Texto originalmente publicado pelo objETHOS.
Assim como em outros espectros da sociedade, o espaço ocupado por mulheres e homens no jornalismo ainda é desigual. Não apenas em questões salariais, mas nas condições de trabalho e nas possibilidades de exercê-lo livre e plenamente. É o caso da recente cobertura dos jogos na Copa do Mundo deste ano, na Rússia, onde repórteres esportivas se veem constrangidas e assediadas ao vivo, durante suas transmissões. Foi o que aconteceu com uma enviada do Deutsche Welle e uma jornalista da Rede Globo, agarradas e beijadas à força por homens. Ou com uma repórter russa, que teve seu trabalho interrompido por um grupo de 14 torcedores brasileiros cantando palavras depreciativas, em vídeo que viralizou nas redes.
Ser repórter na Copa é uma árdua missão, como atesta El País, com exemplos repetitivos de assédio. No jornalismo esportivo, não se trata de novidade: ainda em março deste ano, o movimento #DeixaElaTrabalhar reuniu cerca de 50 jornalistas mulheres brasileiras para relatar as ameaças e comentários violentos que são parte de suas rotinas na cobertura de estádios. Lançar luz sobre o problema e visibilizá-lo é uma das táticas possíveis para fomentar uma rede de apoio mútuo entre as mulheres.
Essa questão, é claro, não se encerra no jornalismo esportivo. Basta olharmos para os dados mais recentes divulgados pela pesquisa Mulheres no jornalismo brasileiro, levantados pelo site Gênero e Número em parceria com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e Google News Lab. Na sua primeira etapa qualitativa, a pesquisa reuniu 42 jornalistas para discutir percepções de assédio no trabalho, por exemplo; na fase seguinte, a quantitativa, obteve-se respostas através de questionários online de 477 profissionais mulheres que atuam em 271 veículos diferentes.
Os números podem parecer assustadores para os mais desavisados: 86,4% das respondentes já passaram por alguma discriminação de gênero no seu ambiente de trabalho, reportando que benefícios são concedidos com maior frequência aos homens, como pedidos de promoção e escalas de horário mais razoáveis. Dentre outros números altos, estão que 92,3% das jornalistas afirmam ter ouvido piadas machistas no seu ambiente de trabalho, 64% sofreram abuso de poder ou autoridade de chefes/fontes e 70,4% afirmam já terem recebido cantadas que as deixaram desconfortáveis no exercício da profissão. Dentre as principais violências psicológicas citadas pelas participantes da pesquisa, estão humilhação em público, intimação verbal, escrita ou física e tentativas de ferir suas reputações. Não há segurança para estas jornalistas, já que 46% responderam que suas empresas não possuem canais para receber denúncias de assédio e discriminação de gênero.
O impacto das práticas de assédio contra jornalistas afeta diretamente o seu próprio trabalho, especialmente no que tange ao relacionamento com as fontes. Constrangidas e violentadas, as profissionais têm a sua liberdade de expressão posta em xeque, o que agrava a pluralidade de perspectivas que se espera de um veículo de comunicação. Quem perde é o jornalismo e a sociedade.
Estes dados soam ainda mais alarmantes quando lembramos que as redações brasileiras são composta majoritariamente por mulheres (64%), de acordo com a pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro, publicada em 2013 pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC e a Federação Nacional dos Jornalistas Brasileiros (FENAJ). Trata-se, mais especificamente, de uma categoria formada por mulheres brancas, solteiras e com até 30 anos de idade. A suposta “feminização” do jornalismo brasileiro, no entanto, é um dado que deve ser lido com cautela, segundo Temer, Assis e Santos (2014): se elas são maioria nas redações, ainda falta ocupar cargos de chefia, com salários mais altos. Rosa (2014) também lembra que a condição de gênero inclui o sacrifício do “ônus da maternidade”, implicando postergar ou recusá-la em definitivo.
Para além do gênero, a perspectiva de raça
Se mesmo a maioria de mulheres nas redações não reflete lideranças femininas em altos cargos – apenas 34,5% ganham mais de cinco salários mínimos quando já consolidadas em suas carreiras, por exemplo -, temos uma situação ainda mais preocupante quando voltamos nosso olhar para a perspectiva de raça. Ainda nos dados do Perfil do Jornalista Brasileiro, dos 2.731 profissionais que participaram da pesquisa, apenas 23% são negros (5% pretos e 18% pardos), percentual inferior à metade da presença de pretos e pardos no Brasil.
Os resultados convergem com outra pesquisa, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA, do IESP-UERJ), sobre o perfil de gênero e cor/raça dos colunistas dos principais jornais impressos brasileiros (O Globo, Folha e Estadão). No geral, mais de 70% dos profissionais são homens, sendo 90% brancos – no Estadão, o percentual chega a 99%, enquanto que Folha não possui jornalistas negras como colunistas. A diversidade de negros no jornalismo também é baixa nos programas televisivos, de acordo com relatório da Vaidapé sobre o perfil de raça de apresentadores e apresentadoras: 80% são de entretenimento e 20% de religioso. Não há negros nas programações jornalística, educativa e infantil.
No contexto norte-americano, o estudo do doutorando Alex Williams tenta explicar o porquê da baixa diversidade nas redações. De acordo com a pesquisa, o número de minorias que são diplomadas nos cursos de jornalismo ou comunicação foi de 21,4% entre 2004 e 2013, nos Estados Unidos, mas apenas 49% conseguiram emprego logo que se formam. A principal razão apontada por Williams é que muitos dos estudantes não podem trabalhar em estágios não-remunerados oferecidos pelas redações, por conta de suas rendas baixas. Nesse sentido, surgem iniciativas, ainda que tímidas, na mudança de processos seletivos das redações, o que pode se revelar uma tendência, segundo as jornalistas Nina Weingrill e Simone Cunha, do É Nóis. Elas mencionam o caso da ProPublica, uma redação independente e sem fins lucrativos que criou um fundo para financiar estágios remunerados de não-brancos. No Brasil, citam também a agência Wieden+Kennedy, cujo programa de trainee é focado em jovens das periferias de São Paulo. As autoras frisam, no entanto, que o questionamento das empresas em relação aos seus processos seletivos “deve ser acompanhando com cautela, para que não se isole a diferença ou, no caso de selecionar um grupo “diverso”, crie-se um gueto dentro do espaço de trabalho”.
Do ponto de vista estratégico, diversificar as redações também é uma opção inteligente não apenas porque aproxima o jornalismo de cumprir sua função social, mas também porque cobrir a diversidade é dialogar com uma maior variedade de públicos. Weingrill e Cunha lembram que trabalhos em parcerias de agências com redações também são uma tendência econômica, já que facilitam a cobertura local por movimentos locais. Elas citam como exemplos a agência de jornalismo das periferias Mural, que já trabalhou com Folha de S.Paulo, e o Periferia em Movimento, atuando junto do Nexo.
Nesse sentido, portanto, diversificar as redações também implicaria diversificar pautas. Para a pesquisadora Claudia Nonato, essa relação é, de fato, direta, pois grupos minoritários tendem a estar em voga apenas em assuntos voltados a violência, preconceito ou datas especiais, como a Semana da Consciência Negra. Fugir de estereótipos e buscar novas perspectivas passa pela diversificação de fontes, por exemplo, e em esforços de compilação de banco de dados, como os projetos Entreviste Uma Mulher e Entreviste Um Negro. Em uma autocrítica, a diretora de redação da BBC Brasil Silvia Salek sintetiza bem o problema de fundo: “a questão aqui não se restringe ao direito ao espaço, a uma espécie de ‘cota da aspa’. A questão essencial é: o que estamos perdendo ao não representar essas vozes?”. Para Salek, jornalistas são muito bons em monitorar a diversidade no quintal dos outros, negligenciando o que acontece dentro das suas redações.
Um exemplo interessante de como práticas podem ser repensadas de tempos em tempos é o editorial de abril deste ano da revista National Geographic, assinado pela editora-chefe Susan Goldberg. A corajosa mea culpa da jornalista reconhece que durante décadas a publicação ignorou o papel de pessoas negras na história dos Estados Unidos, para além de estereótipos racistas consolidados. “Nossa cobertura foi racista”, escreve Goldberg, sem meias palavras, admitindo que o olhar da revista era etnocêntrico, branco e repleto de clichês acerca do “outro” (negros e indígenas) como um ser “exótico”.
É possível apostarmos, então, que o jornalismo de qualidade também perpassa uma maior diversificação das redações, para além do perfil branco, masculino e de classe média. A representatividade é importante, mas também é atravessada por questões de fundo e não deve ser pensada como um fim em si, apenas como um problema numérico. É preciso repensar uma mudança cultural nas redações, em valores éticos diversos – que, sim, podem ser ouvidos a partir de pessoas diversas. Para Tom Brislin e Nancy Williams (1996), promover a diversidade é também incentivar uma variedade de práticas: uma redação diversa não é necessariamente uma redação que atua com princípios genéricos definidos pela objetividade. Nesse sentido, em última instância, a diversidade também passa pelas salas de aula, no ensino da ética jornalística para além dos cânones ocidentais já consolidados, e na promoção de uma ética comunitária, que repense as práticas enrijecidas do campo.
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Dairan Paul, Mestre em Jornalismo pelo POSJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS.