O reconhecimento de erros é prática reveladora da busca de uma relação de transparência entre os veículos jornalísticos, o público e as fontes. O episódio recente de reportagem publicada pela revista Época narrando a experiência de um jornalista que se passou por cliente no coaching conduzido por Heloísa Wolf Bolsonaro motivou pedidos de desculpas do grupo Globo. Para além de uma tendência de caça às bruxas que domina o ambiente de intolerância e sectarismo das redes sociais, o acontecimento é uma possibilidade de ampliarmos as lentes sobre o papel do jornalismo no atual contexto.
A bem-humorada e indispensável newsletter do objETHOS – Observatório da Ética Jornalística da Universidade Federal de Santa Catarina – contextualiza o acontecimento que provocou a saída da cúpula editorial da revista, formada por profissionais de reconhecida competência:
DISFARCE E ENGANO
Para quem perdeu a história, foi assim: durante um mês, o repórter João Paulo Saconi passou por sessões de coaching com Heloisa Wolf Bolsonaro, casada com Eduardo, mas em nenhum momento se identificou como jornalista. Ouviu, perguntou, anotou, observou tudo e depois escreveu a reportagem, bem ao estilo infiltrado.
O que Saconi fez não é novidade nas redações que, volta e meia, estimulam seus profissionais a usar técnicas de dissimulação, disfarce ou… enganação mesmo. Os mais cínicos justificam que omitir não é tão grave quanto mentir. Por isso, “esquecer” de se apresentar como jornalista é um pecado menor quando o interesse público está em jogo. Ok, ok, mas e quando o que se descobre nem é lá essas coisas? Vale a pena insistir?
O inquilino do Palácio da Alvorada arrepiou a nuca e mandou ver no Twitter: imprensa sem limites! Sergio Moro julgou ter sido falta de ética e Época, num primeiro momento, defendeu seus jornalistas e os métodos empregados. O deputado Eduardo Bolsonaro prometeu processar e, com isso em vista ou não, a revista recuou e admitiu ter errado.
DERRAPADA
Três dias depois de ter publicado a reportagem, em 16 de setembro, o Conselho Editorial do Grupo Globo se viu obrigado a dizer publicamente que Época havia saído da estrada. Recorreu aos Princípios Editoriais que orientam os veículos da casa para concluir que houve um equívoco. “O erro da revista foi tomar Heloisa Bolsonaro como pessoa pública ao participar de seu coaching on-line. Heloisa leva, porém, uma vida discreta, não participa de atividades públicas e desempenha sua profissão de acordo com a lei. Não pode, portanto, ser considerada uma figura pública. Foi um erro de interpretação que só com a repercussão negativa da reportagem se tornou evidente para a revista”.
Dois dias antes, o professor de jornalismo da UFRGS Luiz Artur Ferraretto já havia chegado a uma conclusão parecida, só que o erro de avaliação tinha mais a ver com a relevância (ou não) do que os editores tinham em mãos. Ferraretto lembrou de reportagem recente da mesma revista em que o repórter usou técnica de apuração semelhante, a infiltração. A diferença entre as duas reportagens? Mais uma vez, ele, o senhor interesse público.
Ah! Época pediu desculpas à nora do presidente e aos leitores. E parte da cúpula da revista deixou a publicação logo em seguida. Guarde a história, pois não é lá muito comum, né mesmo?
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A newsletter do Farol Jornalismo também acompanhou o caso, mostrando que a primeira reação da revista Época foi de defesa da matéria, antes da manifestação do grupo Globo:
A treta da semana ficou por conta da reportagem da revista Época sobre Heloísa Bolsonaro, nora do presidente Jair Bolsonaro. O episódio levantou uma discussão sobre as escolhas editoriais da pauta, que logo acabou soterrada pelo ataque da família do presidente contra jornalistas da publicação e seu impacto na redação. (Aliás, como disse Bárbara Libório, se sua crítica pública vai apenas tornar mais vulnerável a situação de um jornalista ou do jornalismo, pense duas vezes antes de lacrar nas redes.)
Logo após a publicação da reportagem, a família do presidente reagiu negativamente nas redes sociais e começaram os ataques aos jornalistas e à imprensa e ameaças sobre levar o caso à Justiça. Na sequência, a revista publicou uma nota sustentando que a reportagem havia sido produzida com “respeito à ética e à retidão dos procedimentos jornalísticos”.
Três dias após a nota, o Grupo Globo desautoriza publicamente a diretoria da revista e publica um pedido de desculpas a Heloísa. Para o conselho editorial, foi um erro “tomar Heloísa Bolsonaro como pessoa pública”.
Agora, imagina que você é a diretora de redação da Época. Bom, Daniela Pinheiro pediu demissão, assim como o redator-chefe, Plínio Fraga, e o editor Marcelo Coppola.
A Abraji saiu em defesa dos jornalistas atacados e da liberdade de veículos e jornalistas para cobrir qualquer assunto da forma como julgarem adequada. Na bolha jornalística, rolou uma discussão sobre critérios editoriais. Giulliana Bianconi, fundadora da Gênero e Número e colunista da Época, questionou a condição de pessoa não pública de Heloísa, lembrando da possibilidade da coach virar embaixatriz do Brasil nos EUA. Já a jornalista Amanda Rossi observou que a reportagem “não constatou nada que desabonasse a conduta profissional de Heloísa, mesmo assim tentou diminuí-la”.
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Na semana passada, o assunto também foi debatido no seminário “Jornalismo e Democracia”, evento promovido pelo Instituto de Estudos Avançados e pela Superintendência de Comunicação Social da USP. O professor Carlos Eduardo Lins da Silva elogiou o pedido de desculpas do Grupo Globo, mas considerou que era necessário ampliar a discussão para evitar a repetição de erros como esses num momento em que o jornalismo sofre todo tipo de pressões, que vão da violência explícita aos fatores econômicos.
Entre a intenção da pauta e o efetivamente publicado, o que justificou sua publicação? A adoção de procedimentos típicos do jornalismo investigativo – esconder a identidade do repórter para obter informações – justifica-se quando o interesse público está presente. Não é tão simples identificar o que se denomina interesse público, algo que também depende das relações contextuais.
É possível fazer uma analogia com o caso da publicação dos arquivos da chamada Vaza Jato a partir de um trabalho investigativo do The Intercept Brasil. Muito se comentou a respeito de um possível ato ilícito na forma como essas informações vieram à tona. Mas a importância delas para o processo democrático é inequívoca, a ponto do episódio ser saudado, em alguns círculos, como demonstração da importância do jornalismo para explicitar o que está obscuro nas relações entre Judiciário e poder político. No caso da reportagem da revista Época, os códigos entre a exposição de vidas privadas e a relevância da matéria se embaralharam, com evidente prejuízo para o jornalismo. A mistura de conteúdo de teor voyeurista – dar uma espiada na intimidade do casal – com aspectos políticos não foi feliz. Num momento em que sofre tantos ataques, o jornalismo crítico deve mirar o interesse público nas suas pautas, procedimentos e avaliações.