Todo o nosso universo informativo está mudando de forma profunda e rápida. Não há mais muitas dúvidas sobre isto. A observação crítica da mídia, inevitavelmente, também sofre os efeitos desta mudança, mas a exploração de novas metodologias, técnicas e formatos ainda segue um ritmo muito mais lento do que a busca de soluções para os dilemas da imprensa.
Até agora o exercício da crítica da mídia consiste basicamente em identificar erros como falta de equilíbrio na escolha das fontes de informação; erros factuais em cifras, dados, estatísticas e identificação de personagens; omissões; viés ideológico claramente expressado; e narrativa confusa, só para citar os problemas mais frequentes. Mas a crescente sofisticação das estratégias de comunicação a partir dos anos 90 a observação da imprensa tornou-se muito mais complexa porque as questões subjetivas embutidas nos fluxos de notícias ganharam mais impacto do que o que é publicado em textos ou na TV.
É possível, e cada vez mais frequente, produzir um noticiário fiel aos preceitos dos manuais de redação e mesmo assim a informação publicada ser distorcida e enviesada, induzindo o público a percepções e atitudes igualmente equivocadas e sem base real.
A observação crítica da mídia está deixando de ser apenas dicotômica, ou seja, identificar o que está certo ou errado, para ser sistêmica, ou seja, avaliar o sistema que dá origem a uma determinada forma de informar sobre fatos e eventos jornalísticos. A avaliação dicotômica é objetiva e concreta. Já a avaliação sistêmica é bem mais complexa porque é subjetiva e geralmente abstrata. A dicotômica é mais fácil de desenvolver porque usa instrumentos e procedimentos que conhecemos bem, enquanto a avaliação sistêmica emprega ferramentas complexas e multidisciplinares, que exigem mais conhecimento.
Quem pratica a observação crítica da mídia começa a viver uma transição de paradigmas, um processo que pode ser mais bem entendido com o uso da metáfora do copo meio cheio ou meio vazio. Na fase dicotômica, nós vemos apenas se o copo está cheio ou não. Quando passamos a abordagem sistêmica, tanto a percepção como meio cheio ou a percepção copo meio vazio são relevantes porque respondem a formas diferentes de ver o copo e a água. Não esqueçamos que o jornalismo é uma representação da realidade produzida por profissionais, assim, é inevitável que qualquer notícia incorpore, em graus variáveis, parte da visão de mundo do repórter, fotógrafo, cinegrafista ou editor.
Para quem está condicionado pela expectativa de um copo totalmente cheio, o fato de a água ir até a metade gera a percepção de que falta líquido, o que leva a ideia de um copo meio vazio. Já para quem vive a realidade do copo totalmente sem água, o fato de haver líquido até a metade, provoca a percepção de um copo meio cheio, porque o sujeito valoriza a metade cheia. Fica claro que o volume de água não é o elemento mais importante na avaliação da imagem do copo pela metade. Para entender a situação, é essencial saber quais as expectativas e os condicionamentos de quem observa o copo e que fatores os determinam.
Consequências da observação sistêmica
No noticiário corrente, a metáfora do copo meio cheio meio vazio ocorre dezenas de vezes no quotidiano de um repórter ou editor porque todos os fatos, dados e eventos objeto de uma notícia resultam de percepções diferenciadas da realidade. Todas as notícias têm causas, consequências, prejudicados e beneficiados, logo qualificá-la como boa ou má, animadora ou pessimista, interessante ou chata, não fornece todos os elementos que o público precisa para tomar decisões. E nós, como críticos da mídia, temos a obrigação de apontar os elementos ausentes numa notícia para ajudar o leitor a entender melhor o mundo, e com isto ganharmos credibilidade pública.
Na era digital, as pessoas passaram a ter cada vez menos tempo para avaliar o que é publicado devido à quantidade e velocidade com que as informações circulam. Assim, o fluxo de notícias passou a ser, também, um elemento crucial na observação crítica da mídia, porque estamos sujeitos a um processo acumulativo de percepção de novos fatos, dados e eventos. O volume e a intensidade da transmissão de informações tornou-se um fator tão, ou até mais, determinante que o conteúdo desta mesma informação no condicionamento da atenção do público.
Este processo acumulativo é hoje o objetivo central dos estrategistas das grandes corporações da imprensa, razão pela qual a observação crítica da mídia passou a preocupar-se com a desconstrução do fluxo de notícias, além da análise de cada uma delas. Desconstruir significa destrinchar ou desmontar uma notícia para identificar componentes, causas, consequências e principais protagonistas. Não basta mais verificar apenas se uma notícia é verdadeira ou falsa, porque a velocidade e intensidade com que ela é transmitida pesam tanto ou mais que a sua natureza.
Esta evolução na teoria e na prática da crítica da mídia já está em curso e tende a ganhar cada vez mais importância porque a informação começa a ser o elemento básico na estruturação das relações sociais, econômicas e políticas, na era digital. É o desafio que já enfrentam os estudantes de jornalismo.
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Carlos Castilho é jornalista e pesquisador especializado em jornalismo local. Publica artigos em seu blog no Medium.