O mundo atual em que a realidade se dá em pedaços e se desmancha no ar, e tudo deve ser consumido imediatamente sem pensar no passado nem se preocupar com as consequências do amanhã; também se perde o interesse em projetos duradouros capazes de melhorar a vida coletiva. E tal contexto de fluidez, de velocidade, de relações mais superficiais, de desequilíbrio entre o poder político e o mercado, dentre outras características, em que o consumo se mostra como central, foram assuntos bem explorados pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, falecido no último nove de janeiro, aos 91 anos. A discussão se insere na pós-modernidade, período que teve início no final do século 20 e vem se intensificando a cada dia, chamada por ele de “modernidade líquida”; diferente da anterior – modernidade –, em que tudo era mais seguro e sólido.
Entre tantos legados e debates, o professor emérito da universidade de Leeds deu atenção especial à política, inclusive, publicou um livro dedicado ao tema – Em busca da política. Na obra afirma que o mercado tomou o espaço da política. “Uma tendência marcante do nosso tempo é a crescente separação entre poder e política: o verdadeiro poder, capaz de determinar a extensão das opções práticas, fluí e, graças à mobilidade cada vez menos restringida, tornou-se virtualmente global, ou melhor, extraterritorial”, reflete. Já “as instituições políticas (elegíveis, representativas) continuam até aqui teimosamente locais”, ou seja, com necessidade de atuação nas comunidades e nas cidades.
Com a redução do poder de fogo da política diante do mercado, jogaram-se as decisões coletivas – segurança, saúde, educação – no colo de cada um e, desse modo, o indivíduo se encontra na dupla situação de poderes e livre do compromisso político e da política que sofre o déficit perpétuo do poder. A decadência da política, contudo, é causada e reforçada pela crise da agenda política. Isso, porque as instituições e os agentes políticos sofrem para legitimar, promover, instalar e servir um conjunto de valores e opções consistentes e coerentes capazes de beneficiar o cidadão. Essa incapacidade do poder político para disciplinar e agendar os compromissos públicos acabou sendo tudo o que o poder econômico precisava para expandir sua política de autossuficiência do mercado e do consumismo.
Para o sociólogo, a caminhada se acelera nesta direção graças à cumplicidade da maioria dos políticos, dos meios de comunicação e de uma boa parcela da intelectualidade. A qualidade constrangedora do debate político atual, a superficialidade, a banalidade, o culto às fofocas e às picuinhas e o sensacionalismo que caracteriza a cobertura midiática deste debate só contribui para acelerar a velocidade da disparada ladeira abaixo. O melhor amigo do mal, lembra Bauman, é justamente a banalidade. E a banalidade tem a rotina, o conformismo e a resignação como aliados estratégicos.
O mercado ocupa o lugar da ágora
A ágora era a grande praça em Atenas onde se debatiam as questões públicas de interesse comum para as pessoas e para as cidades. Os gregos usavam o espaço para realizar as reuniões, a fim de buscarem por meio da política o alcance do bem comum, já que a política é a ciência que tem o conhecimento como meio para ação. Entendia-se que o homem nascia para viver em sociedade e, por isso, não poderia dela se isentar, procurando demonstrar que somente na cidade-estado ele seria capaz de desenvolver todas as suas capacidades. Porque a felicidade individual deve corresponder ao bem comum e, portanto, a uma cidade feliz; caso contrário, não havia chance para o bem-estar e à felicidade. Então, sobretudo uma questão política.
Essa forma de fazer política não precisa ser imitada hoje, mas deve servir de referência a quão importante são a Política e o Estado para tratar dos assuntos de interesse geral da sociedade e proporcionar à população uma vida melhor. Os recentes massacres nos presídios do país e a violência e a insegurança nas ruas no dia a dia são exemplos que nenhuma pessoa, nem mesmo a classe mais rica economicamente, pode viver bem e em paz neste tipo de ambiente. No espaço individual, mesmo o sujeito tendo recursos para cuidar de sua segurança pessoal e de se enjaular atrás de altos portões e em casas gradeadas, não estará imune aos acontecimentos que ocorrem fora dali, na sociedade.
Não obstante, com a frequente defasagem do poder público de propor soluções coletivas, ganhou força a máxima pregada pelo mercado: faça você mesmo. Essa lógica imputou na cabeça da pessoa um poder e uma autossuficiência que ela não tem: achar soluções individuais, para problemas criados socialmente. Mas, mesmo assim, cada um deve agir por conta própria para resolver temas globais da sociedade – segurança, educação –, projetando a falsa sensação que todos os problemas coletivos são sanados pelo poder econômico e por ações individuais. Como isso não é possível, cria-se uma lógica perversa que interessa muito ao consumismo – a insatisfação e o medo – as quais mantêm impulsionado o consumo e geram grande parte do lucro para o mercado mundial, ressalta Bauman. Para o autor, a única igualdade que o mercado costuma promover coletivamente é a incerteza existencial, tanto para os vencedores como para os vencidos.
Livre das rédeas políticas e das restrições locais, a economia global produz rapidamente a sua riqueza e a concentração de renda nos setores mais abastados da sociedade. Por isso, quando mais desregulamentado e flexível as regras estiverem, mais a incerteza se instala e tanto mais o mercado global prospera. Diante do enfraquecimento da Política e da fragmentação da realidade, o polonês diz como se dá o processo. “Ato pelo qual uma sociedade destrói a si mesma para dar rédea solta a indivíduos antissociais ou pelo qual um corpo se faz em pedaços para que cada uma das suas células sobreviva separadamente, ou pelo menos que a mais dinâmica possa viver melhor por si mesma.” Ademais, fica a ideia de que já não há grandes questões para resolver, porque elas não têm utilidade na pós-modernidade, assim, liquidando as próprias ideologias e as grandes narrativas, a saber.
Preocupado com esse cenário de desequilíbrio, Bauman propõe um caminho para a saída. Ele ressalta que é preciso estabelecer uma interface entre a esfera pública e a privada, por meio da comunicação. A comunicação deve ter a função de uma espécie de cola entre as duas partes, garantindo um tráfego suave e contínuo de entendimento e de relacionamento entre eles, equilibrando as responsabilidades de cada um para com a sociedade. “Sem a ágora, nem a pólis (cidade) nem seus membros poderiam alcançar e muito menos preservar a liberdade de decidir o sentido do bem comum e o que se deveria fazer para atingi-lo”, escreve o professor. Ele acrescenta ainda que a liberdade individual só pode ser produto do trabalho coletivo, assim, garantindo o bem-estar de todos.
Privatização das ações
“A salvação espiritual foi o primeiro bem público a ser privatizado nos tempos modernos, enquanto o arrependimento e a redenção foram as primeiras atividades ritualizadas, sincronizadas e coordenadas a serem desregulamentadas. Depois desses primeiros atos de privatização e desregulamentação, seguir o caminho da salvação era decisão que cabia ao cristão fiel”. Com essas palavras Bauman se refere à reforma religiosa, que fez de cada indivíduo um sacerdote e afrouxou o controle que o clero exercia sobre todos. O sociólogo lembra ainda que aquilo foi um arrombo que destruiu a jaula de ferro para que os crentes construíssem as gaiolas que quisessem.
Outro momento decisivo citado por Bauman, que sobrepôs as vontades individuais às coletivas, ocorreu em outubro de 1983, na França. Naquela noite, um casal comum que se misturava à multidão, sem nada demais, apareceu diante das câmaras da televisão e a mulher declarou: “Meu marido sofre de ejaculação precoce”, queixando-se que nunca tinha prazer com ele. Após tal episódio, não havia mais pudor e intimidade que não pudessem ser expostas ao público. Desde à época, a mídia em geral tem dado muito espaço a casos particulares e fofocas, ao invés de trazer à agenda pública temas que de fato afetam nossa cidade e o mundo no qual vivemos.
“O ‘público’ foi despojado de seus conteúdos diferenciais e ficou sem agenda própria – não passa agora de um aglomerado de problemas e preocupações privadas”. Em outros termos, o sociólogo diz que a pauta da mídia virou uma colcha de retalhos de anseios e emoções privadas, desfilando em tela como se fossem assuntos de interesse público e afetassem a vida coletiva.
Na opinião de Bauman, o conceito de interesse público se aplica a coisas e eventos de natureza coletiva, algo que não pode ser reivindicado como assunto privado nem mesmo ficar de posse exclusiva, pois afeta o interesse social. Essa lógica foi invertida, transformando o território e as emoções particulares em suposto “interesse público”, ou como explica o autor. “Tornar público o que quer que desperte ou possa despertar curiosidade virou o cerne da ideia de uma coisa ‘ser do interesse público’. E cuidar de exibir de forma atraente o que se divulga de modo a despertar curiosidade virou a principal medida do ‘bom serviço ao interesse público’.”
Globalização e política
A globalização transcende o aspecto político e geográfico. E, com a retração da Política na definição da pauta pública, o mercado e o capital foram ocupando o terreno à proporção que a internet e a tecnologia foram avançando, logo, o centro de poder foi alterado, ou seja, o centro das decisões foi deslocado. As decisões agora já não levam em consideração o relacionamento direto com o local, com o bem-estar coletivo, mas decidem tudo segundo os interesses dos acionistas e conforme o poder de consumo do público.
O processo de globalização é central e, por se apresentar como meio de poder, deve ser considerado e refletido como estratégico para tais fins. Segundo Bauman, a chamada “crise da democracia” na era da globalização do poder deriva da crise da territorialidade do Estado nacional. Esse Estado foi proclamado como o modelo universal da coabitação humana, pela autonomia e o autogoverno. Hoje, existe uma discrepância entre o alcance global — extraterritorial — dos poderes que realmente importam para nossa vida e as políticas dos Estados, estas destinadas a confrontá-los, mas que estão confinadas às fronteiras territoriais e sem propostas.
Os Estados que pretendem proteger seus cidadãos e defender seus interesses não podem mais cumprir suas promessas, visto que não têm mais os poderes necessários para isso. Porque “o espaço físico, geográfico continua sendo a casa da política, enquanto o capital e a informação habitam o ciberespaço, no qual o espaço físico é abolido ou neutralizado”, observa o sociólogo. Além de tudo, com o uso da internet e da tecnologia o capital e a informação ganharam muito mais velocidade e poder do que a política. Por conseguinte, as pessoas pararam de ver o Estado como um investimento seguro e confiável de suas esperanças.
Diante da predominância do poder global e virtual, as pessoas fogem da vida política e local. “Acima de tudo, a bolha em que a elite cosmopolita global dos negócios e da indústria cultural passa a maior parte de sua vida é uma zona livre de comunidade. Esta elite quer que todos nós sigamos os modelos dessa sociedade sem raízes. No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente, não funcionam”, conclui Bauman.
Sendo assim, essa configuração política e econômica do mundo e nossa passividade tende a levar ao conformismo, que nada podemos mudar e, portanto, devemos nos contentar com as coisas mais ou menos do modo que elas estão. Por isso, a tentação de jogar todos os partidos e os políticos em uma mesma vala comum de oportunistas e aproveitadores representa um perigo para a sobrevivência da própria ideia de democracia. Além do mais, esse posicionamento só favorece à lógica dos mais ricos, que graças à apatia das pessoas à política elegem seus representantes para os cargos públicos, como pôde ser observado nas eleições municipais de 2016. Enquanto os pobres que mais dependem das políticas públicas, perdem representatividade e ficam à mercê da boa vontade de quem não se interessa por eles.
Com tantas contradições constatadas na contemporaneidade, Bauman soube traduzir e envelopar as questões complexas com uma linguagem generosa, o que o transformou em um dos intelectuais mais conceituados e conhecidos no mundo. Apesar de simplificar os temas mais instigantes, ele não polarizava o bom e o ruim entre passado e o tempo atual, apenas apontava e analisava a contradição e a dinâmica das coisas e da vida nas duas épocas. A mesma propriedade teve para discutir a política na pós-modernidade, mostrado claramente que há um desequilíbrio entre a força do mercado econômico e da Política nos dias atuais.
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Elstor Hanzen é jornalista e especialista em convergência de mídias