Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Quando o “telefone sem fio” do jornalismo científico reflete o mercado dos clickbaits

(Foto de Brett Jordan Pexels)

Nos idos de julho de 2022, o site Tenho Mais Discos que Amigos! (TMDQA!), um dos maiores do Brasil sobre música nacional e internacional, publicou uma notícia intitulada “Estudo mostra que pessoas mais conscientes têm menos tendência a gostar de Rage Against the Machine”. Quem conhece a banda e na época estava consciente vendo a notícia pipocar nas redes, deve tê-la achado, no mínimo, controversa.

Rage Against the Machine (RATM) é um grupo estadunidense de rap rock conhecido por suas músicas enérgicas que discutem injustiça social, corrupção, guerra, desigualdade econômica e imperialismo. Se “consciente” foi considerada pelo TMDQA! como sinônimo de pessoas preocupadas com problemas sociais, políticos e econômicos da sociedade, então essa bola passou longe. Pior: a notícia reflete um fanatismo antigo às métricas online que culminaram no jornalismo de cliques e, cada vez menos, no de fatos.

A postagem no portal brasileiro buscou divulgar os resultados da pesquisa “Universals and variations in musical preferences: a study of preferential reactions to Western music in 53 countries”, conduzida na Universidade de Cambridge e publicada no Journal of Personality and Social Psychology em 2022. O problema começa a despontar quando nos debruçamos sobre o artigo: a palavra conscious (consciente) sequer dá o ar da graça; muito menos a banda de rock e tampouco a pesquisa de Cambridge.

Em busca da universalidade musical 

O estudo procurou identificar características universais em preferências musicais, como gêneros e propriedades (timbre, volume, altura), cruzando tais preferências com traços de personalidade. Com dados de 356.649 pessoas em seis continentes, a investigação foi dividida em duas etapas: na Fase 1, 284.935 participantes de 53 países avaliaram suas preferências de gênero; na Fase 2, 71.714 pessoas de 36 países realizaram uma avaliação psicométrica de reações a categorias de música. Ambas as etapas utilizaram o teste Big Five para analisar cinco dimensões de personalidade: abertura à experiência, extroversão, agradabilidade, neuroticismo e conscienciosidade – este último referente a pessoas cuidadosas, obedientes ou diligentes.

Os resultados, apesar de limitados e enviesados, indicaram que indivíduos com maior abertura a novas experiências tendem a gostar de músicas mais sofisticadas (como jazz) e intensas (como heavy metal). Já aqueles com alta conscienciosidade preferem músicas mais simples (como country). Extrovertidos mostram preferência por gêneros contemporâneos, geralmente de culturas não acolhidas pela indústria musical estadunidense e inglesa. As correlações dos resultados sugerem baixa relação entre preferência musical e personalidade, indicando que gostos tendem a ser moldados pela exposição às músicas veiculadas por meios midiáticos e fonográficos, tratando-se de um fenômeno mais cultural do que biológico – relação do meio ao indivíduo, e não o oposto.

Segundo análise do podcast Naruhodo, o artigo indiretamente também infere que as escolhas musicais das pessoas estão enraizadas a aspectos históricos ligados à dominação política, econômica, social e cultural de países desenvolvidos sobre várias nações do mundo (imperialismo), cujas práticas expansionistas até hoje refletem na formação cultural dos países dominados, como é o caso de preferências musicais.

“Disse-me-disse” jornalístico

Mas, cadê a tal da consciência e a relação com a banda RATM? Provavelmente a notícia do TMDQA! foi resultado de um misto de pressa de publicação, busca por cliques e descuido na checagem de fatos. O autor até se preocupa em citar os pesquisadores do estudo, mas fala parcialmente de seus resultados: pessoas com traços de personalidade semelhantes tendem a gostar dos mesmos gêneros musicais. Também não se aprofunda nas questões culturais e nem leva em consideração o local de fala dos pesquisadores, o que dificulta a compreensão global da pesquisa.

Ademais, o TMDQA! se apropriou erroneamente de uma matéria do portal estadunidense Loudwire, de título “Conscientious people unlikely to enjoy Rage Against the Machine, study says”. O autor do site brasileiro traduziu conscientious (conscienciosidade) diretamente para “consciente” – deslize que distorceu os resultados do estudo e ainda levou roqueiros de plantão a ficarem encasquetados com suas consciências.

A notícia do Loudwire, por sua vez, também se baseou em uma postagem do site de ciência Study Finds, com título “Musical preferences unite personalities worldwide, study reveals” que divulga a pesquisa de Cambridge, noticiada no site da instituição. Embora RATM não figure no estudo original, a menção da banda no título da notícia do Loudwire soa como estratégia sensacionalista para surfar na visibilidade que o grupo recebia em 2022, após sua reunião de 11 anos para um show em apoio a organizações de direitos reprodutivos em Wisconsin e Illinois (EUA).

Este caso reflete como a atual dinâmica do mercado de clickbaits e notícias rápidas tem impactado a verificabilidade dos fatos no jornalismo de ciência, impulsionada, em grande parte, pelos incentivos gerados pelas mídias sociais e publicidade, que priorizam o engajamento em detrimento da precisão. E o resultado desse jornalismo voraz não poderia ser diferente: autores como os de TMDQA! compelidos à atender as tendências céleres das redes e tornando-se mais suscetíveis à promoção de desinformação – ou misinformation, informações falsas sem intenção de prejudicar.

Possíveis soluções incluem ajustes algorítmicos, iniciativas de alfabetização midiática e incentivos de verificação de fatos. O Knight Science Journalism (MIT) também possui um relatório com recomendações para melhorar e padronizar ações de checagem de fatos. O slow journalism, ou “jornalismo lento”, surge como contramovimento que prioriza a qualidade em vez da rapidez. Ele promove responsabilidade e transparência, estabelecendo diretrizes para verificação de fatos e correções, o que ajuda na confiança pública na reportagem científica e credibilidade da mídia. Talvez um jornalismo assim, mais consciente, seja o que de fato precisamos.


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Rogério Bordini é Graduado em Educação Musical e mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), possui doutorado em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e em Interação Humano-Computador pela Helmut Schmidt University. Atualmente, atua como jornalista científico no Hospital Israelita Albert Einstein e é aluno da especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor-UNICAMP).