“Parabéns a todo aquele ou aquela que elimina um usuário de óculos da face da Terra. Com certeza, o mundo fica muito melhor depois desses importantes atos de limpeza”. Esse é o teor (hipotético) de um cartaz afixado, por um cidadão, na entrada de um estabelecimento comercial em Brasília, Distrito Federal.
Diante desse inusitado cenário, pergunta-se:
a) existe o direito de veicular esse tipo de mensagem (com referência aos usuários de óculos ou qualquer outro segmento social)?
b) o responsável pelo estabelecimento comercial deve, independentemente de qualquer provocação ou determinação de autoridade pública, retirar o cartaz (a mensagem)?
c) as autoridades policiais e administrativas precisam, necessariamente, de uma ordem judicial para atuar no caso (retirada do cartaz/mensagem)?
Creio que, à luz da ordem jurídica brasileira e mesmo do mais elementar bom senso, buscando definir condutas que possibilitem um convívio humano minimamente civilizado, as respostas para as perguntas seriam:
a) não existe o direito de veicular aquele tipo de mensagem;
b) o responsável pelo estabelecimento comercial deve, independentemente de qualquer provocação ou determinação de autoridade pública, retirar o cartaz/mensagem;
c) as autoridades policiais e administrativas não precisam de uma ordem judicial para retirar o cartaz/mensagem.
Pergunta-se, ainda: as respostas seriam as mesmas se esse conteúdo (ou similar, mas com uma mudança do grupo social agredido) fosse divulgado em alguma rede social?
Obviamente, não faz o menor sentido uma mudança considerável de postura simplesmente porque a ocorrência se deu em ambiente virtual (na rede mundial de computadores). O meio ou veículo de divulgação da mensagem ilícita não afeta a natureza do conteúdo. No máximo, teríamos ponderações adicionais acerca do maior alcance da agressão e, portanto, da quantidade de energia empregada nas providências a serem implementadas.
Existem inúmeros fundamentos constitucionais, legais e infra legais para as conclusões antes postas. Vejamos alguns dos mais relevantes.
A Constituição de 1988 estabelece que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito fundado na dignidade da pessoa humana (artigo primeiro). Entre os objetivos fundamentais do Brasil estão a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo terceiro). Ademais, afirma-se que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (artigo quinto, inciso terceiro).
São expressamente listados entre os direitos sociais constitucionais: a educação, a saúde, a segurança, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados (artigo sexto). O bem-estar é uma das bases da ordem social (art. 193). Entre os objetivos da assistência social são mencionados: a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice e b) o amparo às crianças e adolescentes carentes (art. 203).
A segurança pública, no art. 144, é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, e é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
O art. 220 da Lei Maior atribui à lei o papel de estabelecer os meios que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão nocivos, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Nos termos do art. 221 da Constituição, a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão respeitarão os valores éticos e sociais da pessoa e da família.
No art. 227 da Constituição define-se o dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Portanto, no texto constitucional já podemos identificar os rumos da sociedade brasileira e os responsáveis pela consecução dos seus principais objetivos. Cada cidadão, cada empresa, cada família, a sociedade como um todo e o Estado (em todos os seus âmbitos de atuação) estão comprometidos com a construção de um ambiente social refratário ao ódio e todas as formas de violência, discriminação e opressão.
Ademais, o Código Penal estabelece, com enorme clareza, densificando juridicamente várias premissas constitucionais: a) “art. 147 – ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave: pena – detenção, de um a seis meses, ou multa”; b) “art. 286 – incitar, publicamente, a prática de crime: pena – detenção, de três a seis meses, ou multa” e c) “art. 287 – fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: pena – detenção, de três a seis meses, ou multa”.
A Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014, conhecida como Marco Civil da Internet no Brasil, estabelece entre os fundamentos do uso da rede mundial de computadores: a) os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; b) a pluralidade e a diversidade e c) a defesa do consumidor (artigo segundo). Entre os princípios do uso da internet no Brasil encontra-se a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades (artigo terceiro).
O Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990) prevê que são direitos básicos do consumidor: a) a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos e b) a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos (artigo sexto).
Não custa destacar que as atividades de veiculação de conteúdos realizadas pelas redes sociais caracterizam as mesmas como fornecedoras de serviços (artigo terceiro) submetidas à disciplina do citado Código de Defesa do Consumidor. Por conseguinte, não podem fornecer serviço defeituoso, assim entendido aquele que “não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar”, nos exatos termos do art. 14, parágrafo primeiro, do CDC.
A Portaria n. 351, de 12 de abril de 2023, expedida pelo Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, definiu “medidas administrativas a serem adotadas no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para fins de prevenção à disseminação de conteúdos flagrantemente ilícitos, prejudiciais ou danosos por plataformas de redes sociais”.
Em seu artigo segundo, a aludida Portaria MJSP n. 351/2023 estabeleceu que a Secretaria Nacional do Consumidor – SENACON deverá “… instaurar processo administrativo para apuração e responsabilização das plataformas de rede social, pelo eventual descumprimento do dever geral de segurança e de cuidado em relação à propagação de conteúdos ilícitos, danosos e nocivos, referentes a conteúdos que incentivem ataques contra ambiente escolar ou façam apologia e incitação a esses crimes ou a seus perpetradores”.
Essa definição, com expresso fundamento no art. 106 do CDC, representou uma pronta e necessária resposta diante de uma onda social de preocupação em relação aos atentados violentos em escolas e creches, as ameaças crescentes de novos atos de barbárie e o aumento do discurso de ódio, de várias matizes, nas redes sociais.
Existe um entendimento crescente de que a atuação das redes sociais, violando ditames constitucionais e legais, como antes destacados, contribui para a perpetuação do quadro de insegurança reinante. Os algoritmos, que selecionam o que cada usuário visualiza, são questionados. Não estariam acentuando a circulação de conteúdos nocivos, na busca por engajamentos e ganhos financeiros? A resistência das plataformas em suprimir postagens e perfis disseminadores de práticas claramente ilícitas também gera uma justa revolta nos mais variados setores da sociedade.
Um episódio recente acirrou esse instigante debate. Com efeito, o Estado de Utah, nos Estados Unidos da América, aprovou, em março de 2023, leis com regulamentações bastante restritivas acerca da utilização de redes sociais por jovens. Entre as medidas aprovadas estão: a) verificação da idade dos usuários; b) consentimento dos pais ou responsáveis para criação de perfis para menores de 18 anos e c) vedação de acesso entre 22:30 e 6:30 para o público com menos de 18 anos.
Contra a Portaria MJSP n. 351/2023 são levantados principalmente dois óbices: a) uma indevida restrição à liberdade de expressão e b) a desconsideração do Marco Civil da Internet (Lei n. 12. 965, de 2014), especificamente em relação aos seus arts. 19 e 21. Esses comandos legais mencionam “ordem judicial específica” prévia ou “notificação” anterior para adoção de procedimentos de indisponibilização (remoção) de conteúdos nocivos.
A objeção que aponta para uma indevida restrição à liberdade de expressão não se sustenta validamente. Afinal, como é amplamente aceito, o direito à manifestação de pensamento não é absoluto. Pode e deve ser conformado e limitado quando colide com outros direitos também fundamentais, notadamente os direitos à vida, à integridade física e à incolumidade moral. Também deve ser ponderado que o discurso de ódio não pode ser caracterizado como uma opinião com divulgação protegida juridicamente. Trata-se de uma forma vil e abjeta de criar um ambiente social propício a toda sorte violências e preconceitos. Por outro lado, somente uma mentalidade doentia pode pretender iniciar um raciocínio que conduza a inserção da prática, em redes sociais, dos crimes de ameaça, incitação e apologia, entre outros, no legítimo campo da liberdade de expressão.
Igualmente, não pode prosperar uma inteligência distorcida do Marco Civil da Internet. Primeiro, os arts. 19 e 21 da Lei n. 12.965, de 2014, tratam especificamente da atribuição de responsabilidade civil. Assim, não devem ser extrapolados, ampliados e estendidos em franca oposição aos vetores constitucionais e legais destacados. Em segundo lugar, uma exegese sistemática dos dispositivos do Marco Civil da Internet revela a subsistência de responsabilidades das redes sociais no sentido de inviabilizar a propagação de conteúdos inequivocamente ilícitos, em especial aqueles relacionados com a prática de absurdos atos de violência física em ambientes escolares e afins.
Registre-se que a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965, de 2014, está em discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal (Tema n. 987). Também está em debate no STF o “dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário” (Tema n. 533). Os dois temas foram tratados em audiência pública com a presença de quase 50 amicus curiae (amigos da corte).
No dia 18 de abril de 2023, o Ministério da Justiça apresentou impressionantes números da operação Escola Segura, voltada para combater ameaças e ataques a instituições de ensino. Em apenas dez dias, contabilizou: a) 1.224 casos em investigação em todo o Brasil; b) 756 solicitações de remoções ou suspensões de perfis em plataformas digitais; c) 255 pessoas presas ou crianças e adolescentes apreendidos; d) 694 intimações de adolescentes para prestar depoimento; e) 155 buscas e apreensões e f) 1.595 boletins de ocorrência.
Vivemos um momento especialmente grave e delicado da vida nacional com ocorrências absurdas de violência e ameaças de repetição desses episódios em creches, escolas e universidades. Nesse triste contexto, Estado, sociedade e redes sociais devem potencializar os caminhos jurídicos para combater a barbárie e rejeitar visões equivocadas que apoiem uma indevida leniência em relação aos valores mais desprezíveis observados no convívio social, notadamente a violência, o ódio, as discriminações e as opressões. A rigor, todos os membros da sociedade brasileira devem trabalhar ativamente para viabilizar ambientes físicos e virtuais seguros, protegendo as integridades física e moral, a vida e a dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa humana.
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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional