Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Beloved, Amistad e Negrinha…libelos contra o racismo

Foto: Deborah Feingold/Corbis via Getty Images

“O frescor de boas-vindas de lápides não lapidadas; aquela que, na ponta dos pés, ela escolhera para encostar, os joelhos tão abertos como qualquer túmulo. Rosa como uma unha e polvilhado de pontos cintilantes. Dez minutos, ele disse. Você tem dez minutos e eu faço grátis.
Dez minutos para cinco letras. Com mais dez ela podia ter conseguido “Bem” também? Não tinha pensado em perguntar a ele e ainda a incomodava aquilo ter sido possível – que em troca de vinte minutos, meia hora digamos, ela podia ter conseguido a coisa toda, todas as palavras que tinha ouvido o pregador dizer no enterro (e tudo o que havia para dizer, com certeza) entalhado na lápide: Bem-Amada. Mas o que ela havia conseguido, que escolhera, era a única palavra que importava. Ela achou que podia bastar, copular entre as lápides com o entalhador, o filho dele, menino, olhando, tão velho o ódio em seu rosto; bem novo o apetite nesse rosto.” (Amada, Toni Morrison)

Imaginem-se lendo uma história em que uma menininha negra em fuga tem seu pescoço serrado pela própria mãe, também negra, que é detida prestes a esmagar a cabeça de outro de seus quatro filhos, aos quais pretendia matar. A história se revela tão interessante que vai parar na tela de cinemas de todo o mundo, onde vocês podem assisti-la, estarrecidos, e adentra o século XXI sendo dramatizada em ópera.
Imaginem-se no mesmo cinema assistindo a outra história em que vários homens negros que estão sendo transportados da América Central para a América do Norte são tratados de modo desumano tanto durante a viagem, quando se revoltam e atacam aqueles que os transportam, quanto quando desembarcam e são levados a julgamento pela insurreição. Ao longo do filme, os homens são vítimas de variados tipos de castigo psicológico – xingamentos e ofensas, por exemplo — e físico — chibatadas desferidas contra o dorso nu do castigado cujas mãos se encontram amarradas são frequentes entre as demais cenas de tortura.

De volta à literatura, imaginem-se lendo a história de uma criança filha de uma ex-escrava que sofre continuamente todos os tipos de maus-tratos que a dona da casa em que ela vive pode lhe impor, a despeito das leis que deveriam proteger esta criança.

Quais deveriam ser seus sentimentos diante de cada uma dessas histórias? Qual o objetivo dos autores desses livros e diretores desses filmes e ópera? Levar vocês a torcer pelos agressores? Levar vocês a agir com a mesma violência e veemência com que age aquele que segura a chibata; com a mesma falta de sensibilidade com que agem aqueles que condenam a mãe à prisão; com a mesma gratuita maldade com que age aquela que enfia um ovo quente na boca da criança e a impede de abri-la, como penalidade por um pequeno deslize?

A primeira destas histórias e a base para o romance Beloved (publicado no Brasil pela Cia das Letras como Amada), pelo qual Toni Morrison recebeu o prêmio Pulitzer de literatura de 1987, vindo a ser contemplada pelo Nobel de literatura de 1993 pelo conjunto de sua obra. Adaptado para o cinema, com direção de Jonathan Demme (que também dirigiu O Silêncio dos Inocentes) e com Oprah Winfrey interpretando a mãe infanticida, a jovem escrava Sethe, Bem-Amada (título que o filme recebeu no Brasil) chocou muitos espectadores mundo afora: como pode uma mãe matar a própria filha, praticamente um bebê ainda? Os espectadores teriam ficado ainda mais chocados se soubessem que a história se baseia em um fato real e não isolado, conforme esclarece Morrison no prefácio ao livro:

Um recorte de jornal do The Black Book [O livro negro] resumia a história de Margaret Garner, uma jovem que, depois de escapar da escravidão, foi presa por matar um de seus filhos (e tentar matar os outros), para impedir que fossem devolvidos à plantação do senhor. Ela se transformou numa causa célebre da luta contra as leis dos Escravos Fugitivos, que determinava que os que escapavam fossem devolvidos a seus donos. O equilíbrio e a ausência de arrependimento dela chamaram a atenção dos abolicionistas, assim como dos jornais. Ela era, sem dúvida, determinada e, a julgar por seus comentários, tinha a inteligência, a ferocidade e a vontade de arriscar tudo por aquilo que, para ela, era a necessidade de liberdade. (Morrison, 2007, p. XVII.)

Ainda que apresentado de modo implícito, o fato de que, longe de ser uma infanticida sanguinária, Sethe tem um amor tão profundo por seus filhos que prefere matá-los a deixá-los submetidos à violência da escravidão se torna tão evidente quanto o fato de que sua história, a história real da jovem Margaret Garner, fortaleceu a luta pela abolição da escravatura nos EUA à beira da Guerra Civil. “A visit to a slave mother who killed her child” (“Uma visita a uma mãe escrava que matou sua criança”, em tradução livre) é o título do artigo de jornal que relata a ocorrência registrada por volta de 1855. Margaret tentou fugir da escravidão com seus quatro filhos. Diante da iminente captura, serrou o pescoço da filha mais velha, ainda uma criança, e estava prestes a esmagar a cabeça do menino contra uma parede quando foi alcançada. Foi condenada à prisão por assassinato. À época, em conversas com jornalistas e pastores, ela teria se revelado bastante lúcida e afirmado repetidas vezes que seus filhos não iriam viver como ela vivera até então, ou seja, não viveriam como escravos (cf. Morrison, 1987, p.17). Quando terminou de cumprir a pena, Abraham Lincoln já havia abolido a escravatura, assim, ao deixar a prisão, Margaret passou a viver em liberdade.

A segunda história apresentada inicialmente é a base de Amistad, filme de 1997 de Steven Spielberg que também reconta uma história real. A trama se centra na tenuidade da linha que separava criminalidade de inocência no caso daqueles homens que, ainda em alto-mar, insurgiram contra a tripulação do navio que os transportava — razão pela qual foram levados a julgamento quando desembarcaram em terras norte-americanas. Ao tribunal cabia decidir se os progenitores dos réus eram moradores da América Central e, portanto, tinham perante aquele tribunal o estatuto legal de escravos ou se eram moradores da África e, portanto, tinham o estatuto legal de homens livres uma vez que o comércio internacional de escravos havia sido proibido em 1839, ano em que se dá o fato.

No primeiro caso, de acordo com as leis do tribunal que os julgava, os réus seriam escravos e, portanto, culpados. No segundo, seriam homens livres agindo em legítima defesa — donde se conclui que as pessoas às quais o status de escravo havia sido imposto não tinham o direito à legítima defesa.

Um dos advogados que os defende baseia sua argumentação no direito de propriedade, como se os réus fossem objetos.

A terceira das histórias apresentadas acima é um resumo de Negrinha, conto de Monteiro Lobato (1882-1948) publicado em 1920, 32 anos após a abolição da escravatura e 31 anos após a adoção do sistema republicano — portanto, ainda durante o período de transição para o sistema de trabalho assalariado, visto que muitas das pessoas escravizadas, sem terem para onde ir após a libertação, permanecem sob a guarda de seus antigos “proprietários”, trabalhando em troca de moradia e alimentação. Negrinha é filha de uma dessas ex-escravas que a dona da casa que a abriga afirma cuidar por caridade. “Saco-de-pancadas” de todos da casa, sobretudo da “boa e católica senhora”, cumpridora de suas obrigações para com Deus, Negrinha nem nome tinha. Era tratada pelos mais pejorativos apelidos e castigada por tudo e por nada. De seu primeiro e curto contato com uma menina inanimada — uma boneca —, ela se descobre gente. Enquanto as donas da boneca, sobrinhas da dona da casa, lá passavam férias, Negrinha foi liberada para brincar com as meninas, convertendo-se em um brinquedo — bem mais instigante do que a boneca — com o qual elas se divertiam. Quando as meninas partem, levando consigo seu contraponto e a pouca liberdade de que desfrutara, Negrinha se deixa morrer para não retornar à condição de objeto de descarga dos desgostos alheios.

Se o roteiro de Amistad, assinado por David Franzoni, convenceu Spielberg e toda aquela quantidade de grandes atores negros de Hollywood de que essa história de violência e injustiça — porquanto dependente de uma questão de formalidade, como é a jurisprudência, que muda de um lugar para outro, de uma época para outra — valia a pena ser contada como forma de sensibilizar corações e despertar mentes do final do século XX para a injustiça da escravidão e do subjacente racismo; se o infanticídio praticado por Margaret serviu para fortalecer a luta contra a escravidão e o racismo a ela subjacente no século retrasado, convencendo da atrocidade que é escravizar seres humanos e levando a ficção baseada em sua história a se converter em um libelo contra o racismo no final do século XX, por que o conto de Lobato se prestaria a converter seus leitores de todas as épocas em racistas, funcionando como um libelo ao racismo e se tornando, em pleno século XXI, quando a mentalidade deveria estar mais esclarecida e aberta, digno de perseguição?

Se vocês não consegue se comover com a dor de Negrinha diante dos sofrimentos a ela impostos na detalhada narração de Lobato; se vocês não conseguem enxergar o caráter frágil e humano que Lobato imprime a sua personagem de 15 kg; se vocês não conseguem perceber no conto de Lobato uma contundente, porquanto implícita, condenação à escravidão e ao racismo e reconhecer o vanguardismo do escritor brasileiro ao levar para a ficção há exatamente um século a sofrida história de tantas “Negrinhas” espalhadas pelos campos de onde quer que a escravidão tenha chegado nos tempos modernos, exijam que a Academia Sueca tome do volta o Nobel de Morrison, a única mulher negra a receber este prê até hoje, e que a Universidade de Colúmbia lhe tome o Pulitzer. Por fim, exijam que Spielberg, Morgan Freeman e todos os demais participantes de Amistad se retratem publicamente por apologia à escravidão e ao racismo.

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A Profa. Dra. Vanete Santana-Dezmann é responsável pelo projeto “Lobato em Tradução”, desenvolvido na Johannes Gutenberg Universität com financiamento do Gutenberg Lehrkolleg e, juntamente com o Prof. Dr. John Milton, da área de Estudos da Tradução da Universidade de São Paulo (USP), é responsável pela concepção e organização das Jornadas Monteiro Lobato. No momento, ambos organizam a edição de um livro contendo a tradução trilíngue (inglês, alemão e espanhol) de Negrinha, cuja publicação está prevista para janeiro na Alemanha.

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Referências

MORRISON, Toni. Amada (Trad.: José Rubens Siqueira). São Paulo, Cia das Letras, 2007.

_____. The New York Times. August 26, 1987. Section C, Page 17. Disponível em < https://www.nytimes.com/1987/08/26/books/toni-morrison-in-her-new-novel-defends-women.html >. Consultado em 22 de dezembro de 2020.