Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa gaúcha e o agosto da Legalidade

(Foto: Arquivo pessoal)

O ano de 2024 marcou os 60 anos do golpe civil-militar. Essa triste efeméride também ressalta um momento que precisa ser evocado pela sua importância política e social na historiografia do país, muito em razão de já ressaltar o interesse de representações conservadoras ambicionarem a queda do governo democrático de João Goulart.

Esse marco historiográfico é a Campanha da Legalidade de agosto de 1961. A ação foi um dos principais levantes de resistência pela democracia brasileira e contou com forte apoio dos veículos de imprensa, em especial o rádio. Tal mobilização possibilitou que o país adiasse a ditadura por três anos. Ainda hoje, a “Campanha da Legalidade”, liderada pelo então governador do estado, Leonel Brizola, ainda pauta estudos diversos em áreas como a do jornalismo.

Em relação a este artigo, em que se destaca não só a participação efetiva dos meios de comunicação – como fomentadores de uma resistência democrática à tentativa de golpe –, pode-se também ampliar o escopo da verificação historiográfica da Campanha da Legalidade, a partir do entendimento que as forças militares da região Sul apoiaram a defesa da posse do presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. No entanto, em 1964 o discurso mudaria, ao enfatizar o apoio à ilegalidade e à deposição de João Goulart.

A pesquisa sobre um tema político como o da resistência ao golpe, a partir da consulta a veículos de comunicação da época analisada favorece a obtenção de pistas da relação da imprensa como produtora de sentidos ideológicos para a sociedade. Sob esse caráter de propagador de um posicionamento ideológico, a imprensa radiofônica e escrita no Rio Grande do Sul provocou um engajamento da população a resistir ao golpe, tendo como suporte o apoio dos militares gaúchos.

Conforme Konrad e Lameira (2011), esse movimento político-social só conseguiu êxito em barrar, naquele momento, a ditadura, pela união do III Exército, com oficiais militares de outras regiões do país, mobilizando também a população gaúcha a aderir à causa. Em entrevista feita por este autor, o jornalista gaúcho Flávio Tavares – testemunha ocular dos acontecimentos que ocorriam ao longo do final de agosto de 1961, em especial pela sua cobertura junto ao Palácio Piratini, em Porto Alegre –, destaca que tão logo o governador Leonel Brizola compreendeu o movimento de impedir Goulart de tomar posse, engendrada por militares e políticos do centro do país.

Dessa forma, pode-se atentar para iniciativas como a do então governador, que sugeriu ao extinto jornal Última Hora uma edição extra no domingo, 27 de agosto, para denunciar o golpe. “Ele sabia que não contava com os dois grandes jornais dominicais daquela época, o Correio do Povo e o Diário de Notícias” (E SILVA, 2011, p. 12). Conforme Flávio Tavares, os veículos de comunicação foram decisivos para que se alertasse à população os interesses golpistas de militares do centro do país.

[…] o papel da Última Hora foi decisivo, pois denuncia o golpe de Estado e convoca a população a resistir em nome da defesa da Constituição e da ordem. O jornal denunciou o delito, o crime que significava a decisão dos ministros militares de não permitir a posse do vice-presidente João Goulart. […] Todos os jornalistas, até os que vieram dos Estados Unidos e da Europa, voluntariamente abraçaram a causa da Legalidade. Queriam armas também, queriam lutar. Brizola foi o grande comandante naqueles dias e o rádio foi o grande instrumento de mobilização. A participação popular nos emocionava a todos nós e nos fazia participantes de tudo. […] Brizola sabia que se o povo fosse informado sobre o que ocorria, poderia integrar-se à resistência. Mais do que tudo, Brizola soube tocar nos brios de todos nós gaúchos, apelando à nossa tradição de honradez e de independência (E SILVA, 2011, p. 12-13).

Com base nesse esforço de resistência ao golpe que era engendrado, Brizola utilizou-se do espaço do Palácio Piratini para formar um bunker em que, além de centralizar as forças democráticas, pôde determinar ações como distribuir armas à população que se reunia em frente ao paço estadual; organizar uma central de comunicação; estabelecer uma cadeia de rádios para informar e mobilizar o povo gaúcho. Por ela, muitas emissoras do interior gaúcho também reproduziam o conteúdo gerado via Porto Alegre, mantendo o foco na defesa da democracia naquele final de agosto.

A partir das transmissões radiofônicas e a produção de artigos, editoriais e toda cobertura da imprensa, o governador Brizola e demais lideranças da sociedade gaúcha, passaram a urgir a necessidade de uma ação de resistência contra o golpe. Acabou que a posse de Goulart foi mantida, porém dentro de um viés parlamentarista. A manutenção de seu mandato como presidente e as prometidas reformas de base que buscaria trazer ao país seriam determinantes para uma nova resposta golpista em 1964, essa com mais força e apoio norte-americano; inclusive, sendo legitimada como “revolução democrática” pela imprensa, com exaltação de jornais da capital e do próprio interior do Rio Grande do Sul.

Pode-se entender assim que o uso dos veículos de comunicação para uma ação de cunho político é expressa em diversos exemplos ao longo da história republicana. Os meios de comunicação, como ressalta Orlandi (2004), apresentam para si uma postura de “vigilantes da sociedade”, em que a relação deles com o público receptor está baseada na forma como a linguagem é empregada. Linguagem que representa os interesses do veículo dentro de uma lógica capitalista. Para se manter em funcionamento, o jornal ou a rádio, como empresa, precisa que o sistema político e econômico ofereça garantias de atuação. Em momentos de ameaça a esse sistema, a empresa de comunicação adere às correntes do poder que poderão lhe trazer frutos e lucros.

Portanto, a adesão da imprensa gaúcha à defesa democrática em 1961, principalmente em jornais do interior gaúcho, está muito mais ligada ao que as representações de poder de suas comunidades visualizaram como fundamentais para manutenção do sistema capitalista. A instabilidade daquele agosto de 1961 poderia render mais um conflito violento na história do Brasil, o que, certamente, também traria impactos para a economia.

Um exemplo está na série de manchetes, editorias e artigos publicados no jornal Correio do Sul, de Bagé, na região da Campanha gaúcha, naquele contexto. O jornal historicamente ligado ao Partido Liberal (e com vínculos com setores como o militar e o agropecuário) posicionou-se contrário ao golpe contra Goulart. Ele reafirmava a necessidade de priorizar o sentido de “segurança” à defesa da Constituição e da Pátria. Em manchetes como “A ordem e a Constituição devem ser respeitadas”, publicada no dia 29 de agosto, o jornal repercute por diversas vezes a necessidade de respeito ao que se estabelece como ordenamento legal da carta magna, bem como reforça a necessidade de salvar a Pátria de interesses de “inimigos internos e externos”. Em nenhum momento, o impresso nomeia quem são esses adversários do Brasil.

Esse posicionamento da imprensa baseia-se em uma intenção de não discutir quais os interesses em impedir a posse de João Goulart, nem sobre o porquê de uma ação que é inconstitucional, mas apenas defende a necessidade de impedir a escalada de insegurança ao Brasil. A obrigatoriedade da posse de João Goulart era defendida pela imprensa que reproduzia as notícias da capital e do centro do Brasil mais pelos conceitos subjetivos como o “amor à Pátria” e o “necessário amor à Constituição”, bem como pelo temor de um conflito entre brasileiros.

Os posicionamentos políticos de veículos de comunicação em momentos históricos como esse são muitas vezes justificados porque a imprensa toma para si uma legitimação do poder de ser a “voz da sociedade”. Foucault (2007) destacava que o poder pode ser exercido pelas vias discursivas que existem nas microrrelações na sociedade.

Dessa forma, o discurso fundamenta mecanismos de sujeição. O jornal sofre influência das relações de poder estabelecidas pela comunidade onde opera; a partir de seus interesses econômicos ocorre a iniciativa de pautar o interesse político em relação aos rumos que devem ser tomados para as comunidades em que estão inseridos. Os discursos em rádio e jornais continham postulados discursivos que são determinados como verdades mas, de fato, são posicionamentos de uma empresa que entende a necessidade de articular sua produção de sentidos conforme o capital. Um conflito civil no Brasil não traria benesses para essas empresas. O veículo de comunicação precisa que o sistema capitalista continue funcionando em profunda harmonia; a mídia como produto precisa manter-se em atividade, portanto, é necessário que respalde as ideias de seus cotistas e das empresas que publicam anúncios; além de manter-se fiel às determinações de representações e lideranças que exercem influência econômica na sociedade.

Ou seja, por mais que jornais como o Última Hora tenha se credenciado como uma “voz pela democracia” naquele contexto de agosto de 1961, boa parte da imprensa que legitimava a posse de Goulart, sob pressupostos como o do respeito à democracia, poucos anos depois teria um posicionamento favorável à derrubada do mesmo político. A “mudança” editorial de muitas folhas gaúchas em tão pouco tempo atendia aos interesses do capital. Quando Goulart referendou a intenção de reformas de base no Brasil, a imprensa gaúcha atendeu ao clamor de setores conservadores pela queda do presidente, retomando o discurso de que a deposição atendia “ao clamor da sociedade”.

Referências bibliográficas

CORREIO DO SUL. A ordem e a Constituição devem ser respeitadas. 29 ago. 1961. Bagé: Editora Jornalística Correio do Sul, 1961.

E SILVA, Marcelo Pimenta. Jornalista Flávio Tavares e as memórias da Legalidade. Blog do Pimenta. Bagé, 22 mar. 2012. Disponível em: http://blogdejornalismo.blogspot.com/2012/03/jornalista-flavio-tavares-e-as-memorias.html. Acesso em: 18 de agosto de 2024.

FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2007.

KONRAD, Diorge Alceno; LAMEIRA, Rafael Fantinel. Campanha da Legalidade: luta de classes e golpe de estado no Rio Grande do Sul (1961-1964). Anos 90: Revista do Programa de Pós- Graduação em História, Porto Alegre, v. 18, n. 33, 2011.

ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2012.

Artigo com adequações do texto original “60 anos de Legalidade: como o jornal Correio do Sul defendeu seu posicionamento com a produção de discursos simbólicos de patriotismo”, de autoria deste autor e de Liziane Borges Fagundes, publicado originalmente em Revista Humanidades em Perspectivas, Curitiba, Vol. 3, N° 7, 2021.

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Marcelo Pimenta e Silva é jornalista, com pós-graduação em Comunicação e Marketing. Pesquisador com textos sobre história da imprensa; imprensa e política e imprensa e movimentos sociais.