Publicado originalmente por objETHOS.
Na última quinta-feira (25), o presidente Jair Bolsonaro censurou uma campanha publicitária do Banco do Brasil direcionada ao público jovem que apostava na diversidade para atrair novos potenciais clientes. A peça, de 30 segundos, mostrava pessoas negras, LGBTs e tatuadas (apesar da proibição, ela foi abundantemente replicada na internet, e pode ser assistida aqui). A retirada da campanha teve como consequências a demissão do diretor de marketing do BB, Delano Valentim, e a decisão anunciada de que comerciais de todas as estatais precisariam agora passar por aprovação prévia do Palácio do Planalto antes de serem veiculados (depois de ser informado que o governo não poderia intervir na autonomia das empresas, Bolsonaro precisou voltar atrás).
Apesar da gravidade da ocorrência (a censura de uma propaganda de forma arbitrária, que nada tinha a ver com a presidência, apenas porque “o presidente não gostou”), não houve grandes repercussões no noticiário nacional para além do simples relato. No G1, o episódio chegou a ser tratado como “polêmica” e o vídeo (originalmente da GloboNews) mostra Bolsonaro justificando a proibição da publicidade do BB dizendo: “Não é a minha linha”. A notícia relatava que a demissão de Valentim do cargo de direção ocorreu “em decisão consensual com participação do próprio” (ele não foi ouvido pela reportagem) e mostrava uma nota da assessoria dizendo que o banco decidiu tirar a peça do ar “por entender que faltaram outros perfis de jovens” a quem eles gostariam de atingir – uma desculpa difícil de engolir, mas tampouco questionada pelo jornal.
Não foi o único caso de preconceito de Bolsonaro reportado com indiferença pela mídia nacional essa semana: na mesma quinta-feira, durante encontro com jornalistas no qual falou sobre diversos assuntos, entre eles a decisão do Museu Americano de História Natural em não sediar um evento em sua homenagem, ele soltou: “O Brasil não pode ser o país do turismo gay, temos famílias; se alguém quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. A recusa do museu de NY teria sido motivada pela homofobia do presidente brasileiro.
A julgar por essas e outras declarações já feitas pelo presidente, a acusação de homofóbico não é descabida. Sua fala marca também uma posição machista no que diz respeito às questões de gênero: em primeiro lugar, evidencia a sua concepção de “família” heteronormativa; em segundo lugar, ao dizer que “se alguém quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”, significa que este “alguém” só poderia ser um homem, e “uma mulher”, neste contexto, teria um papel de servir ao propósito sexual. Bolsonaro acha que “táokey” o turismo sexual no Brasil, desde que seja com mulheres.
O assunto foi publicado em diversos veículos jornalísticos no país. Alguns repercutiram tal declaração sob a chave do “turismo gay” como nicho de mercado, como o Estadão Viagem, que argumenta que minimizar o público LGBTQ+ não seria “inteligente do ponto de vista econômico” e que a “tolerância ajuda na divulgação de um destino como marca”. Na mesma linha, Huffington Post Brasil aponta que o país é a maior potência do turismo LGBT na América Latina e que este público chegou a movimentar U$ 218,7 bilhões no mundo em 2018. A mensagem passada aos públicos por este tipo de abordagem é que a população LGBT deve ser tolerada porque dá retorno financeiro, minimizando o fato de que a sua existência social, rechaçada pelo presidente nas declarações da última quinta, é legítima e merece respeito.
Outros veículos jornalísticos, como IG, Uol, Exame, Crusoé e IstoÉ, se limitaram a contar o que disse o presidente, usando-o inclusive como fonte única para a matéria. Qual seria a motivação para publicar um texto meramente declaratório neste caso, sem dar ao público elementos para compreender os panos de fundo da questão (homofobia, misoginia, turismo sexual)? Seria a avaliação de que são assuntos que não vale a pena repercutir, uma vez que a postura conservadora de Bolsonaro não é novidade? Seria uma concordância dos meios com o que pensa o presidente? Ou uma obediência à premissa da objetividade jornalística?
Para Adelmo Genro Filho (1987), a concepção de um jornalismo objetivo implicaria em conceber o mundo como um agregado de “fatos”, prontos e acabados, e caberia ao jornalista simplesmente recolhê-los, como quem cata conchinhas na praia. Essa premissa, para o autor, além de esconder em si a ideologia burguesa, é impossível de ser alcançada. Genro Filho, porém, não considera essa impossibilidade uma falha, e sim uma potência subjetiva dos jornalistas diante da objetividade. Essa visão dialoga com Wilson Gomes (2009), que acredita ser ingênuo considerar o fato como algo definitivo e independente da subjetividade. Para ele, ver algo como um fato é uma questão de interesse, ou seja, de envolvimento entre quem conhece e é conhecido. Em outras palavras, o que os autores defendem é que, embora a objetividade esteja no horizonte da prática jornalística, não existem escolhas desinteressadas; se ele é feito por seres humanos, está sujeito à subjetividade das pessoas que o produzem, e isso tem potencial de transformar a informação em elemento de organização e de luta social, mas também de manter o status quo e endossar comportamentos preconceituosos ao deixar de dar informações completas, atendo-se ao pontual, como no caso das notícias mencionadas.
Não relacionar as declarações de Bolsonaro com o que significa ter um presidente com essa postura no contexto brasileiro – onde mais se matam pessoas trans e travestis no mundo, no qual uma pessoa é assassinada por homofobia a cada 16 horas e onde a luta contra o turismo sexual (principalmente de crianças e adolescentes) é dificultada pela escassez de dados e pela cultura machista no Legislativo e no Judiciário ao julgar as denúncias (como aponta um especial da Folha de S.Paulo sobre o assunto) – é endossar esse comportamento social escabroso, mesmo que não seja essa a intenção. Em um momento em que o jornalismo precisa com urgência recuperar sua credibilidade perante os públicos e voltar a se tornar relevante na sociedade, em meio a tanta desinformação, é crucial que pensemos nisso.
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Andressa Kikuti é doutoranda em Jornalismo pela UFSC e pesquisadora do objETHOS.