Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Redes sociais não são a nova ágora, mas a nova cracolândia

Em 2015, durante um discurso de agradecimento ao título de doutor honoris causa na Universidade de Turim, na Itália, o escritor e semiólogo Umberto Eco lamentou o fato de que as redes sociais trouxeram à tona uma verdadeira “legião de imbecis”.  Se até então esses anônimos havia se contentado em disseminar suas asneiras nas mesas dos bares, sem muitos prejuízos à opinião pública, pois eram sumariamente ridicularizados pelos próprios colegas, a partir das redes sociais eles passaram a ser celebrados pelos iguais, de modo que a estupidez mais rasteira passou repercutir com mais impacto do que de uma obra de um Prêmio Nobel.

O questionamento sobre a qualidade do debate público nas redes sociais já havia sido esboçado na década passada; no entanto, a euforia com o potencial da democratização da informação e da chamada inteligência coletiva — além da propaganda ostensiva das empresas, que obviamente superdimensiona os aspectos positivos e oculta os negativos — acabou soterrando a crítica em uma montanha de cacofonia.

Andrew Keen, em um livro chamado: O culto do amador: como blogs, MySpace, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores já havia formulado uma crítica importante sobre o que a Internet havia se tornado a partir da supremacia de um conjunto de empresas que se especializaram em obter lucros em escala, explorando a vaidade dos usuários. Celebrados na teoria como uma revolução democrática que teria fortalecido a esfera pública a níveis inéditos, os blogs e as redes sociais, na prática, têm nos desviado do debate cívico ao estimular a exposição narcísica de nossas vidas privadas, de nossa vida social, de nossa vida sexual ou simplesmente de nossa falta de vida. Mesmo aqueles comentários indignados que, à primeira vista, poderiam ser confundidos com uma iniciativa de discussão pública de questões fundamentais, frequentemente não passam de um exibicionismo desajeitado de uma alma insegura que, no fundo, está mais preocupada com a autoafirmação e a aceitação de seus iguais do que com o debate cívico propriamente dito.

Em “O efeito Facebook”, David Kirkpatrick revela que Mark Zuckerberg, o criador desta rede social, tinha consciência intuitiva daquela dinâmica psicológica desde o princípio da criação da plataforma:

“Naquele primeiro almoço, cheguei à conclusão de que a explicação para Mark é que ele é um psicólogo”, diz Chris. “Sua ideia central era que os jovens têm um profundo desejo de ter certos tipos de interação social na faculdade e o que os move é um interesse extremo em seus amigos — ou seja, o que eles estão fazendo, o que estão pensando e para onde estão indo. Ele tinha alguns insights simples, mas profundos.”

Mas à medida em que os meios de comunicação de massa são substituídos por essa mídia personalizada, prossegue Keen, a Internet se torna um caleidoscópio redundante de nós mesmos. “Em vez de usá-la para buscar notícias, informação ou cultura, nós a usamos para SERMOS de fato a notícia, a informação, a cultura.” Não é que as mídias tradicionais eram necessariamente melhores do que as digitais. Há uma extensa literatura crítica que demonstra as contradições das mídias. Mas para Keen, nós apenas trocamos de problema. A Internet não deve ser considerada como uma espécie de evolução natural dos meios de comunicação de massa: as inovações não estão desprovidas de custos, adentram por caminhos inesperados, debilitam algumas qualidades para aguçar outras e, por tudo isso, tampouco deixam de produzir as suas próprias incoerências.

O desejo insaciável por atenção é o grande motor que faz girar as mídias sociais. A dimensão desta economia da vaidade é medida pela quantidade de “curtidas” que os posts pessoais recebem. Os números são colossais. Considerando dados de 2017, todo santo dia, entre os mais de 2 bilhões de usuários do Facebook, 800 milhões “curtem” algum conteúdo que aparece em sua linha do tempo. No que diz respeito ao consumo de conteúdo, os dados são igualmente superlativos. Somente no YouTube, a comunidade de 1,3 bilhão de usuários assiste a 1 bilhão de horas de vídeo por dia. Isso significa 100 mil anos por dia diante o conteúdo da plataforma!

O modelo de negócio bilionário das redes sociais se sustenta precisamente na sucessiva captura da atenção, do tempo, da energia criativa, do engajamento e dos dados privados de seus usuários, que são analisados e vendidos às empresas de publicidade. Por isso, Google e Facebook se preocupam em recrutar à peso de ouro os jovens com os maiores QIs das melhores universidades para trabalhar exaustivamente em artifícios capazes de estimular o vício compulsivo dos usuários: da página infinita do Facebook aos sons, vibrações e ícones irresistíveis do seu smartphone, há muita ciência em jogo.

O Facebook investe em muita pesquisa para tomar decisões estratégicas de programação e estimular o vício pela plataforma. Por exemplo: quando a equipe do álbum de fotografias da rede social decidiu que, para ver a imagem seguinte, o usuário poderia clicar em qualquer lugar da fotografia, e não apenas no botão de “avançar”, o objetivo foi transformar o prazer em compulsão, mantendo as pessoas clicando em uma página depois da outra, sem parar. “O procedimento transformava a atividade de olhar fotografias em algo simples e viciante,” explica David Kirkpatrick, autor de O efeito Facebook.

Em outras palavras: provocar ansiedade e induzir os usuários a publicar e bisbilhotar as redes sociais, várias e várias vezes ao dia, é o motor do negócio.

Durante o verão, Zuckerberg, Moskovitz e Parker haviam cunhado um termo para descrever como os estudantes pareciam usar o site. Chamavam esse comportamento de “o transe”. Uma vez que você começasse a vasculhar o Thefacebook, era muito fácil simplesmente continuar. “Era hipnótico”, diz Parker. “Você ficava clicando e clicando e clicando de um perfil para o outro, olhando as informações.” O mural foi concebido para manter os usuários ainda mais transfixados, dando-lhes mais coisas para ver. Pareceu funcionar. Quase imediatamente, o mural tornou-se a característica mais popular do Thefacebook.

A propósito: o futurista e empresário Roger James Hamilton observa que apenas duas indústrias chamam seus clientes de usuários: as gigantes de tecnologia e o tráfico de drogas. Para ele, as mídias sociais se tornaram a nova nicotina. Por isso, é preciso ter consciência de que o vício faz parte do negócio. Facebook não é a nova ágora. Mas a nova cracolândia.

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André Azevedo da Fonseca é professor e pesquisador no Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e professor visitante na Universidad Complutense de Madrid. Doutor em História (Unesp) com pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (UFRJ).