Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Glenn Greenwald, Sergio Moro, a segunda tela do Roda Viva e os ataques à liberdade de imprensa

(Foto: Reprodução YouTube)


O ministro da Justiça, Sergio Moro, personifica as contradições do jornalismo brasileiro na cobertura da Lava Jato. Alçado à qualidade de paladino de combate à corrupção, com o apoio da mídia mainstream, deixou a força-tarefa para se integrar ao governo Bolsonaro. Ainda mantém altos índices de popularidade em setores à direita do espectro político e é rejeitado por aqueles que viram no ato de adesão à política institucional uma prova inconteste de viés na condução das investigações.
Os diálogos entre procuradores, autoridades e jornalistas difundidos pela Vaza Jato, a partir do The Intercept Brasil e veículos parceiros, reforçaram os argumentos do segundo grupo ao evidenciar o tratamento seletivo nas investigações. Tornaram-se, também, um divisor de águas no jornalismo brasileiro contemporâneo, expondo a separação entre os veículos que ignoram o teor das denúncias e outros que investem esforços na análise do vasto material obtido. Parte da mídia mais conservadora encontrou a justificativa sobre o silêncio em relação ao conteúdo das mensagens vazadas compactuando com a versão de Moro de que os procedimentos de obtenção das informações foram criminosos. Com o passar do tempo, como era de se esperar, as denúncias resvalaram nas relações entre jornalistas e procuradores da força-tarefa.
Esse foi o pano de fundo da estreia da jornalista Vera Magalhães no programa Roda Viva, da TV Cultura, que convidou, no último dia 20, o ministro Sergio Moro para estar no centro do debate. Desde que o nome do entrevistado foi anunciado, iniciou-se uma campanha nas redes sociais questionando se jornalistas envolvidos nas apurações da Vaza Jato participariam da entrevista. E eles não foram convidados.
A campanha foi estimulada pelo editor do Intercept, Glenn Greenwald. “Seria indesculpável e um tanto covarde para o Roda Viva permitir que Sergio Moro aparecesse sem colocar um jornalista do The Intercept Brasil no painel para participar da discussão”, escreveu. O diretor de jornalismo da TV Cultura, Leão Serva, considerou “indelicada” a mensagem de Glenn e afirmou que a escolha dos entrevistados é feita pela TV Cultura. “Não pedimos sugestões, nem submetemos a bancada ao entrevistado”. Em que pese a autonomia editorial dos veículos, a falta de um entrevistador ligado à Vaza Jato não foi positiva do ponto de vista jornalístico.
No dia da entrevista, o Intercept buscou o contraponto. Leandro Demori assegurou que Sergio Moro aprovou os nomes dos jornalistas que estavam na bancada: Alan Gripp (O Globo), Andreza Matais (Estadão), Leandro Colon (Folha), Malu Gaspar (piauí) e Felipe Moura Brasil (Jovem Pan). E ainda trouxe mais um capítulo da Vaza Jato: diálogos entre os procuradores e jornalistas do site O Antagonista tratando da interferência na escolha do presidente do Banco do Brasil e os repórteres perguntando quem deveriam apoiar na sucessão da Procuradoria Geral da República.
No mesmo horário do programa, a redação do Intercept abriu seu canal do YouTube para comentar a entrevista. O Roda Viva com Sergio Moro foi para os trending topics do Twitter e os comentários do Intercept atraíram, em alguns momentos, cerca de 13 mil pessoas. Na tela principal, a apresentadora Vera Magalhães iniciou o programa reforçando que a relação dos entrevistadores não foi submetida ao entrevistado.
As perguntas dos jornalistas seguiram a tendência da linha editorial dos veículos por eles representados. Coube a Malu Gaspar (piauí), Leandro Colon (Folha) e à própria mediadora, Vera Magalhães, as perguntas mais incômodas sobre Vaza Jato, ataques à imprensa pelo presidente Bolsonaro e denúncias de corrupção no governo envolvendo o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e de caixa dois, com Onyx Lorenzoni. Alan Gripp (O Globo) também manteve o tom mais crítico. Andreza Matais (O Estado de S.Paulo) preferiu se centrar no futuro de Sergio Moro na política ou no STF e Felipe Moura Brasil (Jovem Pan) usou seu tempo para falar de projetos de segurança pública e os conflitos com o Congresso. O ministro seguiu sua estratégia de, sem alterar o tom de voz ou mesmo a expressão facial, desqualificar e minimizar as denúncias.
Nos comentários na segunda tela do YouTube, os jornalistas do Intercept – menos Glenn Greenwald, que não estava presente – reconheciam que as perguntas foram boas, mas reclamaram de falta de tréplica por parte dos entrevistadores diante de respostas evasivas do ex-juiz. Observaram também que Felipe Moura Brasil (Jovem Pan) levantou a bola para Sergio Moro.
Programa encerrado na TV, os jornalistas do Intercept ficaram cerca de meia hora no ar retomando informações sobre episódios aludidos no debate, como a divulgação da delação de Antônio Palocci às vésperas da eleição e, principalmente, relacionando, no Twitter, perguntas que gostariam de ter feito. “Por que a Lava Jato poupou os bancos?”; “é normal que os procuradores usem chats para pedir dados fiscais sigilosos sem autorização judicial ao chefe do Coaf?”; “o senhor sugeriu uma testemunha contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Deltan Dallagnol. Acha isso normal?”
Madrugada adentro, a corrida das hashtags alçou o tema entre os mais comentados no Brasil e o segundo no mundo: #moroheróinacional, #rodamoro, #rodaviva. Dados do teleguiado informaram que a audiência do Roda Viva caiu 60% em relação à última entrevista de Sergio Moro, em 2018.
No dia seguinte, 21 de janeiro, o Ministério Público Federal denunciou Glenn Greenwald e outras seis pessoas por crimes associados à invasão de celulares de autoridades brasileiras. Embora o jornalista não seja investigado nem indiciado, o MPF acredita que ele auxiliou, incentivou e orientou o grupo de hackers durante as invasões. Glenn considerou a denúncia um ataque à liberdade de imprensa e uma retaliação do governo Bolsonaro ao trabalho cauteloso, responsável e profissional que vem fazendo. A investigação, de acordo com o jornalista, é uma violação do direito constitucional de uma imprensa livre.
As instituições saíram em defesa da liberdade de imprensa. A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) lembrou que a Polícia Federal não encontrou indícios de que o jornalista tivesse envolvimento nos crimes. “Ainda assim, o procurador Wellington Divino Marques de Oliveira, que assina a denúncia apresentada nesta terça, afirma que o jornalista aconselhou Luiz Molição, um dos envolvidos no hackeamento de aplicativos de mensagens, a apagar arquivos ‘para dificultar as investigações e reduzir a possibilidade de responsabilização penal’”.
“Os diálogos apresentados como provas não confirmam as acusações do promotor. Em um deles, Greenwald responde a uma preocupação expressa por Molição sobre o que fazer com o material que havia enviado ao Intercept e que seria publicado na série de reportagens Vaza Jato”, completa a nota.
A Ordem dos Advogados do Brasil considerou a atitude do Ministério Público Federal um risco à liberdade de imprensa. A denúncia, para a OAB, criminaliza a mera divulgação de informações. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) manifestou solidariedade ao jornalista Glenn Greenwald e considerou a acusação um desrespeito à Constituição, ao STF e à Polícia Federal. Também a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) lamentou a inconstitucionalidade da denúncia e reiterou que o jornalista cumpriu seu dever profissional de divulgar informações de interesse público.”A denúncia do MPF é, portanto, uma forma de intimidação ao jornalista e uma ameaça à atividade jornalística”, diz a nota.
A defesa do Estado democrático de direito une as instituições e personalidades do mundo político, jurídico e intelectual contra os ataques à liberdade de imprensa. Essa é uma necessidade vital nos tempos sombrios que enfrentamos. A falta de entrevistadores ligados à Vaza Jato no Roda Viva paira, entretanto, como um sinal de que cabe ao jornalismo defender o jornalismo. A ausência dessa representatividade, no atual contexto, enfraqueceu as possibilidades aprofundar melhor os temas. As perguntas sobre a Vaza Jato estavam lá, mas faltou o lugar de fala de quem conhece os detalhes dessa investigação.