Publicado originalmente no site objETHOS
Desde a redemocratização, nunca a liberdade de imprensa correu tanto risco como agora no Brasil. Os últimos 34 anos mostraram governos de diversos matizes políticos, mas em nenhum deles o jornalismo foi tão atacado e o exercício da profissão sofreu tantas ameaças. São insultos, anúncios de cortes de verbas publicitárias, perseguições diversas, acusações mentirosas e outras estratégias para espalhar o medo nas redações.
O governo de Jair Bolsonaro não tem nenhum compromisso para manter uma relação minimamente institucional com repórteres e veículos de comunicação. A declaração do presidente de que o jornalista Glenn Greenwald “pode pegar uma cana” e a portaria editada pelo ministro Sergio Moro para deportar “estrangeiros perigosos” são os movimentos mais recentes de um programa anti-jornalístico. Por isso, não existe nenhuma disposição para conviver com críticas e de aceitar que a imprensa tem um papel histórico de investigação e acompanhamento dos políticos. Transparência e abertura não estão no radar do Planalto, e reina entre ministros e palacianos a ideia de que podem prescindir dos meios tradicionais de informação.
Bolsonaro repete a cartilha de Donald Trump, atacando cegamente a quem considera opositor e espalhando informações insustentáveis com a má intenção de embaralhar a realidade para que ela atenda a suas conveniências. Mas alguém aí pode argumentar: cada governo deve ter a liberdade de se relacionar como quiser com a imprensa. Sim, mas é necessário que haja alguma disposição para ter algum relacionamento. Não é o caso. Ter que lidar com a imprensa não é uma escolha dos governantes. Isso faz parte do jogo, pelo menos no campo da democracia. E a democracia, vamos lembrar, é um sistema de partilha de poder, de prestação de contas.
José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer tiveram que lidar com o jornalismo. De uma forma ou de outra, todos convocaram entrevistas coletivas, foram sabatinados por repórteres e, não raro, precisaram responder por denúncias ou investigações. Não há nenhuma novidade nisso. A novidade é Bolsonaro romper por completo com regras mínimas de civilização e liturgia do cargo. Não se trata de uma questão de educação ou bom mocismo. É a lei, e todo governante exerce o poder em nome do povo e a ele deve dar satisfações. É aí que entra o jornalismo.
Não querem que você veja
Quando políticos não recebem jornalistas e não respondem ao que se pergunta, o prejudicado não está nas redações. O prejuízo atinge em cheio o cidadão comum que fica sem saber de algo que ele tem o direito de saber. É por isso que se diz que a liberdade de imprensa é uma condição essencial da democracia. Sem canais de comunicação livres para noticiar, corremos o sério risco de ter sociedades que ignorem o que se passa nos círculos de poder, o que eleva muito a possibilidade de corrupção, abuso de poder e injustiça. Sem o livre exercício profissional, jornalistas não podem denunciar malfeitos nem mostrar às pessoas o que gente poderosa anda fazendo de errado. Não é à toa que se compara o jornalismo àquela lanterna que ilumina o porão e nos revela os ratos que roem os alicerces da casa. A luz da lanterna é a nossa capacidade de ver o mal que ignoramos. Ao dissiparmos a escuridão, permitimos que a verdade se mostre.
Daí que defender a liberdade de imprensa não deveria ser uma preocupação apenas para jornalistas e donos dos meios de comunicação. Claro que ela está diretamente ligada ao trabalho deles, mas essa é uma questão que vai além do corporativismo. A escuridão do porão cega a todos…
Essa constatação ajuda a entender porque milhares de pessoas se espremeram no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no último dia 30 de julho, quando houve um ruidoso ato em defesa de Glenn Greenwald e dos jornalistas do The Intercept Brasil. O evento foi um sinal inequívoco de que muita gente anda preocupada com essa tal liberdade. Abrir mão dela pode ser o primeiro passo para perder outras liberdades.
Essencial e inegociável
A liberdade de imprensa é uma parte da liberdade de expressão, e ela se refere aos profissionais do jornalismo, buscando garantir o exercício de seus ofícios. A liberdade de expressão é mais ampla e atravessa todos os seres humanos. Ter direito a dar opiniões, discutir ideias e externar os pensamentos é uma condição consagrada no século passado, quando as sociedades se viram na obrigação de definir regras de convivência mais claras e efetivas. A ideia é que todas as pessoas tenham racionalidade para fazer isso, e que todas as ideias possam circular. A liberdade de imprensa avança um pouquinho mais, e permite que as pessoas tenham acesso a informações, a relatos dos fatos. Nesse sentido, a liberdade de imprensa ajuda a garantir o meu e o seu direito de saber das coisas.
Nessa história, quem persegue jornalistas tem um propósito claro: impedir que a informação chegue ao público. Isso é, querem evitar que você saiba das coisas. Quem faz isso não tem compromissos muito fortes com a democracia, pois está muito mais preocupado com a própria sobrevivência política. Logo, quem faz isso não está do seu lado, não é mesmo?
Por isso é que se diz que a liberdade de imprensa ajuda a garantir o direito a saber, e este é um direito que permite que conheçamos os demais direitos. Se um país não tem imprensa livre, é possível, por exemplo, que seus cidadãos não sejam bem informados dos outros direitos que têm ou de como o governo pode garanti-los. Não é um mero detalhe. É importante, estratégico e desagrada quem quer controlar a informação e não quer dar satisfação dos seus atos.
Se Jair Bolsonaro critica informes oficiais de órgãos estatais, como IBGE e Inpe, o que impedirá o presidente de amordaçá-los e distorcer seus dados? Quem pode desfazer os mal-entendidos, denunciar essas artimanhas e revelar as informações retidas? O jornalismo. Todos os meios de comunicação? Não, apenas os mais comprometidos com o interesse público e com uma tradição histórica de fiscalização dos poderes. É verdade que nem todos os veículos se enquadram nessas características, mas contar com um ambiente de liberdade de imprensa é fundamental para que os realmente comprometidos façam o esperado.
A primeira batalha do jornalismo
A atitude anti-jornalística do governo Bolsonaro contraria a história recente da República e a lei, mas não é nenhuma surpresa. Em outubro do ano passado, adverti que os resultados das eleições aumentariam os riscos para os jornalistas. Disse que Bolsonaro dispensaria coletivas e canais institucionais, que continuaria a desmentir jornalistas que o desagradavam, que incitaria suas falanges digitais. Eu disse ainda que o presidente naturalizaria a violência e que isso incentivaria a autocensura nas redações. Estamos assistindo a tudo isso, o que alimenta uma atmosfera de agressividade e desconfiança de largas camadas da sociedade.
Um mês depois, o jornalista Mario Magalhães dava como certo o embate do presidente contra o jornalismo. A dúvida era como a imprensa reagiria. Da tumultuada posse e da censura na Empresa Brasil de Comunicação (EBC) à tentativa de asfixia da lei de acesso à informação, o governo Bolsonaro foi truculento e despudorado. Tentou encharcar o noticiário com declarações escandalosas e desviantes, mentiu muito. Atacou jornalistas, principalmente as repórteres, e tentou constranger quem lhe fazia perguntas indigestas.
Profissionais e veículos não têm reagido de forma uniforme aos ataques do governo. Há quem faça vista grossa ao seu plano anti-jornalismo, mas também já é perceptível o desembarque de alguns alinhados de primeira hora. O caso mais recente é a revista Isto É, que chamou de “marcha da insensatez” os últimos movimentos do inquilino do Palácio do Planalto.
Os gestos autoritários de Bolsonaro e dos ministros Sergio Moro e Marcelo Alvaro Antonio, para citar alguns, não devem parar por aí. Só serão interrompidos pela lei ou por freios que instituições mais democráticas venham impor. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, gravou e divulgou vídeo defendendo o sigilo de fonte e a liberdade de expressão. Frisou serem garantias constitucionais. Monitorar violações à liberdade de imprensa é também velar pela democracia, manter vigília em torno dela para que se mantenha e se fortaleça.
A escalada do autoritarismo do governo Bolsonaro é a senha que o jornalismo precisa considerar. Se antes os jornalistas estavam preocupados em combater a desinformação e desbancar mentiras, a batalha primordial passa a ser outra: defender a liberdade de informar. Sem isso, o jornalismo brasileiro não poderá desmentir, informar ou esclarecer. Sem isso, sequer poderá existir como tal. Seriamente ameaçada, a liberdade de imprensa é a expressão do direito dos jornalistas a trabalharem e a exercerem sua profissão dentro de uma margem ética e responsável.
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Rogério Christofoletti é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS.