Recentemente, Jair Bolsonaro declarou durante uma reunião com líderes de igrejas neopentecostais que pretende indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal (STF). Essa medida, que visa agradar uma das principais bases de apoio do presidente, caso se concretize, poderá acarretar um grande prejuízo para o caráter secular do Estado brasileiro. De acordo com a Constituição Federal, vivemos em um Estado laico, o que significa uma neutralização estatal no campo religioso – isto é, nenhuma crença deve ser base para as leis. Portanto, o Poder Judiciário deverá atuar sem levar em conta nível social, cultural ou tampouco a religião das partes envolvidas em um julgamento. Nesse sentido, um ministro do STF “terrivelmente evangélico”, influenciado por sua fé, pode comprometer a própria lisura do processo.
Outra questão que se torna bastante problemática com a crescente influência religiosa no âmbito estatal diz respeito aos direitos das minorias, sobretudo dos homossexuais, grupo historicamente segregado por alguns setores religiosos. Na semana passada, um edital da Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) que destinava vagas ociosas a candidatos transgêneros, não binários e intersexuais foi anulado após intervenção do Ministério da Educação. Em entrevista à DW Brasil, a professora da Unilab Luma de Andrade, primeira travesti a lecionar numa universidade federal do país, afirmou que essa decisão, além de atender à agenda conservadora do atual governo, também representa um desperdício de recursos públicos, pois as vagas, que poderiam ser preenchidas para formar mais pessoas para a sociedade, continuarão não sendo utilizadas.
Já no Congresso Nacional, a chamada “bancada da Bíblia” tem sido responsável por obstruir os debates sobre pautas progressistas, inerentes às liberdades individuais, entre elas a descriminalização da maconha, a união homoafetiva e os direitos reprodutivos das mulheres. Não obstante, ainda há os projetos estapafúrdios, como a tentativa de inibir manifestações artísticas consideradas “profanas”, a retirada da fantasiosa “ideologia de gênero” dos currículos escolares, o fim do ensino da Teoria da Evolução de Charles Darwin, a proibição do aborto mesmo em caso de estupro e a malfadada “cura gay”. Também é importante ressaltar o papel da mídia nesse processo que tem colocado em xeque a laicidade estatal no Brasil. A Rede Record, por exemplo, tem sido usada sistematicamente pelo seu proprietário, Edir Macedo, pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, para propagar os valores de sua religião, atacar políticas governamentais que considera contrárias às Sagradas Escrituras (como o caso do projeto “Escola Sem Homofobia”, pejorativamente designado como “kit gay”) e representar negativamente outras crenças religiosas, principalmente aquelas de matrizes africanas, valendo-se de diversas agressões a seus símbolos e rituais. Não por acaso, a emissora (que, sempre é fundamental lembrar, tem uma concessão pública) foi condenada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) por veicular agressões a religiões de origem africana proferidas no programa Mistérios e no quadro “Sessão de descarrego”.
Evidentemente, este artigo não é um manifesto anti-religião. Aliás, o Estado laico que tanto defendo tem como principal premissa justamente a garantia da liberdade de crença a todos os cidadãos. No entanto, é preciso ressaltar que a mistura entre assuntos políticos e religiosos foi responsável por tristes páginas da história da humanidade, como a Santa Inquisição, os massacres de indígenas e os ataques terroristas de organizações como a Al Qaeda e o Estado Islâmico.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.