O que há de verdade na produção desenfreada de conteúdos falsos? Haveria algo além do princípio da verdade que mobilizaria a busca pelo falso como realização de fantasias? Passado um mês do governo Bolsonaro, o mito parece estar nu, não restando nada além de conteúdos falsos numa atmosfera ainda propagandista.
Não é de se espantar os ataques do governo atual à imprensa, ao Mais Médicos, à suposta doutrinação marxista, à Venezuela, ao ex-presidente Lula, à comemoração em rede social após o anúncio de desistência do mandado de deputado federal de Jean Wyllys (PSOL), assim como os discursos propagandistas de cunho moral, sobretudo da ministra Damares Alves e do ministro Ricardo Vélez Rodríguez.
Esse processo ressoa a velha propaganda de guerra, na qual a manipulação de dados, a fabricação de fatos e os apelos moralistas eram práticas bem conhecidas no século 20. Ao mesmo tempo, a realidade atual sinaliza diferenças estruturadas por meio das interações pela internet. Nesse sentido, os acontecimentos recentes estão alinhados aos eventos que marcam nosso tempo como a sociedade do falso, destacando as estratégias de produção de fake news e, consequentemente, de verdades falsas (pós-verdade), com grande repercussão desde a vitória de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e a saída do Reino Unido da União Europeia, ambos em 2016. Esses dois eventos influenciaram, no mesmo ano, a Oxford Dictionaries, departamento da universidade de Oxford responsável pela elaboração de dicionários, a eleger a expressão “pós-verdade” como a palavra daquele ano.
A análise da contemporaneidade passa, cada vez mais, pelo modo como nossa subjetividade é capturada no mundo digital, meio pelo qual a produção de fake news insere-se nas estratégias de dominação. Por outro lado, essa dinâmica une-se a uma dimensão subjetiva, a qual nos leva a formular a hipótese de que há algo além do princípio da verdade que mobiliza a sociedade.
Psicopolítica e fake news
Cada vez mais, somos incitados a opinar. A revelar como nosso pensamento se organiza. Nossa liberdade de expressão é o caminho, no mundo digital, para o exercício da vigilância e do poder sobre nós. Byung-Chul Han chama isso de psicopolítica, a qual se caracteriza por “ler e controlar pensamentos”. Os algoritmos são hoje o modo como se estrutura o sistema de vigilância. Governos e corporações privadas, sem que sejam percebidos, vigiam nosso modo de pensamento enquanto nos inserem numa bolha virtual.
Um caso emblemático foram as revelações, em junho de 2013, do analista de sistemas Edward Snowden sobre as ações de vigilância massiva da National Security Agency (NSA). As revelações de que os Estados Unidos sondavam cidadãos comuns dentro e fora de suas fronteiras, assim como grandes empresas, como a Petrobras, e chefes de Estado, como a presidenta à época, Dilma Rousseff (PT), criaram um sentimento de vulnerabilidade generalizado perante a vigilância global.
Se de um lado serviços de espionagem surpreendem até mesmo amantes de histórias sobre a Guerra Fria pela sua capilaridade via mundo digital de bisbilhotar a vida alheia, por outro lado nosso modo de pensar é entregue de bandeja, como num simples jogo de questionário conhecido como quiz, num movimento voluntário que torna ainda mais atual o conceito de servidão voluntária, de Étienne de La Boétie.
Interagimos com um ar de brincadeira, mas nossa forma de pensamento é sequestrada por esses testes e “correntes” do Facebook, entre eles: “Quem você seria numa reunião de guerrilha comunista?”. Você é seduzido a participar e, sem perceber, acaba passando informações que permitem mapear parte de sua estrutura psíquica. Enquanto o sujeito atua no mundo digital, renuncia à sua liberdade, num movimento contraditório que caracteriza a “servidão voluntária”.
Nossa estrutura de pensamento e, em consequência, nossos gostos são sequestrados. Em síntese, há outro de mim mesmo codificado na internet e com o qual eu me identifico quando, por exemplo, acesso às redes sociais e percebo que há, cada vez mais, internautas pensando de forma semelhante à minha. A bolha virtual em que eu estou inserido não para de se cristalizar, assim como a demarcação do outro, o inimigo a ser combatido.
Diante das informações obtidas dos usuários da internet, serviços são oferecidos, como os “disparos em massa” pelo WhatsApp, e por meio deles empresas com interesses econômicos e políticos podem produzir o conteúdo “certo” para obter determinado fim, como o que elegeu o atual presidente da república, Jair Bolsonaro (PSL). As tecnologias digitais potencializam a propaganda para obter certo resultado.
Nesse aspecto, o que essas duas primeiras décadas do século 21 revelam é uma versão ainda mais abominável do que Hitler defendia quando escreveu seu livro Minha luta (Mein Kampf), de 1925, na qual se pode ler: “O fim da propaganda não é a educação científica de cada um, e sim chamar a atenção da massa sobre determinados fatos, necessidades etc., cuja importância só assim cai no círculo visual da massa”. Na época de Hitler, o desafio era encontrar a linguagem “certa”, veiculada por um meio, para tocar o coração da massa e, assim, mobilizá-la para determinado fim, que, naquele caso, era o nazismo, num projeto de doutrinação que resultou no holocausto.
Passados quase cem anos da primeira edição do livro, vimos uma transformação tecnológica radical. Enquanto na época o desafio era tocar o coração da massa por intermédio de um modelo comunicacional de longo alcance (meios de comunicação de massa), o que pressupõe uma linguagem unificada, hoje, ao contrário, via algoritmos, podem-se dirigir mensagens específicas ou separá-las por grupos, observando, entre outros, padrões morais e estéticos, além de mobilizar o receptor a se tornar também parte do emissor no processo de difusão em rede de conteúdos. Se o conteúdo é falso, se a forma de apresentá-lo se assemelha a uma notícia, caracterizando uma fake news, parece se “justificar” para determinado fim.
Nesse caso, mudam-se as estratégias em conformidade com as possibilidades tecnológicas, mas as milícias que ajudaram a eleger o atual governo se assemelham às nazistas de 1930, que contribuíram com a ascensão de Hitler, com a produção do holocausto e com as guerras. Não é à toa a simetria dos slogans de campanha: Deutschland über alles (A Alemanha acima de tudo) e Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.
Mecanismos de assujeitamento na modernidade
Na modernidade, os mecanismos de assujeitamento passavam por uma estrutura de vigilância e disciplina. Na sua aurora, o panóptico foi o modelo estrutural cujas disciplina e vigilância se repetiam no presídio, na fábrica, no hospital, no manicômio, na escola etc., como nos mostrou Michel Foucault. Desenvolvido pelo filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham no século 18, o panóptico define-se por um projeto carcerário de vigilância total baseado na inspeção. Com uma arquitetura em forma de anel, tem ao centro uma torre, de onde, do alto, se projeta uma luz em movimento ao interior das celas. O preso subjetiva-se ao pressupor que é vigiado, mas ele não pode ver quem o vigia, de tal forma que o dispositivo pode funcionar sozinho, sem a presença de um vigia, o que, mesmo assim, não reduz seu princípio de assujeitamento.
Na passagem de sua arqueologia para a genealogia, Foucault investigou os dispositivos da sociedade disciplinar que mantinham os mesmos princípios, de docilização dos corpos e de produção de subjetividades. O jornalismo moderno não escapa desse processo; desenvolve-se no coração dessa maquinaria disciplinar.
Poderíamos facilmente observar que o jornalismo moderno, invenção do século 19, se constitui sobretudo na criação de um discurso que se mostra objetivo e transparente (a notícia), mas que funciona como um farol que ilumina o interior de seus leitores a fim de vigiar e disciplinar o campo simbólico, ou seja, controlar os sentidos produzidos sobre a realidade e disciplinar o olhar da sociedade. Não por acaso, Foucault escreveu: “No fundo, foi o jornalismo – invenção fundamental do século XIX – que manifestou o caráter utópico de toda esta política do olhar”.
Hoje, esse modelo está em crise. O panóptico moderno abriu as portas para o panóptico eletrônico (discutido por Jean Baudrillard) e, por último, o digital. Com observou o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, “se os presos do panóptico de Bentham têm ciência de estarem constantemente sendo observados por um vigia, ilusoriamente os habitantes do panóptico digital imaginam estar em total liberdade”.
Na sociedade disciplinar, o falso é parte integrante do controle
Os dispositivos disciplinares dos séculos 19 e 20 quadriculavam os espaços por onde os saberes davam formas aos sujeitos que exerciam poder. No jornalismo, o jornal é o dispositivo por meio do qual o jornalista, definido por um saber específico, tem o poder de identificar um fato, apurar seus vestígios e transformar um acontecimento bruto numa narrativa.
Nessa sociedade cujo discurso é controlado pelos dispositivos modernos, a produção do falso com efeito de verdade não seria possível a todos, pelo menos na sua versão massificada. Não é à toa que a palavra manipulação se tornou corrente para denunciar interesses dos grandes veículos de comunicação.
Manipular, na crítica, refere-se à roupagem que é dada à realidade a partir de um conjunto de técnicas que integram os dispositivos modernos. Manipular os acontecimentos à forma e semelhança dos interesses econômicos e políticos.
Para produzir o falso com efeito de verdade, seria preciso estar implicado num dispositivo que daria as condições de possibilidade para chegar às massas. Quem poderia escrever num jornal de grande circulação? Se fazer ouvir numa rádio? Ter uma emissora de TV? Ou quem deteria poder econômico e político para fazer com que um jornal cedesse seus princípios éticos para produzir determinado sentido sobre dada realidade? A quem interessa a seletividade dos fatos, a antecipação dos julgamentos, a repetição de notícias sempre com o mesmo enquadramento?
Sob a égide da indústria cultural, não haveria necessidade de tornar comuns os enunciados já tão presentes nos nossos dias, como fake news e pós-verdade. As notícias de longo alcance eram produzidas por poucos, moldadas nos dispositivos de poder e pelos quais atingiam as massas. Poder-se-ia produzir por caminhos alternativos, na disputa contra-hegemônica, mas, mesmo assim, se teria alcance limitado. Para obter os efeitos de longo alcance, dependeria das tecnologias de massa e de uma linguagem específica que conseguisse atravessar as diferenças de classe, étnicas, de gênero, de credo, etárias que compõem os indivíduos.
A pós-verdade é a sobredeterminação dos efeitos
No espaço do comum, narrativas são disputas. O algoritmo mapeia as estruturas narrativas e disputa os narradores. Os narradores moldam-se à imagem e semelhança de sua bolha digital sem se darem conta de que já não há mais narrativa. Se o internauta tem fetiche por guerras, não faltam quizzes sobre a Primeira nem sobre a Segunda Guerra Mundial.
Walter Benjamin observou o declínio da experiência e da arte de narrar logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial, quando escreveu que “os combatentes tinham voltado mudos do campo de batalha”. A barbárie no front não os tornou mais ricos de experiência comunicável. Pelo contrário, eles vieram mais pobres. Logo depois, “livros de guerra inundaram o mercado literário”, mas sem personagens que narrassem a experiência de guerra. Hoje, em minutos você pode montar um quiz com perguntas secas e cortantes sobre as guerras, como se o passado compusesse a ficção de suas fantasias. Se o quiz viralizar, o internauta pode até ganhar dinheiro.
Quando a experiência traumática (como a violência cruel de uma guerra) impossibilita a palavra (não há narrativa que dê conta da experiência), o sujeito tende a repetir a situação traumática nos sonhos, à espera de uma simbolização que o liberte de seu sintoma. É o que Sigmund Freud chama de neurose de guerra, para diferenciá-la das neuroses espontâneas.
Hoje, o grande evento não são as guerras mundiais, como as duas que marcaram também a história da psicanálise e das ciências humanas. O declínio da experiência nas primeiras décadas do século 20 estava relacionado com eventos traumáticos, assim como com as técnicas de reprodutibilidade da cultura, marcando tanto a perda da aura na obra de arte quanto a experiência na sua produção e fruição, como observou Benjamin.
Nossa contemporaneidade é marcada mais ainda por outro mal-estar, talvez mais bem identificado nos anos 1960, quando Guy Debord publicou, em 1967, A sociedade do espetáculo. Na época, a televisão era o grande entretenimento. Dividido em 221 teses, o livro é uma crítica à sociedade de consumo e nele se pode ler: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”. Os fetiches passam a ser produzidos por essa esfera da representação, a qual Debord chama de espetáculo.
Quando as relações são mediadas pelo que se consome nos meios de comunicação de massa, o que fica ausente é a experiência. Assim, pode-se entender melhor a tese 12: “O que aparece é bom, o que é bom aparece”. Não é o modo como se chegou à produção do conteúdo, mas a pura exposição.
Dos anos 1960 para a atualidade, o ciberespaço (com sua invenção, em 1984) tornou-se onipresente, nesse movimento de virtualização e atualização a partir, primeiramente, dos computadores ligados à rede global. Com o passar do tempo, vimos surgir uma multiplicidade de aparelhos conectados à internet. Com conexão à palma da mão, a relação deixa de ser um por todos (ou do meio para a massa) e passa a ser, potencialmente, de todos por todos, o que cria as condições de desterritorialização dos fluxos comunicacionais. A produção em massa da verdade ou do falso não se restringe mais aos territórios demarcados pelos grandes meios de comunicação, tampouco está no centro dos interesses da sociedade subjetivada na dimensão do espetáculo.
Sem experiência, a verdade perde sua função. O falso e o verdadeiro são reduzidos a disputas pelo poder. Já não há mais mundo real nem mundo digital. Há corpos sacrificados, submetidos, com direitos achatados na alienação a uma sociedade virtual e fetichizada.
Não há mais separação entre discurso e informação das máquinas; os algoritmos compreendem-nos tanto quanto gostaríamos que nossos melhores afetos nos compreendessem. Nesse tempo, faltam psicanalistas para nos implicar com nossa própria repetição, repetição dos nossos sintomas. Ao contrário, sobram coaching para nos vender uma “verdade”. Uma aparente verdade. Não há mais verdade a não ser embalada na forma-mercadoria.
O que são mesmo fake news?
Recordo-me de um homem de meia-idade encostado num caixa de uma pequena mercearia em Joinville elogiando o primeiro discurso de Kim Kataguiri (Democratas) após ser eleito deputado federal por São Paulo. Antes de chegar ao caixa, fiz uma rápida intervenção: Kim faz parte de um grupo (MBL) que se destaca por difundir fake news. Com semblante de dúvida, mas ao mesmo tempo com ar de alegria, como se eu estivesse concordando com ele, perguntou-me: “O que são mesmo fake news?”. Imediatamente dois outros homens responderam: “São notícias falsas”.
O episódio poderia ser visto como isolado, mas carrega consigo o espírito do nosso tempo, marcado por convicção, generalização e repúdio à especificidade. Quando a expressão fake news cai no senso comum, seu significado já foi alargado até romper as fronteiras de significação com outras palavras, para as quais, dependendo do evento, outros enunciados seriam mais adequados.
Lembro-me das horas após as primeiras notícias do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco (PSOL), e do seu motorista, Anderson Gomes, em 14 de março de 2018. Antes que as notícias com mais informações aparecessem, tempo mínimo para apurar os fatos, já se podia ler, ver e ouvir pelo Facebook ou WhatsApp uma variada produção de conteúdos falsos.
Desses conteúdos, dois se destacaram. O primeiro foi o da desembargadora Marília de Castro Vieira, da 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que difamou a vereadora do PSOL dois dias após o brutal crime, afirmando, via comentário no Facebook, que ela “estava engajada com bandidos! Foi eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu ‘compromissos’ assumidos com seus apoiadores”. Para a desembargadora, a verdade é a “certeza de que seu comportamento, datado por seu engajamento político, foi determinante para seu trágico fim”. Em resumo, Marília afirma que o assassinato foi uma execução por descumprimento de acordos com o mundo do crime.
O outro conteúdo falso que merece destaque foi produzido pelo deputado Alberto Fraga (Democratas), no qual, via WhatsApp, afirmou que Marielle Franco “engravidou aos 16 anos, ex-esposa do Marcinho VP, consumidora de maconha, defensora de facção rival e eleita pelo Comando Vermelho”.
A produção indiscriminada do falso envolvendo personagens do judiciário e da categoria de políticos reverbera uma crise ética nos dois sistemas, já explícita até mesmo em atos aparentemente legais, como o de magistrados que julgam por convicção, furtando-se de provas. É o fim do vínculo entre narração e experiência, palavras e coisas, fatos e vestígios.
Fake news é uma expressão prostituída
Os dois exemplos de produção de conteúdos falsos a Veja Online considera fake news. A primeira matéria, de 16 de março de 2018, reproduz informações publicadas na coluna de Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, na qual Marília diz que “não conhecia Marielle até saber de sua morte e que postou informações ‘que leu no texto de uma amiga’”. Essas informações que Marília leu no post de outra internauta, para a Veja, são fake news: “Ao fazer o post, a desembargadora se baseou inadvertidamente em fake news (notícias falsas) que correm pela web”.
A mesma lógica a Veja Online usa para a matéria sobre o conteúdo falso produzido pelo deputado Alberto Fraga. A crítica ao uso inadvertido da expressão implica, como vimos, a própria imprensa. A mídia corporativa engrossa o senso comum, considera comentários de Facebook e WhatsApp sem nenhuma similitude com uma notícia como fake news, assim como supostos comentários de terceiros ditos pela fonte são interpretados pelo periódico tais quais notícias falsas, o que seria bem diferente se usassem o termo conteúdo falso.
Do ponto de vista de quem não integra o campo do jornalismo, o uso do termo faz apenas parte do modo como ele organiza seu imaginário em conformidade com o imaginário social. Até aí compreendemos os vários usos feitos com a expressão, mas quando o mesmo ocorre por profissionais do campo da comunicação, sobretudo do jornalismo, a análise precisa se configurar de outra forma, como criar novos caminhos para interpretar a crise da área, a ponto de ver diluir por completo as fronteiras do discurso especializado com o senso comum.
O mordomo é chamado para depor
Meses antes do fim de sua vida, Jean Baudrillard fez um comentário certeiro a Juremir Machado da Silva: “O virtual é o mordomo chamado a depor”. A conversa girava em torno da internet. Para o sociólogo, isso em 2006, em dez anos ninguém mais falaria em virtual e real. De fato, o real foi deposto pelo virtual de sua importância na formação dos imaginários.
Atento às transformações culturais pós-1968, Baudrillard observou em A transparência do mal, de 1990, que, “quando tudo é política, nada mais é política, e a palavra já não tem sentido. Quando tudo é sexual, nada mais é sexual, e o sexo perde toda a determinação”. Hoje essas formulações são ainda mais pertinentes. Poderíamos formular que, quando tudo é virtual, nada mais é virtual, perdendo seu lastro com o real para se impor como pura realidade (hiper-realidade).
Isso nos leva inevitavelmente a outro de seus trabalhos, de mais de três décadas, Simulacros e simulação, quando o autor diferencia dissimular – “fingir não ter ainda o que se tem” – e simular – “fingir ter o que não se tem”. A simulação é, mais ainda, a ordem dominante do nosso tempo. É quando o signo adquire valor pela sua relação sígnica sem modelo correspondente. A forma de melhor compreender essa teoria é substituir o enunciado simulação por fake news (certo que não se resume a isso).
Vejamos as cinco fake news que beneficiaram Bolsonaro nas eleições segundo o jornal El País, de 19 de outubro de 2018, em matéria de Almudena Barragán: “O ‘kit gay’ para crianças de 6 anos que foi distribuído nas escolas”; “O homem que apunhalou Bolsonaro é filiado ao PT e aparece numa foto com Lula”; “A senhora agredida por ser eleitora de Bolsonaro (que na verdade era Beatriz Segall)”; “Haddad defende o incesto e o comunismo em um de seus livros”; “Se Haddad chegar ao poder, pretende legalizar a pedofilia”.
Diferentemente da expressão fake, a simulação para Baudrillard não é o reino do falso. A dicotomia entre falso e verdadeiro foi abolida. O mesmo não aconteceria com as fake news? Ora, a pesquisa realizada pelo IDEA Big Data de 26 a 29 de outubro do ano passado mostrou que “as fake news devem ter tido uma influência muito grande no resultado das eleições, porque as histórias tiveram alcance absurdo”, mencionou o coordenador da campanha da Avaaz, Diego Casaes, à Folha de S.Paulo de 2 de novembro de 2018.
A pesquisa revelou que 90% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram em fake news, o que caracteriza a pós-verdade. Isso nos leva à afirmação de Baudrillard de que não há mais a dicotomia entre falso e verdadeiro, já que não se refere mais a uma falsidade construída sobre um evento, mas à criação do próprio evento. Essa é a fase estrutural do signo, quando adquire vida própria, ou seja, perde sua função de representar um fenômeno para se constituir enquanto fenômeno. O kit gay tornou-se um fenômeno. As imagens sem modelos, por isso simulacros, tornaram-se o próprio modelo. Nesse ponto de vista, precisamos concordar com Baudrillard, “o simulacro é verdadeiro”, frase que ele retira de O livro de Eclesiastes.
No livro, o sociólogo cita a Disneylândia como o modelo perfeito de todos os tipos de simulacros confundidos. Para ele, o imaginário da Disneylândia não é verdadeiro nem falso, mas sim “uma máquina de dissuasão encenada para regenerar no plano oposto a ficção do real”. O autor faz aqui o movimento que Freud fez ao passar o sintoma do domínio orgânico ao do inconsciente, no qual os sonhos seriam a realização dos desejos recalcados. Assim, a Disneylândia exalta os valores da América levando os sujeitos a um mundo onírico, mas esconde uma simulação: “A Disneylândia existe para esconder que é o país ‘real’, toda a América ‘real’ que é a Disneylândia (de certo modo como as prisões existem para esconder que é todo o social, na sua onipresença banal, que é carceral)”. Isso é o mesmo que dizer que o país é um grande parque de diversões projetado para os sujeitos se repetirem compulsivamente nas demandas oferecidas, capitalizando, assim, a nação.
A transparência da simulação
A sociedade de consumo (ou pós-moderna) é o estado fractal da realidade, ou seja, quando ocorre a “libertação” dos conceitos sobre as coisas. Num exemplo caricato, algo como se apresentar como mestre em Educação e Direito sem, de fato, ter passado pelo stricto sensu. Para Baudrillard, “quando as coisas, os signos, as ações são libertadas de suas ideias, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, de sua referência, de sua origem e de sua finalidade, entram numa auto-reprodução ao infinito. As coisas continuam a funcionar ao passo que as ideias delas já desapareceram há muito”.
Quando são rompidos os vínculos entre palavras e coisas, o que se sobrepõe não é a produção indiscriminada do falso, mas a realização inconsciente dos desejos ou a repetição compulsiva do gozo. Na posse de Jair Bolsonaro em 1º de janeiro, entre outros fakes, um talvez tenha expressado melhor a realização do gozo do governante: “Este é o dia em que o povo se libertou do socialismo”. O significante socialismo está totalmente deslocado de suas ideias (ou de um modelo do que caracterizaria um governo socialista), mas, contraditoriamente, funciona como estímulo para mobilizar a utopia socialista, o que seria, para o presidente, o fantasma batendo à porta para alimentar seu gozo. Nesse sentido, há uma verdade do falso e pela qual a crítica pode se oxigenar sem reduzir à análise a identificar se o conteúdo é falso ou verdadeiro.
Essa autonomia artificial dos signos, de negação dos referentes, produz a simulação, como o socialismo para o atual presidente. É um signo transparente que tem existência própria, bem diferente dos signos com poder de representação, opacos por apontar outro além deles (na comunicação, o referente é o fenômeno exterior ao que o discurso faz referência; na psicanálise, o referente é o sujeito do inconsciente; na sociologia, são os fatos sociais e assim por diante).
No âmbito da comunicação, esse debate aparece com força em Sociedade de consumo, de 1981, no qual encontramos: “A verdade dos meios de comunicação de massa é a seguinte: a sua função consiste em neutralizar o caráter vívido, único e de evento do mundo, para substituí-lo pelo universo múltiplo dos meios de comunicação de massa mutuamente homogêneos enquanto tais, significando e referindo-se uns aos outros”.
A marca acentuada do nosso tempo é a da comunicação não linear, mas que se faz repetir um traço da anterior, a de massa, que é o de neutralizar o caráter vivido (fim da experiência).
O ponto central desse debate é que, para Baudrillard, as relações sociais são, em um crescente, mediadas por aparelhos. A produção de sentidos já não passa pela experiência, como interpretar um fenômeno com base em uma vivência, mas pela tela de uma televisão ou de aparelhos como os smartphones, por meio dos quais converge uma multiplicidade indiscriminada de olhares.
É nesse mundo fractal que a sociedade alcance a sua transparência absoluta, na medida em que o virtual determina as relações sociais, a política e a economia. Como observa Byung-Chul Han, a coerção por transparência nivela o próprio ser humano a um elemento funcional de um sistema.
E o “sistema” passou a ter no seu núcleo central a simulação. Um caso emblemático foi a justificativa do governo americano de George Bush para iniciar a guerra contra o Iraque, em 20 de março de 2003, sob o pretexto de perigo iminente das supostas armas químicas e outras de destruição em massa. Mas, logo depois que o ditador Saddam Hussein foi capturado, em dezembro de 2003, a verdade sobre as armas veio à tona – pura simulação. Hoje chamaríamos a cobertura da mídia sobre o perigo iminente do Iraque de fake news.
A simulação saiu do controle
Quando fomos informados de que empresários políticos investiram milhões na divulgação de vídeos com conteúdos falsos pelo WhatsApp, em 23 de setembro de 2018, era apenas mais uma estratégia corrupta e antidemocrática que vem se destacando nas forças conservadoras e autoritárias. A obscenidade já tinha se tornado literal havia anos. Como sabemos, a polêmica iniciou-se em 2011 com a produção do material de combate à homofobia nas escolas encomendada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados ao Ministério da Educação (MEC). Na época, Fernando Haddad estava à frente do ministério. O material Escola Sem Homofobia não foi distribuído nas escolas, mas foi suficiente para a oposição cunhar o termo pejorativo kit gay e começar uma longa campanha difamatória com repercussão na mídia corporativa, que, desde o início, foi favorável aos críticos do governo da época.
Quando o ministro do Tribunal Superior Eleitoral Carlos Horbach determinou a suspensão de links de sites e redes sociais com a expressão kit gay usados pela campanha eleitoral de Bolsonaro para atacar Fernando Haddad, então candidato do PT, acabou por evidenciar também que uma repetida produção, desde 2011, de notícias da mídia corporativa eram falsas. Destaco a matéria do Jornal da Record de 22 de maio de 2011 construída num único enquadramento, do ponto de vista, sobretudo, da bancada evangélica, reproduzindo a expressão kit gay. Em momento algum fez referência ao nome Escola Sem Homofobia ou ao combate, via educação, ao bullying.
A produção, circulação e controle do discurso como função de enquadrar um sentido pejorativo sobre o combate à homofobia tiveram seu início no Congresso Nacional e adquiriram grande repercussão nos veículos de comunicação de massa e nas redes sociais. Nesse contexto, as fake news não podem ser reduzidas à propagação indiscriminada de conteúdos falsos com aparência de notícias em portais e redes sociais produzidos por quem não é da área e não teria compromisso com a verdade.
A radicalização de conteúdos falsos realiza-se à margem dos dispositivos modernos de poder
Entre os casos mais marcantes, um vídeo publicado por um usuário do Facebook em 25 de setembro, durante as eleições, no qual o autor da gravação mostra uma mamadeira com bico de borracha em forma de pênis para afirmar que o produto integra o chamado kit gay que teria sido distribuído em creches.
O objeto de fetiche pornográfico teria supostamente sido distribuído por determinação de Fernando Haddad, na época candidato à presidência. Não é à toa que uma das atrações nos sex shop agora são as mamadeiras com um grande falo por onde um líquido branco pode ser jorrado. O movimento foi dos sex shops para a campanha difamatória, e essa viralização perversa mobilizou mais ainda o mercado dos fetiches sexuais. Há aí uma economia libidinal que circula das casas especializadas em sexo ao espaço da política.
Esse episódio mantém a mesma estrutura de outros e por ele se consolidaram as expressões pós-verdade e fake news. Ciro Marcondes Filho, em seu mais recente livro, Comunicologia ou mediologia?, dedica um capítulo para analisar as fake news com base nas discussões do campo do jornalismo. Traz um evento conhecido: “O fato mais conhecido foi o escândalo de Hillary Clinton, chamado de ‘Pizzagate’, em que notícias falsas sobre a candidata à presidência dos Estados Unidos – dizendo que ela estaria por trás de uma rede de sexo infantil em quartos de fundos do restaurante Comet Ping Pong, em Washington, D.C. – circularam amplamente, interferindo nos resultados eleitorais da campanha presidencial americana”.
Os tabus sexuais parecem ser a fonte de conteúdos difamatórios, mas não é sem motivo que essas produções beiram à bizarrice. Elas revelam uma das funções da linguagem, a de expor a verdade sobre o próprio sujeito do discurso, sobre o qual tudo o que poderia haver além disso não passaria de ficção. O conteúdo é falso em relação à inexistência de um referente, porém é verdadeiro em relação ao gozo de quem está inserido na produção e circulação desses conteúdos.
Se o nosso tempo é ainda mais miserável de experiência, a única verdade que se pode conhecer é que a enunciação revela mais de si mesmo do que sobre aquilo que se propõe a enunciar. Tudo o que está para além dessa verdade do sujeito pertence às veias abertas da pós-verdade.
A mamadeira fálica é o gozo de Bolsonaro e de seus adeptos
No imaginário, a internet consiste em um espaço virtual sem limites. É, enquanto potência, espaço da perversão, no qual o sujeito pode se projetar sem limite, renunciando a dor do outro. Nesse território virtual aparentemente sem lei, as estratégias de manipulação multiplicam-se, como no uso que se pode fazer do serviço chamado “disparo em massa” pelo WhatsApp. Se de um lado o usuário pode exercitar seu traço sádico; por outro, estratégias de marketing empresarial e político desenvolvem conteúdos que caem como uma luva nessa força destrutiva da massa virtualizada. Assim, o “disparo em massa” por empresários apoiadores de Bolsonaro (prática ilegal – trata-se de doação de campanha por empresa) atingiu um grande público de simpatizantes e militantes, proporcionando um arranjo produtivo.
Dos milhões que receberam os conteúdos falsos, há um segundo movimento ainda mais eficiente, ainda mais perverso, que é quando essas mensagens são encaminhadas para outros grupos ou pessoas por usuários do WhatsApp, estreitando o vínculo pela proximidade entre eles. Esse movimento foi nas eleições combustível para as crenças coletivas.
Significantes tocam o coração da realidade
Em 18 de outubro, dez dias antes das eleições do segundo turno, Patrícia Campos Mello publicou a denúncia de que “empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp”, na Folha de S.Paulo. Segundo a apuração, cada contrato chegava a R$ 12 milhões e, entre as empresas compradoras, estaria a Havan.
Quando milhões são investidos (o retorno virá com juros altos) na produção de uma falsidade sem limites, é porque o conteúdo já está acomodado ao gozo de uma massa que se repete na vontade de destruição. O conteúdo de apelo moral alimenta, sobretudo, o imaginário de “santidade” – destacando-se nas comunidades evangélicas –, que reprime diariamente suas pulsões em nome de um paraíso sobrenatural, mas na calada da noite (ou ao sinal de uma nova mensagem no WhatsApp) o mordomo chega para depô-lo. Para fazer com que o sujeito se torne totalmente transparente.
Quando significantes tocam no coração da realidade, são mobilizados os desejos mais íntimos dos sujeitos, fazendo fluir um conjunto de conteúdos que beiram à pornografia, deixando os hormônios à flor da pele, só que com um detalhe importante: no interior de grupos que se autoproclamam conservadores, defensores da moral e dos bons costumes.
Além do princípio do prazer
Logo após a Primeira Grande Guerra Mundial, Freud escreveu um de seus mais importantes textos, Além do princípio do prazer, publicado em 1920. De início, o sonho seria a realização de um desejo do inconsciente regido pelo princípio do prazer, mas Freud percebeu com os seus pacientes que sofriam com as neuroses de guerra que há sonhos repetitivos que são lembranças traumáticas. Pelo princípio do prazer, essas lembranças não poderiam se repetir. Analisando a repetição das lembranças dos traumas, Freud elaborou, além das contradições entre consciente e inconsciente, ego e libido, uma divisão nas pulsões: a de vida e a de morte. Nessa dualidade, a tendência à repetição está ligada à pulsão de morte (ego), que faz o trabalho oposto à união (ligada à libido).
O que nos interessa são os dois desdobramentos que Freud deu à pulsão de morte: o sadismo seria a pulsão de morte ativa e o masoquismo a pulsão de morte passiva. Com pai da psicanálise, também aprendemos que a repetição é a manifestação do inconsciente e constitui assim o retorno do reprimido, ou seja, dos conteúdos recalcados.
Podemos articular a pulsão de morte para além da clínica psicanalítica, num movimento com a cultura. Paul-Laurent Assoun fez esse trabalho com os textos de metapsicologia em Freud e as ciências sociais, no qual nos mostra que há um avesso do inconsciente estruturado como cultura. Nessa direção, podemos dizer que há um mal-estar da nossa história relacionado à violência do período da escravidão e das torturas nas ditaduras (estadonovista e militar) que se mantém reprimido, sem que de fato se fizesse um ajuste simbólico de contas com o passado. Quando se tentou mexer com esse sombrio passado nos governos do PT, a resistência (aqui no sentido psicanalítico, de resistir em mexer com o que repetidamente nos traz sofrimento, de resistir em desfazer nosso gozo) reverberou pelos poros, fazendo triunfar o que há de mais sombrio da nossa herança cultural.
Se uma das possíveis leituras dos nosso mal-estar enquanto nação está associada a uma herança violenta, repressora e de conservação de privilégio para poucos, seria de se esperar que, no período em que se tentou alterar essa estrutura traumática, forças de destruição se levantassem, fosse para nos fazer sofrer, fosse para fazer o outro sofrer, numa gangorra entre sadismo e masoquismo.
A pulsão de morte integra, assim, o movimento de destruição, de separação, de quebra do laço social, nesse caso de um novo laço social que estava em construção nessa nossa recente história pós-redemocratização, com destaque para os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Quando rapidamente observamos o modo como se dá boa parte dos fluxos de conteúdo pelas redes sociais, vimos que quase não há comunicação, sobressaindo gestos destrutivos, ora ativos, ora passivos.
Em certa medida, Baudrillard observou esse movimento em 1976, muito antes das mídias digitais, quando, em A troca simbólica e a morte, dedicou uma parte do livro para trabalhar o conceito freudiano de pulsão de morte, na qual analisa toda a “economia política como dominada e engendrada pela pulsão de morte”. Podemos ainda ressaltar que na sua leitura sobre essa força de desagregação, de dissolver os agregados, desvincular as energias, desfazer os discursos orgânicos, caracteriza a compulsão de repetição ou a “tendência à reprodução a mínima satisfação”. Para Baudrillard, a pulsão de morte seria um dos princípios mobilizadores da economia política (mantendo, assim como Marx, esses dois campos inseparáveis) e pelo qual marca a “viscosidade da pulsão de morte, elasticidade do inorgânico que resiste em todas partes, vitoriosamente, à estruturação da vida”.
Por fim, o trocadilho muito além do princípio da verdade funciona como o movimento repetitivo em busca do falso, em busca das forças destrutivas que rompem com o laço social, ora para alimentar uma posição sádica (como a manutenção dos privilégios), ora para alimentar uma posição masoquista (como a de trabalhadores apoiando a reforma trabalhista ou a previdenciária). Essa talvez seja a verdade de como o nosso tempo goza com o falso, tendo as fake news como materialidades para a construção da pós-verdade, ou melhor dizendo, para a produção social das fantasias coletivas.
***
José Isaías Venera é jornalista, doutor em Ciências da Linguagem pela Unisul e professor dos cursos de Jornalismo, da Univali, e de Publicidade e Propaganda, da Univille, em Santa Catarina.