de R$ 10 milhões na Record, que ultrapassou a Rede Globo no quesito “gasto com publicidade”.
O mesmo jornal se notabilizou, na semana dos protestos contra os cortes na educação anunciados pelo governo, por produzir notícias distorcidas sobre a Universidade Federal de Santa Catarina, uma das instituições a ter bolsas cortadas e verbas congeladas. Sua inclinação editorial está cada vez mais clara: o jornal está se transformando em um agente político pró-Bolsonaro.
A narrativa sobre armamento em Santa Catarina fica ainda mais irreal quando comparada com a reportagem do principal concorrente do ND, o Diário Catarinense. Em texto veiculado no dia 14 de maio com o título “Santa Catarina tem 10 armas registradas por dia em 2019”, desvia-se das interpretações sobre causa e consequência, apostando-se em um debate sobre as possíveis razões para o estado estar na quarta posição entre os que mais registram armas.
Jornalismo, debate público e direitos humanos
O debate sobre armamento está na agenda da mídia porque está na agenda política – logo, é natural que ocupe páginas de jornais e que esteja na televisão, na rádio e nas redes sociais. Reportagens sobre isso podem e devem ser feitas, desde que cumpram seu papel de esclarecer e de organizar o cotidiano a partir de argumentos racionais. O Notícias do Dia escapa dessa racionalidade ao gerar uma ilusão de causa e consequência em um assunto bastante complexo, digno de estudos e problematizações no âmbito da sociologia e da antropologia.
Para além disso, o diário também se afasta dos princípios do código de ética dos jornalistas, que no seu artigo 9 destaca o dever do profissional de “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem”. Embora a declaração não fale em armas, tampouco em violência, seu contexto antibelicista está claro. Afinal, não há como se pensar em paz em uma sociedade regida por armas.
Boas reportagens sobre o assunto estão em circulação na mídia, o que demonstra que o tratamento dado à informação pelo Notícias do Dia não é o hegemônico. A BBC, por exemplo, explicou por que o decreto pode facilitar a vida do crime organizado. A Agência Lupa tratou de desmentir o argumento de que Santa Catarina tem índices de violência menores por conta do porte de arma. Em sua cobertura factual, a Folha de S.Paulo tem dado amplo espaço à diversidade de argumentos que questionam o decreto de Bolsonaro. Os materiais procuram diversificar a cobertura, o que, no geral, é uma aposta segura diante de um tema complexo, capaz de provocar consequências diretas na vida dos cidadãos.
Os índices de criminalidade em Santa Catarina não estão relacionados ao porte de arma – e, ainda que estivessem, seria impossível comprovar este argumento. Ao investir nessa relação de causa e efeito, o jornal Notícias do Dia mentiu aos seus leitores, afastando-se do seu compromisso de informar e contribuir com o debate público e transformando-se em um panfleto de propaganda política pró-Bolsonaro.
***
Amanda Miranda é jornalista, doutora em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pós-doutoranda na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).