Faz duas semanas, um jornalista de um canal de televisão francês foi cercado e espancado por coletes amarelos durante uma manifestação, na cidade francesa de Rouen. Isso era previsível, pois os coletes amarelos não escondem sua antipatia e mesmo agressividade ao verem jornalistas nas proximidades.
Esse ato de violência materializou a existência de uma deterioração nas relações de uma parcela da população com a mídia em geral, não se trata, portanto, de uma hostilidade contra um ou outro jornal, rádio ou canal de televisão. Esse clima, que desperta entre os jornalistas o sentimento de não serem entendidos, embora procurem ser imparciais nos seus relatos, chegou a tal intensidade que tanto o jornal Liberation como Le Monde e o online Mediapart, tentaram fazer uma análise introspectiva da situação. Um Exame de Confiança, como definiu Liberation.
O clima não é muito diferente entre nós no Brasil. Durante anos, o PT criticou a grande imprensa, considerada a grande responsável dos males brasileiros, com destaque especial para o Jornal Nacional da TV Globo. Isso não impediu que, durante o governo de Dilma Rousseff, a chefe de sua campanha eleitoral, jornalista Helena Chagas, se tornasse ministra da Secretaria de Comunicação Social, e nessa função destinasse à Globo uma importante parcela da verba federal para a imprensa.
Se Dilma ao contrariar seu partido, esperava um tratamento de favor e um certo apoio da Globo, isso não ocorreu quando mais necessitava, logo depois de sua reeleição, no episódio do impeachment. Paradoxalmente, a implosão do PT não favoreceu a Globo, pois se tornou agora um alvo dos evangélicos e do governo que eles apoiam, assim como o jornal Folha de S.Paulo.
Guardadas as proporções e diversidade entre franceses e brasileiros, existe uma certa concordância entre seus militantes de extrema esquerda ou extrema direita: todos olham a grande imprensa como inimiga em potencial. E essa situação se agravou com o surgimento das novas tecnologias da comunicação, pelas quais, mesmo sem ter a pesada estrutura de um órgão de comunicação, pequenos grupos e mesmo alguém isoladamente pode ter acesso a milhares de pessoas pelas redes sociais, blogs, tweets, WhatsApp’s. E ainda mais paradoxal — para fazer funcionar seus “pequenos jornais de opinião” é utilizada a matéria prima veiculada pelas redes de repórteres e de comunicação das grandes agências que abastecem a grande imprensa.
Essas redes paralelas garantem o acesso do leitor, ouvinte ou telespectador a um noticiário verdadeiro, imparcial, desvinculado de tendências políticas, religiosas ou econômicas? Nem sempre, o terreno está minado por fake news, notícias tendenciosas e as exagerações das teorias de complô.
Então, como um cidadão comum, de cultura pouco acima do básico, pode se orientar e fazer suas opções nesses meandros de informações que, na falta de leitura de jornais, livros, pode chegar também por conversas informais, ouvir dizer ou boatos e mesmo bate-papos em botecos, barbearias ou na porta de igrejas? Dificilmente.
Esse é o campo fértil para o surgimento do populismo e nacionalismo. Em contrapartida, os grandes jornais são suficientemente independentes para garantir informações corretas e fidedignas? Nem tanto, a grande imprensa atravessa a crise decorrente da queda de venda dos jornais impressos substituídos pelos digitalizados. Le Monde, Liberation, Le Figaro pertencem agora a grupos, cuja principal preocupação é econômica.
No Brasil, a mídia sempre esteve e continua, em mãos de famílias politicamente de direita. A novidade foi o surgimento de canais de rádio e televisão da Igreja Universal, capitaneados pelo bispo Edir Macedo que, com o apoio do presidente Bolsonaro, tentará tomar a primazia da Globo.
A situação não é das mais animadoras, porém, existe pior: é o controle da mídia pelo Estado, nas ditaduras ou governos de partido único.
O exame de confiança na França
No seu exame de confiança, os jornalistas franceses constataram uma discrepância salarial com relação à maioria da população: os jornalistas ganham em média 3.500 euros, enquanto a média salarial francesa e dos coletes amarelos é de 1.800 euros. Essa diferença cria a desconfiança no povo e ao mesmo tempo dificulta aos jornalistas a compreensão das dificuldades econômicas vividas pela população.
O cofundador da mídia online de investigação Médiacités, Sylvan Morvan, criou com base nisso, uma definição bem apropriada, citada no jornal Liberation: os jornalistas escrevem livremente aquilo para o que são socialmente programados a escrever”.
Critica-se também a ausência de pessoas da classe média ou inferior nas páginas dos jornais, nos quais se mostram sugestões de viagens, hotéis e estilos de vida bons para as classes superiores. Os jornalistas vivem na maioria em Paris, longe das cidades interioranas e de seus problemas e os jornais se desinteressam dos problemas e festas locais. Reunidos e fechados entre si, os jornalistas tornam as redações sem transparência, gerando a desconfiança.
Outra crítica é a de haver muitos comentários e menos reportagens. Os jornalistas gostam de dar suas opiniões de especialistas mas se esquecem de ir buscar opiniões alheias em lugares diferentes. As mesas redondas nas televisões são sempre reuniões de sabidões, incapazes de sair em reportagem. Existem muitas lições de moral em comentários que poucos lêem. Houve uma queda na formação dos jornalistas que não têm tempo para ler e se tornam medíocres.
E no Brasil, qual a crítica?
No Brasil, onde as tiragens dos jornais não chegam a 200 mil, bem longe do número dos habitantes, tomando-se São Paulo, como exemplo, muitas dessas críticas aos jornalistas franceses podem ser aplicadas.
Entretanto, a falha é mais estrutural e envolve principalmente a falta do hábito de leitura e a existência de uma grande parte da população na situação de analfabetos funcionais.
Para eles, pouca diferença faz a existência de uma mídia livre. Enquanto o Brasil não melhorar o nível de suas escolas, o jornalismo continuará sendo elitista, mas deve evitar baixar seu nível para encontrar leitores, a fim de não repetir o ocorrido com a televisão que, na busca de audiência, ficou em geral abaixo da crítica.
Porém a imprensa brasileira pode surpreender. E isso ao fazer, nestas últimas semanas, o diagnóstico do começo do governo Bolsonaro, não temeu o confronto com os apoiadores do populismo-fundamentalista colocado no poder.
Mesmo se isso irritou, para nossa surpresa, um ex-redator-chefe da revista mais lida, a Veja, para o qual não se pode criticar as primeiras semanas do presidente, deve-se esperar seus resultados. E nisso se esqueceu de que as medidas anunciadas contrárias aos direitos humanos, à política de defesa ambiental, à segurança das pessoas com a proliferação de armas, atentatórias às nossas florestas e nossos indígenas são suficientes para alertar os jornalistas quanto aos seus funestos efeitos.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.