Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A subversão nas luvas de Bernie Sanders e o que elas dizem sobre nós

(Foto: Vidar Nordli-Mathisen/Unsplash)

No dia em que o mundo inteiro olhava para Washington D.C numa mistura de alívio e ansiedade, não foram os figurinos das celebridades foco das atenções e nem se ouviu âncoras em intensidade das inaugurações anteriores, delinear com meticulosidade a história deste ou daquela estilista. Decerto que a cor púrpura, usada pela Vice-Presidente Kamala Harris tenha sido clara homenagem às mulheres que fizeram história antes dela. Os dois estilistas, ambos afrodescendentes, que a vice-presidente escolheu para fazer seu guarda-roupa foram mencionados, em passant.

Nem o guarda-roupa da poderosa Pop-Star Jennifer Lopez e nem mesmo a excentricidade da cantora Lady Gaga (exceto a ironia do apresentador e comediante Steve Colbert em seu programa de fim de noite; “Ela não chegou em cima do tapete vermelho, mais vestida com ele”) foram o assunto mais comentado do Dia da Inauguração.

A “Peste Amarela” (como o ex-presidente Donald Trump era mencionado nas redes) havia deixado a capital do poder, um homem do diálogo e da reconciliação tomava posse. Kamala Harris é a primeira mulher e a primeira afrodescendente a se eleger vice. O que não faltava eram pautas temáticas para comentários, palpites e menções históricas.

O momento mais surpreendente do evento e como uma brisa de verão depois de um inverno interminável e sombrio foi o surgir na tela da TV, a figura carismática da poetisa Amanda Gorman. Ela chegou saudando o presidente e sua vice e com a postura natural de que seu lugar é ali. Hello World, foi a sua saudação nada tímida, antes de iniciar a recitação do poema de sua autoria, The Mountain we climb numa combinação instigante entre o clássico e performado na cadência das palavras, acariciando a alma estraçalhada de um povo, como nunca, dividido. Com Amanda, o quesito alívio e a dose de esperança que ela injetou para um futuro caracterizado pela inclusão, se encerrava a parte oficial, da inauguração.

Memes sem fronteiras

A imagem que mais viralizou e de forma unânime em todos os veículos de comunicação muito além das fronteiras dos EUA e independentemente de suas veias ideológicas foi a que exibia o senador Bernie Sanders isolado, sentado numa cadeira de plástico, seu rosto coberto por uma máscara e suas mãos, por luvas de tamanho XXL e modelo retrô. Qual imagem poderia expressar de melhor forma o Zeitgeist determinado por uma pandemia?

A imagem nos uniu pela simplicidade e pelo frescor, frente a um mundo complexo e uma dinâmica de acontecimentos sem pausa. Retomar o fôlego de nos permitir a diversão sobre a simplicidade e subversão do somatório de detalhes de sua postura inusitada, para dizer ao mínimo.
Em artigo veiculado na edição americana do The Intercept, a jornalista Naomi Klein indaga: “Por que milhões de pessoas, não importando seus idiomas, se conectaram com a língua que as luvas falavam? Foi um delírio pandêmico?”. Não só. Foi muito mais do que isso.
No artigo a autora ainda defende a tese que as luvas de Bernie podem ter 5 significados, entre eles, luvas em postura de braços cruzados como metáfora de um ceticismo daquilo que está para vir, luvas como um aviso, caso a administração Biden-Harris não entregue o serviço, “haverá consequências”.

O frescor do imprevisto

Mesmo com toda a dinâmica e dramaturgia meticulosamente planejadas pelXs organizadorXs, foi o acaso, a estrela do evento. Lá estava ele, o Robin Hood, do qual sonho é que todXs habitantes dos EUA tenham um plano de saúde acessível (Affordable Care Act). Ele, que tem sua zona eleitoral em Vermot, um dos estados mais ricos do país, é só uma das ironias em torno de um político sempre nadando contra a maré. Esse dia da inauguração foi o ápice de uma vida pública, resumida numa só imagem, mas que fala uma enciclopédia não somente sobre o próprio senador, mas sobre nós em 2021. A leveza de conversas de bar, zoeiras com amigos falando sobre futebol e encontros de todos os tipos. A isolação de Bernie naquela cadeira foi o nosso retrato. A cereja do bolo foram os detalhes: o envelope, a jaqueta, o sapato e sim, as gigantes luvas retrô. Rebeldia e subversão numa só imagem.

O comentarista político Brian T. Cohen, postou na sua conta do Twitter: “Será que Bernie conseguiu chegar até ao correio?”, se referindo ao envelope que o democrata carregava debaixo do braço.

Em vez de conversas e protocolos, beijinhos e Selfies, Bernie, como ele mesmo declarou, estava emocionado com a posse, “com a saída de Donald Trump de Washington” e se permitiu ser um expectador.

No dia seguinte, os memes foram ocupando as falas dos âncoras de todas as emissoras americanas e nas redes, a zoeira alcançava o seu ápice, mas a reverberação digital ainda duraria alguns dias, alinhavada de diferentes nuances.

O alívio sentido pelo mundo depois de quatro anos de sistemáticas mentiras e golpes contra as pilastras da democracia, os memes em torno de Bernie ocuparam as pautas em programas de TV. Na Alemanha o #Hashtag Bernie Sanders foi o tópico mais importante durante dois dias.

O fenômeno gráfico que se desmembrou me lembrou de quando o Brasil inteiro procurava o cantor Belchior, escondido nos confins do Uruguai, em San Gregório de Polanco, mas claro que na época o fator digitalização ainda era rústico. O rapaz latino-americano surgiu em montagem de fotos da série americana “Lost” e até em capa de disco dos Beatles.

Anos depois, com a internet madura, Bernie se tornou onipresente em todos os diferentes contextos: apareceu ao lado das meninas da série “Sex and the City”, em cenas memoráveis do cinema mundial sentado no banco da praça ao lado de “Forrest Gump”, na cabine de “Jornada das Estrelas” com Spock, ao lado do Homem Aranha e até em dose dupla no corredor do hotel assombrado de “Shining”. Para ficar perfeito, não poderia faltar a montagem em foto com a banda inglesa, The Rolling Stones, da qual integrantes se encontram na mesma faixa etária do senador democrata.

Sob a luz dos holofotes

Enquanto os ex-presidentes Barack Obama (ainda em turnê divulgando sua biografia) e Bill Clinton mostram que ainda são os mais requisitados no âmbito do network e do ver e ser visto, Bernie Sanders exibia a imagem do deslocado e/ou daquele que não faz questão de ficar sob os holofotes porque tem foco em coisas mais importantes, como a transição de poder (por muito tempo ameaçada) que acontecia ali à sua frente. Depois que foi divulgada a origem e a história em torno das luvas, da professora e do material reciclável usado para a fabricação do produto, a imagem do Underdog, do Robin Hood, do advogado dos pobres e rejeitados, chegou à perfeição da simplicidade.

A imagem do solitário numa festa de Glamour combinado com a vestimenta de uma pessoa comum, um sapato já pedindo aposentadoria, tornou o fator de identificação, o top tema nas redes sociais. A postura contrária à qualquer protocolo fez do político um amigo nosso, especialmente em momentos de distanciamento e solidão social decretados pelos desdobramentos da pandemia. Um usuário no twitter, escreveu: “Bernie, obrigada por lutar por nós”.

Em conversa com o âncora Seth Meyers, o senador foi perguntado se ele teria percebido ter se tornado o “meme do dia”. Irônico, ele responde: “De forma alguma!” e acrescenta em tom habitual de seriedade máxima; “Eu estava sendo ali tentando me aquecer e tentando prestar atenção no que estava acontecendo”.

Nas pautas do dia seguinte, foi esclarecida a história que as luvas foram feitas por uma professora que também habita no estado de Vermont. E foram um presente de consolo, quando Bernie foi derrotado no processo de nomeação para candidatura à presidência em 2016, ou seja, a história ainda exibe uma boa porção de empatia e solidariedade.

Luvas conscientes

O material usado é reciclável e a autora das luvas declarou ter ficado surpresa ao perceber que Bernie as vinha usando já durante campanha para candidato dos democratas para a presidência em 2020.

No Twitter, uma usuária escreveu; “Let’s help this woman make some business” (Vamos ajudar a promover o negócio dessa mulher). Entretanto, Jen Ellis, professora, já declarou que não tem tempo para aceitar encomendas. Mais do que isso. Ela esclareceu que essa atividade é um de um passatempo na qual ela usa malhas desgastadas e material de plástico reciclado. Nenhum outro aspecto poderia alinhar com mais coerência a trilha política de Bernie Sanders. Mais autenticidade, impossível.

Somos todos Bernie!

Nas horas pós-posse e nos dias seguintes, os memes começaram a ganhar um aspecto regional e serem incluídos em situações do dia a dia. Jake Tapper, âncora da CNN americana postou em seu tuíte uma foto de Bernie na cadeira no cantinho do estúdio. O âncora e seus colegas estavam sob o olhar sisudo de quem não está de brincadeira além de ser um rótulo de qualidade.

Na Alemanha, foi mantido o cunho político que tem a presença do democrata, por onde ele aparece com a sua postura esbanjando credibilidade, eternizadas com perfeição pelo talento do humorista americano Feraz Shere que exacerba no discurso e na mímica a retórica do democrata. (1:30 min)

Uma das montagens, exibe Bernie no centro do palco da Filarmônica da cidade de Hamburgo. O lugar não foi escolhido por acaso. Desde o início do lockdown em novembro, todos os teatros, cinemas e casas de espetáculos estão fechadas e o setor cultural passa pela sua maior crise econômica. Mas a foto também exibe a saudade de todXs nós em estarmos cercados por um ambiente cultural. Depois as imagens foram parar nas páginas de bibliotecas, fábricas, prédios.

Os portugueses não ficaram para trás. Bernie aparece sentado na calçada em frente ao Cinema São Jorge, o mais tradicional de Lisboa, na Avenida da Liberdade e que acaba de fechar suas portas desde que Portugal entrou, por um mês, em Lockdown. Também aqui, Bernie é solidário conosco espectadores e com pessoas atuantes no setor cultural.

Nem mesmo os políticos na Alemanha perderam a chance de pegar carona na seriedade expressada pela imagem de Bernie.

A imagem do senador redime um outro aspecto, esse muito mais importante do que as risadas que demos durantes dias: foi a crença de que a política pode, realmente, mudar a vida das pessoas para melhor e o senador democrata, com a sua agenda social-über e sua teimosia, é o melhor exemplo disso.

No domingo (24) em entrevista à CNN a âncora perguntou se ele estava se divertindo tanto “quanto o resto do mundo”, ele respondeu: “Estou e sem pestanejar já emendou com o aspecto social dos memes; Venderemos camisas e camisetas por todo o país e todo o dinheiro que entrar, o que eu espero que seja alguns milhões de dólares serão destinados a programas que provêm alimentação para cidadãos de baixa renda, ou seja, isso está se tornando uma coisa bacana e não só engraçada”.

 

***

Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.