Em 21 de agosto de 2005, o então ombudsman da Folha de S.Paulo Marcelo Beraba publicou texto intitulado ‘E se for mentira?’. No texto, o jornalista expõe que as manchetes dos “três jornais que disputam mercado e influência nacional” são parecidas: “Doleiro diz que trabalhou para petistas” (Folha), “Doleiro diz ter provas de que PT mandou dinheiro ao exterior” (“Estado“) e “Doleiro preso diz à CPI que atendia a dirigentes do PT” (“O Globo“).
Ele segue destacando as “acusações, que já no dia seguinte estavam perdidas no meio da avalanche de novas confissões e delações, atingiam o PT, um ministro de Estado, o presidente do Banco Central e personagens que já vinham arrolados na crise. O preso não apresentou provas, mas garantiu que as revelaria em troca de uma revisão de pena”.
O ombudsman à época afirma ter encaminhado questionamentos dele e de leitores da Folha, acerca de uma provável “precipitação dos jornais” que teriam sido “levianos ao aceitarem as acusações sem provas”, para as direções dos três jornais e obteve respostas da Folha e de O Globo. Ele relata algumas ponderações e discussões nas duas redações sobre publicar ou não a informação, mas ressalta que o clima era de desresponsabilização.
Marcelo Beraba prossegue seu texto se perguntando: “O que leva os jornais a agir assim?”. Ele mesmo indica dois fatores principais. “Um, histórico: o medo de ser ‘furado’ pelos concorrentes, ou seja, de deixar de publicar uma informação que sabe que os outros têm. O outro, circunstancial. Houve, nesta cobertura, uma inversão no questionamento que deve presidir as decisões jornalísticas. A pergunta ‘e se tudo for mentira?’ foi substituída por outra: ‘e se tudo for verdade?'”, reflete.
“O que vem norteando a cobertura e, de uma certa forma, o próprio entendimento da população é a ideia de que, neste caso, tudo é possível”. Ou seja, se declarações prestadas em CPI tendem a ser factíveis, esta possibilidade quase automaticamente se impõe diante da possibilidade da sua não factibilidade, mesmo que, em seguida, as declarações sejam desmentidas, verificadas falsas. “Isso não livra os jornais de responsabilidade”, conclui Beraba.
Como o foco deste texto não é analisar detidamente questões político-partidárias passadas nem presentes, destaco os aspectos comunicacionais e jornalísticos que me são caros nas palavras de Beraba: “três jornais que disputam mercado e influência nacional”, “já no dia seguinte estavam perdidas no meio da avalanche de novas confissões e delações”, “precipitação dos jornais”, “levianos ao aceitarem as acusações sem provas”, “o medo de ser `furado´ pelos concorrentes”, “e se tudo for verdade?”.
Por volta das 22h07 do dia 28 de outubro, a divulgação da apuração dos votos feita pelo TSE anunciava que Jair Messias Bolsonaro estava eleito presidente do Brasil. A isso, sucederam-se o primeiro discurso do presidente eleito em uma transmissão ao vivo no Facebook, para só depois discursar aos jornalistas no Rio de Janeiro, e um editorial da Folha intitulado `Constituição acima de todos´, em que o jornal frisa “o papel da imprensa livre nas sociedades modernas”.
Eram 13h26 do dia seguinte quando a Folha publicou a primeira versão do texto intitulado ‘Colômbia sugere aliança com Bolsonaro para derrubar Maduro’. Sylvia Colombo abre seu texto dizendo que a “Colômbia está disposta a apoiar qualquer ação para derrubar a ditadura do venezuelano Nicolás Maduro, segundo fontes diplomáticas colombianas ouvidas pela Folha“, para em seguida abrir aspas a um `alto funcionário´ do governo de Iván Duque: “Se [o presidente eleito Jair] Bolsonaro ajudar a derrubar Maduro com uma intervenção militar, terá o apoio da Colômbia”.
O texto faz uma especulação grave, o que demanda cuidado redobrado em relação à fonte da informação que será publicada, pois trata-se, nada mais nada menos, de “derrubar” um governo.
Às 20h06 do mesmo dia, veio a negação ao texto anterior, mas sem assinatura da repórter, apenas com a indicação geográfica da redação em ‘São Paulo’. O texto intitulado ‘Colômbia nega ter sugerido aliança militar com Bolsonaro contra Maduro’ inicia afirmando que o “governo colombiano negou (…) que estaria disposto a apoiar uma intervenção militar na Venezuela feita pelo novo presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro”. O jornal assume a informação publicada e afirma “que mantém a apuração” junto à “diplomacia colombiana”.
A negação foi divulgada, em vídeo, pelo ministro de Relações Exteriores da Colômbia, Carlos Holmes Trujillo, nas redes sociais: “O Ministério das Relações Exteriores, em nome do governo da Colômbia, rejeita e nega as versões que foram publicadas hoje pelo jornal Folha de S.Paulo sobre uma suposta e inexistente sugestão da Colômbia ao presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, para derrubar o governo de Nicolás Maduro através de uma intervenção militar”.
A edição de 29 de outubro do Jornal Nacional iniciou por volta das 20h30 e apresentou uma entrevista ao vivo com o presidente recém-eleito. Após alguns minutos, vieram as declarações mais polêmicas: “[Sou] totalmente favorável à liberdade de imprensa”, disse Bolsonaro, “mas temos a questão da propaganda oficial de governo, que é outra coisa”. Em tom de ameaça, insinuou que a Folha de S.Paulo, jornal impresso com maior circulação no país, não receberá verbas da propaganda oficial do governo. “Não quero que [a Folha] acabe. Mas, no que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal”. E completou: “Por si só esse jornal se acabou”.
A “maneira indigna” a que Bolsonaro se referia é a denúncia feita através da reportagem ‘Bolsonaro emprega servidora fantasma que vende açaí em Angra’, publicada em 11 de janeiro de 2018. Estava deflagrado o conflito entre o jornal e o presidente eleito. Bolsonaro nega as informações publicadas. A Folha sustenta reiteradamente a correção da reportagem.
Na madrugada (1h59) do dia 2 de novembro, a jornalista Daniela Lima, então responsável pela coluna Painel da Folha, publicou o texto intitulado ‘Especulação precoce sobre ida de Moro para o STF irrita ministros’. E anunciava logo de partida: “Presente de grego – O convite de Bolsonaro a Moro, com a perspectiva de posterior indicação ao STF na vaga de Celso de Mello, que se aposenta em 2020, teria ultrajado o decano. Segundo ‘uma pessoa próxima’, ele se sentiu ofendido. Detalhe: a resposta de Moro veio no dia do aniversário de Mello”.
Eram 11h31 quando a mesma coluna Painel publicou o texto ‘Decano do Supremo nega ter feito comentário sobre especulação de Moro na corte’ e apresentou o desmentido ao jornal. “Não procede informação divulgada na mídia, nesta sexta-feira (02/11), de que o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, ter-se-ia sentido ‘ultrajado’ com a perspectiva de posterior indicação de Sérgio Moro ao STF, em vaga decorrente da futura aposentadoria do decano”, diz a nota enviada pelo tribunal. “O ministro Celso de Mello jamais deu qualquer declaração a respeito do assunto e repudia, veementemente, a notícia divulgada”.
Segundo a pesquisadora Rita Lopes da Universidade da Beira Interior, em Portugal, “a notícia como construção da realidade e a ideia de negócio entre partes para enquadramento noticioso” compõem os dois conceitos-base acerca da “relação entre jornalistas e fontes de informação na produção da notícia”. Assim sendo, diz Lopes, a “notícia não é o que os jornalistas pensam, mas o que as fontes dizem, mediado pelas organizações noticiosas, rotinas jornalísticas e convenções”. E completa fazendo um porém: a “notícia depende das fontes das notícias que, por sua vez, dependem da forma como o jornalista procura as fontes das notícias”.
O perigo se instala quando o jornalista se deixa domar pelo desejo de obter da fonte de informação aquilo que quer tanto quanto do modo como quer, para referendar seus anseios jornalísticos exaltados e construir a sua realidade noticiosa. A “negociabilidade da construção da notícia”, aqui, já começa viciada na procura da fonte.
“O campo da notícia é um palco de lutas pelo poder”, diz o pesquisador Rogério Santos citado pela professora Rita Lopes no livro ‘O poder dos media na sociedade contemporânea’. É importante termos em mente essa dimensão ao analisar aquela relação entre jornalistas e fontes de informação na produção da notícia inserida num contexto de “pressões de foro econômico, publicista e concorrencial”, numa espécie de “luta pela prioridade, pela nova mais nova”, explica Lopes, que ressalta: “ao jornalista estabelecem-se dispositivos de temporalidade que o obrigam a uma prática sob o signo da rapidez (ou precipitação) e da renovação permanente”.
Nesse palco, o espetáculo que tem predominado é o valor comercial resultante dessa lógica noticiosa, reforçada por agentes ou grupos comunicacionais mais afeitos aos cifrões dos cliques fáceis e rápidos do que às informações com legitimidade, correção e perspectiva democrática.
O jornalista Helio Gurovitz, no texto ‘O erro injustificável do The New York Times‘, publicou: “Num momento em que Donald Trump promove uma guerra à imprensa profissional, o New York Times cometeu um erro injustificável, ao publicar o artigo anônimo em que um ‘alto funcionário’ do governo se declara parte da ‘resistência interna’ que tenta conter os desvarios de Trump”.
“Não cabe a nenhum ‘alto funcionário’ questionar suas decisões fora dos mecanismos e instituições democráticas, nem descumprir suas ordens. É um precedente perigoso de insubordinação. Ao publicar o artigo, o Times fez o jogo do autor, interessado em proteger a própria reputação, mas incapaz de deixar o governo para denunciar Trump aos órgãos competentes”, prosseguiu Gurovitz em sua coluna no Estadão.
Paula Cesarino Costa, atual ombudsman da Folha, no texto intitulado ‘O presidente contra a imprensa‘, disse que o “embate com um presidente recém-eleito é tão desgastante quanto necessário para jornais e jornalistas. Uma reação intempestiva seria tomar Bolsonaro como inimigo a ser derrubado”.
“Ganharemos essa guerra”, alardeou Bolsonaro aos seus apoiadores na Avenida Paulista; a Folha repudiou essa fala em editorial. Neste momento de ataques generalizados ao jornalismo profissional no Brasil e no mundo, reforçá-la seria contraproducente tanto quanto dispersivo em relação ao papel dos jornalistas e à função social da imprensa. Ciente disso, Paula Cesarino Costa concluiu: “é preciso redobrar a atenção, afinar os filtros editoriais, empenhar-se ainda mais na precisão jornalística e na garantia do direito de defesa”.
“Folha sim”, afirmou James Ackel em artigo para o jornal. Antes disso, e fundamentalmente, #jornalismosim.
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Rubem Matias Filho é jornalista e historiador paraense. É aluno de Mestrado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova Lisboa, em Portugal.