Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Observatórios da imprensa como meta fact checking de notícias

Publicado originalmente pelo objETHOS.

Lição de anatomia do Dr. Tulp (Rembrandt). Na proposta de Castilho, os observatórios não ficariam só olhando. (Foto: Reprodução)

No momento, dois fenômenos ganham relevância no campo da observação crítica da imprensa: a redefinição dos processos e objetivos dos observatórios, paralelamente ao crescimento da onipresença das fake news. O objetivo deste texto é explorar a possibilidade dos observatórios da mídia também passarem a exercer uma checagem dos processos de verificação de credibilidade de notícias, executados por veículos de comunicação e grupos de pesquisas. Noutras palavras, um meta fact checking, ou checagem da checagem de notícias.

A consolidação do processo de digitalização e a globalização da comunicação jornalística via internet estão levando ao limite a capacidade do jornalismo convencional atender às demandas de produção, processamento e disseminação de notícias. Além das TICs terem precipitado uma defasagem no modelo de negócios da imprensa tradicional, as redes sociais passaram a ocupar um espaço cada vez maior no fluxo de circulação de informações no mundo inteiro.

Esta dupla pressão sobre o jornalismo, uma limitando a capacidade de atendimento empresarial da demanda de notícias, e outra ampliando esta mesma demanda por meio de uma vertiginosa inclusão de novos leitores, ouvintes, telespectadores e internautas, levam a profissão à necessidade de uma revisão radical de suas rotinas, normas e valores. O maior problema é que esta necessidade surge justo no momento em que são cada vez maiores os obstáculos materiais para viabilizar uma reflexão sobre os rumos da atividade jornalística no mundo inteiro.

As empresas jornalísticas mal conseguem tempo e recursos para buscar sua sobrevivência enquanto as universidades e instituições de pesquisas sofrem pressões financeiras de todos os tipos, o que acaba reforçando a resistência à mudança e a busca de novos paradigmas.

É neste contexto que estão inseridos os observatórios da imprensa, instituições que conquistaram uma grande credibilidade fruto do monitoramento crítico da mídia nos tempos pré-internet, quando a concentração da mídia em poucas empresas permitia um mínimo de acompanhamento sistemático dos conteúdos jornalísticos publicados. No entanto, as mudanças no ambiente midiático, provocadas pelas novas tecnologias, geraram incertezas generalizadas na imprensa, colocando os observatórios diante de um dilema crucial: a crise valorizou o papel do monitoramento crítico, mas, ao mesmo tempo, criou dificuldades ainda maiores para que os observatórios cumpram sua função.

Tanto o exercício cotidiano do jornalismo em ambiente digital como a performance dos observatórios foram drasticamente afetados pela explosão do fenômeno das notícias falsas, responsáveis pelo agravamento da crise de credibilidade pública na imprensa e no jornalismo. Tentando neutralizar o descrédito, mais de 150 projetos de combate às fake news foram lançados em pelo menos 40 países diferentes, mas o que foi apresentado como uma tábua de salvação acabou também sendo contaminado pelo vírus da dúvida, quando políticos e movimentos ideológicos politizaram o combate à disseminação de notícias falsas.

O dilema da subjetividade na checagem

Com base em textos como o publicado pela organização não governamental norte-americana Ballotpedia (enciclopédia virtual da política norte-americana) e nos dados incluídos na tese de doutorado de Lucas Graves (Deciding what’s true: Fact checking journalism and the new ecology of news), é possível concluir que o processo de checagem da veracidade de notícias usado pelas principais organizações de fact checking dos Estados Unidos apoia-se em dados objetivos e em escolhas com graus variáveis de subjetividade. As três etapas mais importantes do processo de checagem de notícias são: a seleção do material a ser verificado; os procedimentos metodológicos usados na checagem e a avaliação dos níveis de credibilidade.

Nestas três etapas, duas delas, seleção e avaliação, embutem um considerável volume de ações marcadas pela subjetividade imanente a cada ator ou agente envolvido no processo. Qualquer notícia, reportagem, fotografia ou filmagem jornalística é fruto da observação de um jornalista ou profissional da comunicação. Logo, está condicionada pela experiência, grau de informação, história pessoal, estado de espírito e contexto do ambiente onde o profissional desenvolve a sua atividade. Estes elementos influenciam o conteúdo do produto informativo final.

A International Fact Checking Network (Rede Internacional de Checagem de Fatos Jornalísticos), uma organização vinculada ao Instituto Poynter, dos Estados Unidos, criou um código de princípios para os seus 61 associados. O código prevê cinco compromissos do associado: ausência de vínculo político partidário, transparência de fontes consultadas, identificação clara dos financiadores, metodologia transparente e compromisso com a correção de eventuais erros. A rede não exige um padrão único em matéria de procedimentos metodológicos e cada associado pode escolher o seu.

Uma análise superficial dos procedimentos adotados por três organizações internacionais e duas nacionais de checagem de fatos jornalísticos mostrou que não há uma unanimidade na metodologia seguida. O projeto brasileiro Aos Fatos segue um procedimento baseado em sete etapas para avaliar uma notícia, cuja confiabilidade é classificada conforme sete categorias. Já o projeto Fact Check, do Centro de Políticas Públicas Annenberg, da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, adota apenas cinco etapas no processo de checagem. Uma característica marcante do projeto do Centro de Políticas Públicas é a importância dada à qualidade dos informes sobre notícias monitoradas. Cada informe, antes de ser divulgado, passa pelas mãos de quatro revisores que analisam desde o critério de seleção da notícia investigada, indo até a checagem da checagem dos fatos ou dados analisados.

O site Lupa, o pioneiro em fact checking no Brasil, se inspirou no argentino Chequeado, para adotar um procedimento metodológico formado por oito etapas durante as quais os pesquisadores investigam notícias de fontes oficiais em destaque na agenda da imprensa e que apresentem algum grau de incerteza. O projeto Lupa também pesquisa fonte não-oficiais, o chamado debunking, usando instrumentos desenvolvidos pela rede Facebook, cujo sistema contempla nove etapas diferentes na verificação de informações veiculadas em redes sociais.

As incertezas da checagem

A complexidade do exercício da checagem de fatos jornalísticos na imprensa norte-americana levou o site de informações e análises políticas Real Clear Politics a desenvolver a única experiência que se aproxima daquilo que poderia ser definido como meta fact checking. O projeto RCP Fact Check Review usa avaliações de notícias produzidas por seis organizações de checagem, das quais duas amostras são escolhidas para comparação de métodos e resultados.

O Instituto Reynolds de Jornalismo, da Universidade Missouri, nos Estados Unidos, fez um estudo envolvendo três dos principais institutos de checagem de fatos do país e concluiu que o processo de avaliação de credibilidade é mais complicado e subjetivo do que seus pesquisadores imaginavam antes de iniciar o projeto. A principal constatação foi a de que os resultados sobre um mesmo dado, declaração ou evento podem variar conforme o método adotado, contrariando a expectativa de grande parte do público que deseja resultados definitivos.

Para os checadores, a mais eficiente forma de reduzir o índice de subjetividade em produtos jornalísticos é confrontá-los com outras percepções diferentes, mas nem isto é capaz de gerar certezas ou respostas tipo certo ou errado. Os próprios institutos reconhecem esta dificuldade porque adotam um sistema intermediário entre verdade e mentira criando categorias como duvidoso, incompleto, exagerado ou contraditório.

O reconhecimento de que a análise crítica comparativa da checagem de notícias é o melhor caminho para reduzir a subjetividade dos resultados confere aos observatórios da imprensa um novo e relevante papel na mídia contemporânea. Os próprios institutos e projetos de fact checking admitem a importância da meta checagem e falta agora a iniciativa dos observatórios de preencher esta lacuna.

A importância crescente da checagem de informações publicadas na imprensa e redes sociais amplia, consequentemente, a preocupação com redução do índice de subjetividade imanente em qualquer análise crítica de notícias. Isto só será possível com o desenvolvimento de parâmetros para orientar e problematizar a meta checagem de conteúdos jornalísticos, especialmente no que se refere ao problema da subjetividade.

Uma preocupação como esta é básica para que os institutos de checagem possam ter elementos para analisar criticamente os seus processos de checagem.

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Carlos Castilho é Pesquisador associado do objETHOS, com pós-doutorado no PPGJOR.