O método tradicional de produção de reportagens jornalísticas se mostra cada dia mais problemático na investigação de fatos, dados e eventos. Não funciona mais como regra geral porque a realidade se tornou demasiado complexa. Ela já era complexa, mas não tínhamos consciência dessa complexidade por falta de informação. Com a avalanche informativa gerada pelas novas tecnologias digitais de informação e comunicação (TICs) aumentou exponencialmente o volume de elementos disponíveis para análise e contextualização, com o consequente crescimento das dúvidas e incertezas. Os jornalistas, a exemplo dos pesquisadores científicos, enfrentam desafios cada vez mais amplos para oferecer informação relevante, pertinente, confiável, exata e contextualizada.
O método tradicional, em que o profissional vai a campo com uma agenda pré-definida e indagações, tende a produzir respostas que não correspondem à realidade investigada e, portanto, podem induzir o público consumidor de informações a conclusões distorcidas ou falsas sobre os temas pesquisados. Exemplo: os repórteres de jornais, revistas, telejornais e programas radiofônicos noticiosos tendem a ser condicionados pela agenda predominante na imprensa, ou pela do veículo onde trabalham. Normalmente, o profissional sai da redação com uma lista de temas, perguntas e situações a serem esclarecidas ou descritas. Ele vai com uma ideia já pré-estabelecida.
Isto funcionou quando não havia a abundância de versões e contraversões, de perspectivas e visões de mundo, mas depois das TICs o volume de incógnitas, até mesmo para situações consideradas simples ou corriqueiras, aumentou extraordinariamente, a ponto dos profissionais terem que lidar com situações desconhecidas o tempo todo. Análises, descrições e explicações superficiais tornaram-se altamente arriscadas devido à possibilidade permanente de refutação, contestação e desconstrução alimentada pela incalculável quantidade de dados disponíveis e pela multiplicidade de canais para caracterização de erros, distorções, omissões e desinformação.
O jornalismo enfrenta e necessidade de rever seus métodos de produção de informações para poder exercer a sua função social. Nesta revisão de procedimentos, a mudança talvez mais importante é a que desloca o eixo da atividade jornalística da coleta de dados e fatos brutos para o campo da produção de significados. Os dados brutos são hoje quase um monopólio das redes sociais virtuais onde a multidão de produsers (produtores e consumidores) de informações supera largamente a capacidade dos jornalistas de acompanhar o frenético e globalizado desenrolar dos eventos quotidianos. É uma competição inútil.
Em compensação, a complexidade da realidade cobra dos jornalistas a contextualização e significação dos dados, fatos, eventos e processos publicados nas redes sociais. Só que esta tarefa de contextualização e significação, por ser complexa, exige uma abordagem diferente da realidade. O profissional é obrigado a assumir seu desconhecimento sobre os personagens e situações com os quais se defronta na missão de produzir informações para um público que já não lida mais com a notícia como um produto comercial, mas como um insumo insubstituível para a produção de conhecimento e tomada de decisões.
O profissional está assim sendo forçado a partir do zero, ou seja, sem conhecimento prévio das questões e situações que precisa analisar, contextualizar e checar. Em suma, é uma situação comparável a de um antropólogo encarregado de descobrir por que uma tribo perdida numa ilha do Pacífico tem resistência natural ao Coronavírus. Ele não sabe nada da tribo, da ilha e nem da doença. Terá que partir do zero. Foi com base em situações como esta que a antropologia desenvolveu o chamado método etnográfico, cuja especificidade é justamente lidar com situações desconhecidas para procurar descrevê-las e entendê-las.
Partindo do zero
O método etnográfico surge assim com uma possível alternativa para o desenvolvimento do jornalismo na conjuntura digital porque oferece ferramentas para um profissional lidar com situações complexas como as criadas pela Covid-19, pela crise ambiental, pela robotização da economia mundial, pela desigualdade social planetária e muitos outros temas sobre os quais estamos muito longe de um consenso e de um conhecimento completo.
Mas em que consiste a técnica básica da etnografia? Sem recorrer ao jargão acadêmico e nem às explicações científicas é possível caracterizar os procedimentos etnográficos da seguinte forma:
a) O investigador, no caso o jornalista, primeiro observa detalhadamente o objeto de seu trabalho, seja ele um indivíduo, conjunto de indivíduos, evento, paisagem natural, ações de um indivíduo ou de uma comunidade, etc.
b) A observação, obviamente, é influenciada pela experiência, cultura, nível econômico e de informação do investigador, mas ele deve estar consciente da necessidade de evitar que estes pressupostos influam no seu trabalho de documentação factual. Para ser o mais fiel possível ao tema de seu trabalho, o jornalista precisa despojar-se de todos os pressupostos e preconceitos para que a confiabilidade de seu informe não seja ameaçada;
c) A investigação, possivelmente, exigirá que o profissional se envolva com o objeto de sua pesquisa, no que os acadêmicos chamam de observação participante, atitude que os jornalistas tradicionais consideram uma heresia;
d) Os dados registrados a partir da observação participante ou não, são codificados, ou seja, organizados segundo critérios do próprio investigador e que são determinados pela frequência, relevância, etc. com que ocorrem na realidade estudada. Por exemplo: numa reportagem sobre testes na Covid, o repórter codifica as pessoas testadas por idade, sexo, profissão, residência ou classe social.
e) Os dados codificados são posteriormente distribuídos em categorias. Cruzando os resultados da codificação, o repórter identifica que 70% das pessoas testadas são mulheres de classe média com 45 anos. Isto configura uma categoria, que pode ser objeto de observação específica, gerando uma nova codificação e categorização.
f) Neste ponto, o pesquisador ou o repórter já pode formular uma hipótese que, no caso do jornalista, já permite a produção de uma reportagem, cujo teor foi produzido a partir da realidade estudada e não de uma pauta desenvolvida na redação.
O procedimento exemplificado acima é extremamente sumário e serve apenas como um indicativo da necessidade de adaptação ao campo jornalístico. De imediato já se pode perceber que o procedimento etnográfico tomará muito mais tempo de um repórter, fotógrafo ou cinegrafista do que as pautas frenéticas da imprensa tradicional. Óbvio, isto implica um aumento no número de profissionais e não profissionais vinculados a um projeto noticioso, contribuindo para reduzir o elevado nível de desemprego e subemprego entre os jornalistas.
***
Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.