Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desonesta, a imprensa brasileira já nasceu forjada nos desejos da elite

Correio Braziliense: bicentenário do periódico. (Crédito: Correio Braziliense)

Em 1º de junho de 1808, entrava em circulação aquele que seria considerado o primeiro jornal impresso brasileiro, o Correio Braziliense, publicado pelo português Hipólito da Costa mas fundado em Londres, após Hipólito ter contato com os ideais iluministas em viagens aos Estados Unidos e México. Como tudo que é dito “desenvolvimento” imposto pelo colonialismo branco europeu em terras latinas, em nada relacionado às reais necessidades emancipatórias do povo nativo e das classes subalternas, “nossa” imprensa já nasceu importada como instrumento de poder da elite dominante na época.

Fomentou-se com ela uma Independência e uma República sem participação popular ativa, transfigurando-se numa “pseudo libertação política” verticalizada, “de cima para baixo”, sem consciência histórica, o que colaborou para que as estruturas de significação do discurso opressor do colonizador perpetuassem e ainda ecoem e convençam leitores e ouvintes neoconservadores a acreditar e compartilhar fake news, mentiras propagadas agora via internet nestes tempos sombrios bolsonaristas da contemporaneidade, por exemplo.

Acríticos e que agem na base da irracionalidade, pois não conseguem sequer tecer uma leitura crítica do mundo e da palavra, tão necessários ao processo de politização do oprimido, como diria nosso patrono da educação de práxis libertadora dialógica, o pernambucano Paulo Freire (1983, 1996). Sim, educação, imprensa e política estão intimamente ligadas.

Com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, Hipólito viu no Correio Braziliense uma forma de lutar contra o Antigo Regime, influenciando o povo – que passou a fazer também tais questionamentos. As concepções liberais defendidas por Hipólito tomaram sentido nas páginas do Correio quando o jornal torna-se fundamental por mediar os desejos entre o político e a política, sendo peça-chave no enfrentamento coletivo contra o governo absolutista, colaborando para o processo de independência do Brasil.

Em outras palavras, moldou-se a opinião pública (um povo “ouvinte”, a maioria analfabeto e sem condições de tecer reflexões próprias baseadas em suas próprias vivências, facilmente manipulável) com os sentimentos “libertários“ que faziam parte do interesse conveniente das elites. Resultado do uso da imprensa como arma de propaganda política: o início da formação de um futuro pseudo Estado-Nação (acreditamos no viés político do termo que a história dos vencedores nos tenta convencer, pois nação livre e soberana não se dá na lógica da exclusão e exploração e da negação da condição humana), tendo o povo como massa de manobra e não como seu efetivo protagonista.

O uso “político” da imprensa nos faz pensar a respeito da distinção entre os termos “político” e a própria “política” no espaço público coletivo habermasiano. Apesar do trabalho de Chantal Mouffe (2005) ter sido elaborado pensando num governo democrático, podemos aplicá-lo ao governo imperial no momento que as demandas sociais passaram, mesmo que indiretamente (e induzidas), a incidir na política. Para a autora, o político nos remete à ideia de algo específico, conflituoso. Nesse contexto, situam-se as disputas sociais, os antagonismos, as diferentes posições inerentes às relações humanas, que fazem com que os indivíduos se reconheçam como tais em função da produção do outro. Dessa forma, o político se define pela coexistência dessas distinções, construindo um espaço em que se definem as demandas da sociedade.

Na visão de Chantal, para se pensar o político – a escola, a igreja, os partidos, o governo etc. –, a política volta-se mais para o campo empírico ou da experiência. Essa dimensão mantém relação com as muitas práticas da política convencional que, de acordo com Mouffe (2005, p. 20), estão inscritas nos: “[…] discursos e [nas] instituições que procuram estabelecer certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre conflituais, porque são sempre afetadas pela dimensão do político”. A partir da tensão própria do nível do político, a sociedade se reúne na arena política para externar o desejo de tornar suas demandas universais.

Interessante pontuar algumas características do nascimento da imprensa dita “livre” (antes censurada e amordaçada pelo governo português) nesse contexto do Brasil Império e pós-Independência envoltas no processo sócio-histórico. Pensando sobre a função “educativa” da imprensa (e até, talvez, num incentivo à alfabetização) não só como meio de informação (positivamente) após a chegada de D. João VI à então capital do Rio de Janeiro, mas como uma forma de manipulação e convencimento “desonesta”, já que a maioria da população impedida do acesso ao conhecimento – formada por analfabetos e escravos – não tinha sequer condições para ler, pensar, entender, interpretar e formar suas próprias convicções, ou seja, de tornarem-se sujeitos de sua própria história para além do olhar daqueles “auto-iluminados” jornalistas burgueses como Hipólito. A própria transmissão oral no espaço público poderia sofrer ruídos, já que também era mediada por algum privilegiado letrado.

O sociólogo Jessé Souza (2017) explica, em A Elite do Atraso, que para entendermos os conflitos e a dominação social até os dias atuais, é necessário o olhar histórico do passado abrindo-se à perspectiva de classe social não só pelo viés econômico, mas também sociocultural. O desejo de criação do ensino superior no Brasil, por exemplo, já se anunciava desde o século XVI, mas não era prioridade para quem educava os filhos na Europa. Não era interesse da corte portuguesa que houvesse aqui qualquer iniciativa de independência cultural e política – como, por exemplo, a tentativa de fundar uma universidade (CUNHA, 2017) –, pois isso poderia significar perder o domínio de sua colônia; dessa forma, era preciso controlar todo e qualquer conhecimento que chegasse ao povo.

A ideia de classe social é mal concebida por boas razões. Primeiro porque ela, acima de qualquer outra ideia, nos dá a chave para compreender tudo aquilo que é cuidadosamente posto embaixo do tapete pelas pseudociências e pela imprensa enviesada. Como o pertencimento de classe prefigura e predetermina, pelo menos em grande medida, todas as chances que os indivíduos de cada classe específica vão ter na sua vida em todas as dimensões, negar a classe equivale também a negar tudo de importante nas formas modernas de produzir injustiça e desigualdade. Afinal, sem que se reconstrua a pré-história de classe de cada um de nós, temos apenas indivíduos competindo em condições de igualdade pelos bens e recursos escassos em disputas na sociedade. Tudo muito merecido e justo. Sem a ideia de classe e o desnivelamento das injustiças que ela produz desde o berço, temos a legitimação perfeita para o engodo da meritocracia individual do indivíduo competitivo. (Souza, 2017, p. 85)

Analisando o contexto sócio-político brasileiro, conseguimos identificar algumas das possíveis razões para essa relação conflituosa entre mídia – o profissional jornalista que, em sua maioria, também é classe trabalhadora (mesmo que não se enxergue nela por falta de consciência de classe) que vende sua força de trabalho – e o público. Desde o período colonial, as formas oficiais de administração de conflitos se constituem a partir de um mecanismo de complementaridade. A prática jurídica hierarquizada é dissimulada em um conjunto de leis fundamentadas no direito de igualdade, mas que, no fundo, só beneficiam uma pequena fatia, a dona dos meios de produção informativa. Na visão de Lage (2001, p.35), o jornalismo é um discurso datado e “cada texto parte de um contínuo que reflete o conflito entre os interesses de quem manda e as preocupações e angústias de quem obedece, em cada campo de relações da sociedade: governo e povo, médicos e pacientes, escolas e estudantes, etc.”

Obviamente, apesar de naquela época os fundamentos do jornalismo moderno (dentre eles o mito da objetividade e imparcialidade) sequer sonhassem em existir, a imprensa impressa era descaradamente o palco não dos desejos do povo, mas de grupos políticos que a usavam para sua influência e manutenção de poder, como já exposto. E depois, apesar do republicanismo na democracia representativa ser o modo de governança que consideramos mais certeiro quanto ao respeito das garantias individuais advindas com a escolha coletiva de seus representantes no Estado democrático de direito, no Brasil ele também nasceu da cisão ideológica das classes mais abastadas e não dos anseios populares. Pensemos que a luta de classes, por vezes intencionalmente invisibilizada hoje na imprensa convencional ou tradicional brasileira, seja também fruto deste disparate inicial onde os donos das empresas de comunicação continuam representando a si, a própria burguesia dona dos meios de produção, mascarados por esse discurso que soa maniqueísta “isento e imparcial” a favor da coletividade, como outrora.

Eugênio Bucci, em sua obra Sobre ética e imprensa (2000), ressalta que o trabalho dos jornalistas é intelectual, vendido com ou sem vínculos empregatícios, para empresas capitalistas de comunicação. E, apesar de nem todos os jornais pertencerem a capitalistas, “todos os jornalistas, sem exceção, vendem seu trabalho e seu talento no mercado capitalista” (Bucci, p. 76). Por vezes, a dinâmica de produção da notícia e a ética jornalística tendem a ser afetadas por tais interesses dos “patrões”. Apesar de outro contexto sócio-histórico e político, não foi diferente na época imperial como está obviamente visível nos dias de hoje. O falseamento da realidade permanece.

“Nos últimos cinquenta anos, nenhum grupo empresarial midiático foi mais bem-sucedido empresarialmente, nem se esmerou tanto na tarefa de distorcer sistematicamente a realidade brasileira, em nome de interesses incontestáveis, quanto a Rede Globo”, afirma Souza (2017, p.214) após mencionar o caso da Lava Jato e, segundo o autor, a omissão da própria Globo em não ter interesse na efetiva participação da imprensa e, em particular, da própria emissora, nos esquemas de beneficiamento a empresas privadas, mas no qual apenas a construtora Odebrecht estava sendo acusada.

O cruzamento do dever da imprensa que deveria prezar por sua função social e do jornalismo como forma de conhecimento cristalizado no “singular” e “ideologicamente antiburguês” (Genro Filho, 2012, p.14) com os segundos interesses político-partidários é percebido (quando há criticidade para que se perceba, óbvio) quando ela passa a ser “garota-propaganda” de grupos organizados que, muito pelo contrário, não estão ligados à luta popular e, preocupados em manter o status quo, tendem a pautar suas próprias demandas no espaço que deveria ser público. Porém, é inevitável que tal imprensa ancorada no discurso da credibilidade jornalística “tradicional” acaba por constituir-se perigosamente na única “verdade” dos fatos para o público. É sempre necessário pensar como a grande imprensa ainda continua a ser instrumento de manipulação de toda uma massa acrítica alienada que, infelizmente, não percebe tal jogo de poder devido à falta de tomada de consciência autônoma proveniente da práxis de uma educação crítica.

Há de se considerar o dinheiro público que os governos injetam nos grandes conglomerados de comunicação por meio de publicidade (e, na maioria das vezes, propaganda implícita) ou até mesmo a receita exorbitante proveniente de empresas privadas, grandes multinacionais estrangeiras, fatores que podem tendenciar do início ao fim o processo de produção e construção da notícia que irá impactar diretamente o cotidiano do leitor/ouvinte/telespectador. A amálgama histórica com o poder político-econômico ao fazer da imprensa brasileira um “lugar para desejos particulares corporativistas” torna precária a função de produzir notícia calcada apenas no interesse público de forma ética e responsável. Afinal, não seria mais honesto a imprensa tradicional convencional dos grandes conglomerados revelar abertamente seu lado?

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Priscila Bueker Sarmento é jornalista, mestranda em Comunicação e Territorialidades na Universidade Federal do Espírito Santo e integrante do Núcleo de Pesquisa e Ação Observatório da Mídia: Direitos Humanos, Políticas, Sistemas e Transparência (UFES/CNPq).

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REFERÊNCIAS

BUCCI, E. Sobre Ética e Imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CUNHA, L. A. A universidade temporã: O Ensino Superior, da Colônia à Era Vargas. 3. ed. São Paulo: UNESP, 2007.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
_________. Pedagogia do oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
GENRO FILHO, A. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Florianópolis: Editora Insular, 2012.
LAGE, N. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. 3. ed. São Paulo: Record,2003
MOUFFE, C. Por um modelo agonístico de democracia. Revista Sociologia política, Curitiba, v. 25, p. 11-23, nov. 2005.
SOUZA, J.. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.