A Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense promoveu, no dia 26 de setembro de 2018, um encontro para homenagear uma das fundadoras do PROALE, Programa de Alfabetização e Leitura. Glória Pondé, que também foi diretora da FNLIJ, Fundação Nacional para o Livro Infantojuvenil, faleceu em 2006 e seu legado só recentemente começa a ser redescoberto.
Na apresentação de seu livro “A Arte de Fazer Arte, como escrever histórias para crianças e adolescentes” (Editora SESI-SP, 2018), Eliana Yunes, assessora em políticas de leitura da UNESCO, ao dizer que escrever para crianças está longe de ser “escrever qualquer coisa”, cita Ana Maria Machado, que diz que o escritor adulto deve ter uma habilidade a mais: “a de se fazer entender também por crianças”.
Recentemente recebi de diversos colegas médicos posts criticando o livro “O menino que Espiava pra dentro”, de Ana Maria Machado. Tentavam culpabilizar o livro, afirmando que ele incentivaria o suicídio em crianças. Antes de procurar saber do que dele se tratava, pois desconhecia a discussão, fui reler o livro. Editado pela primeira vez em 1983 pela Nova Fronteira, “O menino que Espiava pra dentro” teve 22 reimpressões pela mesma editora e ganhou uma 2ª edição em 2008 pela Global.
A história começa apresentando Lucas, um menino que prestava “muita atenção em tudo”, mas que “outras vezes, ele fica tão distraído olhando para alguma coisa que não repara nem responde quando falam com ele. Nessas horas a avó de Lucas costuma dizer: — Ele está espiando pra dentro”. Assim, ele “vê coisas que mais ninguém está vendo”.
O início, portanto, é um convite ao leitor para que também seja um observador de coisas que passam despercebidas por outras pessoas, adultos principalmente. Perceber coisas que ali não estão mas que sempre ali estiveram, esses aparentes paradoxos têm na linguagem um grande aliado para, exatamente, auxiliarem o leitor a compreender as complexidades do mundo.
“Gente”, pensei, “meus amigos médicos não conseguem compreender que se trata de uma metáfora?”. Então, ao postar que se tratava de uma metáfora, de ajudar a compreender as complexidades do mundo por meio da linguagem, um médico me escreveu: mas há metáforas que são perigosas. “Não!”, retruquei. “Metáforas só são consideradas perigosas em ambientes totalitários!”. E veio a necessidade de escrever esse artigo.
E Lucas aprendeu como espiar pra dentro, em qualquer lugar em que estivesse: “se ele senta na rede da varanda, encolhe as pernas, balança um pouco e espia pra dentro… Está enfrentando as ondas do mar agitado, em um veleiro que sobe e desce vencendo a tempestade, chegando a ilhas desertas ou lutando contra piratas em abordagens perigosíssimas e cheias de emoção”. Visita florestas, fundo do mar, galáxias, espaço infinito…
Sabemos que o menino vivia com a mãe e o pai. Tinha uma avó, que compreendia seu ser criança. Parecia não ter irmãos. E como brincar sozinho é bom mas em companhia é melhor ainda, arrumou um amigo que o acompanhava nesses lugares. Seria um “amigo imaginário” para quem preferir fazer uma leitura mais literal da ação.
Mas mesmo esse amigo desconstrói a noção de literalidade, ao facultar que seu nome seja ele próprio fluido, materializável a partir do deslocamento que faz para as metáforas que se abrem: chama-se Talento (ou Tá Lento?), mas também Tamanco (ou Tá Manco?). O próprio Lucas, ao propor à dupla um plano para viverem sempre no mundo “de dentro”, o mais divertido, pensa em comer uma maçã. Busca apoio nos contos de fadas: seria o Branco de Neve. O amigo, também chamado de Tatá (apelido que sintetiza todas as contradições de seus possíveis nomes) ri e diz que estaria mais para Moreno da Praia. E faz troça: “vai ficar esperando um príncipe, ô cara?”.
Poderia a leitura de um livro estar dissociada da bagagem ideológica que esse leitor traz ao abrir a primeira página? E como o fechamento da última página poderia fazer que esse livro achasse um espaço nessa mesma bagagem?
A predisposição a uma percepção literal de tudo quanto há no mundo, nesses leitores adultos que criticaram da forma como foi o livro de Ana Maria Machado, pode ser percebida exatamente pela eliminação da possibilidade de leituras metafóricas da seguinte passagem: “Eu vou comer uma maçã, engasgar com ela, dormir muito tempo e ficar anos e anos espiando pra dentro até que alguém me dê um beijo e quebre o encanto”.
Não se trata, portanto, de alusão ao suicídio infantil. A criança personagem 1- não apresenta indícios de estar deprimida; 2- nem antes nem depois de comer a fruta encantada, em nenhum momento se engasga de fato com a maçã: a personagem não apresenta sinais e sintomas de um engasgue. Engasgar é, per si, também um vocábulo introduzido não pela sua literalidade. Lucas morde a maçã e a deixa caída a seu lado, tal qual no conhecido conto de fadas. Mas se ele seria mesmo o cara, esse tal Moreno da Praia, só mesmo um beijo de princesa poderia confirmar.
“De repente, um beijo, um abraço, os olhos se abrindo, a luz brilhando no espaço. — ‘Você é uma princesa?’”, perguntou Lucas. “A mãe riu: — ‘Ainda está dormindo, meu filho? Ande, acorde que está na hora de ir para a aula, chega de tanto sonhar’.” O menino, depois do beijo, acorda e descobre que ganhou um cachorro. A mãe percebeu que Lucas brincava sozinho. Era uma criança brincalhona mas sem irmãos. Sem amigos de sua idade em casa. Os pais lhe presenteiam com a presença um amigo não humano, que ganha o nome de “Talento ou Tamanco. Mas pode chamar de Tatá.”
Sobre a produção de literatura para crianças no momento histórico em que o livro foi escrito e publicado, Rosa Maria Cuba Riche no Prefácio de “A Arte de Fazer Artes” fala sobre a necessidade da “ruptura com a imagem exemplar da criança retratada nos livros voltados para a escola, ao lado da valorização da criatividade, da inventividade, da liberdade de expressão e da autonomia”. Mais à frente, ainda sobre Ana Maria Machado e agora também em Ruth Rocha, sublinha a importância que é “…explorar os recursos lúdicos da linguagem”.
De mãos dadas com o “O menino que Espiava pra dentro”, proponho uma ponte segura com Ruth Rocha, com o explícito objetivo de possibilitar ao leitor médico se desgarrar da literalidade das coisas e não se sentir sucumbido quando diante a um mar metafórico. É também um livro da década de 80 que parece ter sido escrito para ser uma cápsula do tempo que pousasse nos dias de hoje: “Uma história de rabos presos”, na qual a criança protagonista dialoga com um jovem, que na história de Ruth Rocha é um médico, nome que também sabemos ser o do padroeiro da Medicina: são Lucas. Mesmo sendo grotescamente visíveis os rabos que crescem dos trazeiros dos políticos e demais membros da sociedade, e se embolam entre todos que estão com seus rabos presos, sem essa história não seria contada.
A esperança em modificar o pensamento de adultos bem-sucedidos comercialmente, em faixa etária na qual ocupam lugar de mando na sociedade em que vivemos, me é ínfima mas existente. Essa esperança está afinada a diretrizes da própria Educação, como campo de pensamento e práxis capaz de influenciar na formação (na “educação permanente”) de profissionais que gozam de alta reputação na sociedade técnica, como os médicos.
Considerando que todo e qualquer ato administrativo de uma sociedade emana dos adultos, considerando que cada ato de um adulto carreia suas ideologias a quem com ele dialoga e que essas ideologias, por sua vez, estão intimamente ligadas a sua capacidade de compreender um texto, é fundamental que a leitura literal do mundo seja ativamente desconstruída. A metáfora é uma janela de possibilidades já prevista na edificação de qualquer ambiente que se proponha a acolher humanos.
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Holmes Antonio Vieira Martins é Editor, Médico Pediatra e Psiquiatra. Coordenador do Núcleo de Estudos em Medicina Diagnóstica e Pericial. Psiquiatra do Instituto Phillipe Pinel. Perito em Pediatria e Psiquiatria na Justiça Federal. Ex-Professor de Psicologia Médica e Psiquiatria da Infância e Adolescência na Universidade Federal Fluminense.