Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo cantando blues em tempos sombrios

“O que há pra falar
Onde leva essa ladeira
Que tristes terras vencerá
Um intérprete tocando blues?”
(Asa, Djavan)

Em governos antidemocráticos, com suas pilastras – Executivo, Legislativo e Judiciário – estranguladas, é papel da imprensa como quarto poder no Estado separar alhos de bugalhos, mantendo-se neutra em suas preferências políticas.

O parágrafo 5º do artigo 220 da Constituição afirma que “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. No Brasil, porém, essa prática vem se mostrando uma utopia, já que a imprensa tradicional dos grandes jornais e emissoras está sob o comando de cinco famílias com interesses próprios e todo o tipo de artimanhas para manter o monopólio.

O desmantelamento da política de comunicação e a intransparência alinhavados pelo atual governo leva o jornalismo a mais um desafio além dos de âmbito global, como o combate às fake news e a morte lenta e certeira do jornal impresso. O leva para o exercício de meticulosidade em checar as fontes antes de veicular a notícia para que ela honre esse nome.

A voz dos militares

Otávio Rêgo Barros, doutor em Ciências Militares, é o porta-voz da presidência. Em coletiva na cidade de Osaka, durante a cúpula do G-20, ele foi indagado por jornalistas da imprensa brasileira sobre detalhes do procedimento organizatório-protocolar referente ao encontro entre Bolsonaro e o presidente francês, Emmanuel Macron. O porta-voz capitulou frente à teimosia dos jornalistas presentes até, como diz um jargão midiático alemão, “chegar ao final do seu latim”. Sua retórica monossilábica e o semblante de alguém que estivesse num interrogatório policial são sintomáticos do momento dramático que o jornalismo vive. A total falta de preparo e o apoio de consultoria para assuntos midiáticos por parte do governo vêm, sistematicamente, prestando serviços à desinformação, além de difamar a profissão de jornalista, esfaqueando o seu DNA.

Em países sérios e de democracia madura, o jornalismo investigativo derruba governos e, frente a um mecanismo de autolimpeza, leva políticos corruptos ao ostracismo em três dias. No primeiro dia do vazamento, os acusados negam tudo. No segundo, renunciam a todos os cargos. No terceiro, assinam seu atestado de óbito da morte política, só voltando às pautas quando estiverem no banco dos réus nos tribunais.

Nióbio: um negócio da China!

Na cúpula onde se encontram os líderes do mundo para discutir pautas urgentes, como a crise climática e o acordo da União Europeia com o Mercosul, o presidente do Brasil faz uma live para comunicar o passeio de “uma hora e meia ou duas horas”. Além de mencionar o rolezinho, divulga a compra feita de um cordão, “uma bijuteria” do mais leve dos metais refratários, o nióbio.

No vídeo, o presidente faz questão de mostrar, como “homem de bem”, que a compra foi feita com nota fiscal. Sem agenda e como aquele que sempre terá o rótulo de deslocado na festa, aquele que foi convidado por questões protocolares, Bolsonaro afagou o ego de sua clientela, o homem mediano. Os elogios nas redes são sua recompensa. Usando o Twitter, ele anunciou a finalização do acordo entre a UE e o Mercosul antes do anúncio oficial, como se tivesse tido qualquer tipo de protagonismo ou brilhado por articulação eficiente para obter a assinatura como resultado.

Falar com a imprensa, claramente desacreditada por Bolsonaro – que, em sua primeira entrevista ao Jornal Nacional como presidente recém-eleito, sacramentou a “morte” da Folha de S.Paulo -, é um fator de estresse para quem é avesso e intelectualmente desafiado a qualquer tipo de questionamento.

Recentemente, em pronunciamento em tom simplório quando tentava humanizar a reforma da Previdência, Bolsonaro mostrou, mais uma vez, que fica exacerbado frente a tantas perguntas feitas de forma tão rápida e com conteúdos diferentes. Ao seu lado direito, o ambicioso governador de São Paulo, João Dória, que foi elogiado por seu “patriotismo”; ao lado esquerdo, o economista Paulo Guedes – ambos sempre balançando a cabeça em sinal de afirmativo enquanto Bolsonaro executa sua retórica de homem mediano. Ao ser indagado sobre o vazamento de áudios pelo The Intercept Brasil envolvendo o ex-juiz Sergio Moro, Bolsonaro interrompeu a conversa, levantou o dedo polegar, agradeceu e virou as costas para os jornalistas.

Alemanha tem que aprender com o Brasil

Visivelmente apavorado – como aquele jogador de time de terceira divisão que, por uma rasteira do destino, vai enfrentar um jogo contra um colecionador de títulos da Liga dos Campeões -, Bolsonaro, ao rebater a crítica de Angela Merkel, preferiu usar a imprensa como bode expiatório. Irritadíssimo, pediu a um jornalista para que o deixasse “terminar o raciocínio” quando o repórter ressaltou que as críticas da chanceler Merkel também haviam sido publicadas na imprensa alemã. “Não interessa a (imprensa) alemã!”, esbravejou o presidente. Faltou afirmar que o Brasil joga futebol melhor do que a Alemanha. “Eu vi o que está escrito. Lamentavelmente, em grande parte que a imprensa escreve, não é aquilo. Quando a imprensa tiver, tem que fazer a devida filtragem para não deixar se contaminar por parte da mídia escrita, em especial.”

De herói a fugitivo

Logo depois de prestar contas à Comissão de Constituição de Justiça do Senado (em 19 de junho), o ex-juiz Sergio Moro passou batido pelos jornalistas. Gritos de “ministro, fala com a imprensa, ministro!” exibem o quadro clínico da imprensa, o desespero de jornalistas e seus desdobramentos nas redações, “condenadas” a receber declarações “pingadas” e tentar fazer delas uma notícia que mereça esse nome.

O inimigo é o outro

O The Intercept Brasil e a equipe em torno do jornalista americano Glenn Greenwald têm feito um trabalho que funciona com um verdadeiro salva-vidas no mar agitado e violento por que passa a chamuscada imprensa brasileira. A parceria da Folha de S.Paulo com o Intercept na divulgação dos arquivos é um bem-vindo atalho estratégico e também intuito do jornal paulista, mesmo depois de muitos equívocos, de se posicionar do lado certo do muro. O recente debate sobre o filme Democracia em vertigem, entre outros com a participação do experiente jornalista Fábio Zanini, mostra que a Folha – talvez numa postura de teimosia na linha de “quem é tido como morto vive mais tempo” – traz um fio de esperança de que parte da imprensa no Brasil se exercite em resistência e teimosia em buscar a notícia, tendo como pior inimigo um desgoverno que, diariamente, a coloca frente a novos percalços.

A arte pela arte?

Em tempos sombrios, de governos antidemocráticos, é a classe artística que precisa somar forças, mostrar posicionamento.

Enquanto atrizes tinhosas como Marieta Severo e Andrea Beltrão se recusam a fechar os teatros Poeira e Poeirinha (RJ), nem que para isso tenham que fazer faxina e ficar na bilheteria porque a Petrobras cancelou o apoio institucional, cantores como João Bosco e Caetano Veloso passaram por Berlim e perderam a chance de fazer a diferença. Optaram pela retórica da “arte pela arte”. Suas respectivas relevâncias musicais não estão em debate, mas sim o silêncio de João Bosco ao decidir não falar com a imprensa (provavelmente por receio de ouvir perguntas desconfortáveis sobre o atual momento político) e especialmente ao não incluir a canção O bêbado e a equilibrista no repertório da apresentação na capital.

Ainda mais grave foi a postura tomada por Caetano Veloso (em 25 de junho), ativista carro-chefe da classe artística brasileira, de não falar com jornalistas, nem mesmo da mídia alternativa na qual ele mesmo se expressa como colunista. Mesmo com aproximadamente 25 pessoas o aguardando na porta da garagem do evento, Caetano deixou o local em uma van, escondido no banco de trás junto com sua esposa Paula Lavigne e protegido pelos vidros escurecidos.

Ir a Berlim e não cantar O bêbado e a equilibrista foi a maior falha do virtuoso João Bosco, que optou por uma música sobre “a beleza do Rio de Janeiro” com duração de seis infinitos minutos. O mineiro de visibilidade mundial não falou com ninguém da imprensa quando esteve na capital alemã. Ele saiu do backstage sem fazer selfies ou conversar com a galera. Saiu à francesa pela porta dos fundos do clube de jazz Quasimodo.

Caetano Veloso não fez diferente. Em sua passagem por Berlim em espetáculo com os filhos Moreno, Tom e Zeca, ficou muito mal na foto. Além de gritos de “Lula Livre” quando o filho mais velho, Moreno, estava no palco, Caetano nos revelou detalhes da vida familiar, de qual rebento gosta de cantar ou não e quando foi que o mais velhos fez sua primeira composição. Em tempos sombrios, um ativista da maior visibilidade e influência não pode se dar o direito de ser pueril. É inadmissível. Depois do final do show, aproximadamente vinte fãs esperaram mais de uma hora para tentar falar com o baiano, ter um disco autografado ou mesmo (a autora deste texto) ter autografada a foto tirada em 1993 na cidade de Hamburgo, durante a turnê mundial “Circuladô”. Naqueles tempos, Caetano reclamava do frio na cidade hanseática. Em 2019, ele vem a Berlim e sai, deixa um gosto amargo e um nó na garganta.

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Fatima Lacerda.