Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Acesso à internet no Brasil reproduz desigualdades e exige políticas públicas

(Imagem: Foundry Co/Pixabay

Lançada no último dia 31 de outubro, a pesquisa TIC Domicílios 2024, do Comitê Gestor de Internet no Brasil (CGI.Br), trouxe realidades contrastantes sobre o acesso à internet que alertam para a profunda desigualdade digital que persiste no país.

Se, de um lado, aumentou o número de residências conectadas à grande rede ao longo das duas últimas décadas – saindo de apenas 13% dos lares urbanos em 2005 para 85% em 2024 –, por outro, a diferença no acesso e na qualidade da conexão ainda é marcante, mesmo após 20 anos. Alguns dados merecem destaque, pois escancaram a realidade de um país que ainda está distante da universalização do acesso à internet.

A disparidade já começa quando se faz um recorte de classes sociais. A internet está presente em todos os domicílios de renda mais alta (classe A). Já entre a população de baixa renda (classes D e E), o acesso chega a apenas 68% dos lares.

Negros, pobres e mulheres em desvantagem

Outro dado importante é o número de “não usuários”, que são 29 milhões em todo o país. Mais uma vez, fazendo um recorte racial e de classe, a TIC Domicílios mostra que desse total de brasileiros que não são usuários de internet, 17 milhões são negros e 16 milhões pertencem às classes de renda mais baixa (D e E).

A pesquisa revela, ainda, as disparidades em relação à qualidade desse acesso. Apenas 22% dos indivíduos com 10 anos ou mais têm “condições satisfatórias de conectividade”. Desse total, mais uma vez, a população de maior renda sai bem na frente, com 73% dos indivíduos nessa condição, enquanto nas classes D e E é de 3% a proporção dos que possuem condições adequadas para estabelecer uma boa conexão. 

No recorte de gênero, os homens são 28% e as mulheres, apenas 16% nessa situação. Entre as regiões, o Sul do país aparece com 33% dos habitantes com uma conexão satisfatória à internet; já o Nordeste, somente 11%.

Transformação nas mídias e entraves à igualdade de acesso

É notório que o acesso à internet no Brasil avançou nas últimas décadas. Prova disso são os impactos profundos causados no ecossistema das comunicações nesse início de século, aqui e no resto do mundo. Os veículos tradicionais, como a TV, amargam, ano após ano, quedas em suas receitas publicitárias e veem suas audiências migrarem para os serviços de streaming e as redes sociais, espaços, aliás, onde a oferta de conteúdo é infinitamente mais plural e diversa, sem contar as possibilidades de interação.

Mas todo esse universo de possibilidades fica apenas na promessa para cerca de um terço dos brasileiros mais pobres (classes D e E), cujos lares ainda não estão conectados, e também para a imensa maioria que desconhece uma conexão (de fato) banda larga – ou uma “conectividade satisfatória” – como diz a TIC Domicílios 2024.

Isso é relevante, uma vez que a edição anterior da TIC Domicílios já havia mostrado que 73% dos usuários de internet com 16 anos ou mais utilizaram ferramentas de governo eletrônico em 2023 nas mais diversas áreas, o que nos leva a afirmar que a administração pública se concentra, cada vez mais, na digitalização de serviços públicos à população. Ter acesso à internet, nesse contexto, deixa de ser algo supérfluo e se torna uma necessidade básica, um direito fundamental para que outros direitos sejam garantidos.

Num setor amplamente controlado por grandes empresas de telecomunicações (as conhecidas teles) – que, ao mesmo tempo, operam a infraestrutura e prestam o serviço –, se faz urgente e necessária uma presença maior do Estado brasileiro no sentido de garantir a universalização do acesso à internet. Um serviço que, embora cada vez mais essencial na sociedade, ainda é ofertado em regime privado, ou seja, sem que as operadoras tenham obrigações legais de levá-lo a todos os cantos do país (universalização) e ofertá-lo a preços acessíveis (modicidade tarifária).

Contra o abismo digital, políticas de Estado

O Brasil já experimentou uma tentativa de reduzir o abismo digital que paira sobre o país. No segundo mandato do governo Lula, em 2010, foi criado o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) (Decreto n.º 7.175/2010), cujo objetivo era promover o acesso à internet residencial em regiões onde a tecnologia ainda era carente. A iniciativa durou apenas seis anos, tendo como pilar a parceria com grandes teles para levar infraestrutura de rede aos municípios e conexão até a casa das pessoas a preços considerados “módicos”.

Organizações da sociedade civil ligadas à temática e estudiosos criticaram a iniciativa, considerada tímida e ineficiente para resolver o problema da desigualdade digital. O PNBL, na prática, não trazia impactos de âmbito estrutural no modelo vigente, já que não alterava o regime (privado) sob o qual atuam as teles na oferta de internet.

A ação governamental de destaque hoje nessa área fica por conta do GESAC (Governo Eletrônico – Serviço de Acesso ao Cidadão), que existe desde 2002. Esse programa, ao contrário do PNBL – cujo alvo era a conectividade residencial –, oferta internet via satélite a instituições públicas e comunidades vulneráveis ou distantes das grandes infraestruturas de telecomunicações. Também realiza parcerias com órgãos do governo federal, como o Ministério da Educação (MEC), que criou o Comitê Executivo da Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (Enec), em 2023, para universalizar a internet na educação básica. A estatal Telebras é a empresa responsável pelo GESAC, que está sendo ampliado este ano.

Outra oportunidade que o Brasil desperdiçou na corrida pela inclusão digital foi durante o processo de escolha do padrão de TV Digital. Em 2003, o governo Lula aprovou o decreto 4.901/2003, o qual previa uma série de ações positivas no intuito de instituir um modelo de TV que promovesse não só a democratização desse setor com a possibilidade da entrada de novos operadores, mas que também servisse de ferramenta para promover a inclusão digital, expandir a educação a distância e a democratização da informação, conforme previa o texto do decreto. Para tanto, a expectativa era criar uma tecnologia genuinamente brasileira e desenvolver uma indústria nacional da comunicação e informação com investimentos públicos em pesquisa e inovação.

No entanto, todas as expectativas foram frustradas com a aprovação de outro decreto, o 5.820/2006. Trocando em miúdos, esse novo documento jogou por terra os esforços já iniciados em prol de um padrão brasileiro e inclusivo de TV Digital que incluíam dezenas de instituições universitárias e a sociedade civil. Em vez disso, optou-se pela adoção da tecnologia japonesa (ISDB-T), que agradava a setores dominantes da radiodifusão (leia-se Rede Globo/ABERT) – pois mantinha o modelo de negócios vigente das emissoras comerciais – e prejudicava a adoção de uma TV interativa e conectada à internet.

Definitivamente, o Brasil não tem mais tempo (nem oportunidades) a perder. Estamos atravessando uma verdadeira revolução na comunicação, em que tirar proveito dos seus benefícios se tornou elemento primordial para a cidadania e o pleno desenvolvimento social, econômico e cultural do país. 

Chegou o momento de o Estado abandonar o papel de coadjuvante em relação ao mercado e atuar como protagonista, a partir de políticas públicas robustas e perenes para assegurar que 100% dos lares brasileiros, homens e mulheres, negros e brancos e pessoas de todos os níveis de escolaridades tenham – além de três refeições diárias (como gosta de afirmar o presidente da República) – acesso igualitário e de qualidade às infinitas oportunidades do meio digital.

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Vilson Vieira Junior é jornalista formado em Comunicação Social e mestre em Ciências Sociais, ambos pela UFES. Tem diversos artigos publicados no Observatório da Imprensa, Observatório do Direito à Comunicação, blog do Coletivo Intervozes na Carta Capital e na imprensa local do ES sobre políticas de comunicação, crítica de mídia e instituições participativas de Estado.