Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ele não, Folha! Capítulos do embate entre o jornal e Bolsonaro

(Foto: José Dias – PR)

O mais recente capítulo do embate entre o presidente e a Folha de S.Paulo oferece uma boa ocasião para pensarmos a posição do jornal há cerca de um ano. A lembrança, me parece, pode contribuir para a compreensão do caminho que nos trouxe até a situação preocupante em que estamos.

Enquanto era apenas um deputado bravateiro escorado nas generosas benesses do Legislativo, Bolsonaro não era um problema para nosso sistema político. Ao aparecer como presidenciável com chances reais, no entanto, ele se converteu em problema potencializado por setores da sociedade que viam nele uma solução. Não me refiro apenas à parcela tresloucada que acompanha o “mito” na tela do celular, mas também a certa elite econômica que viu nele um companheiro de viagem em direção a uma política econômica mais liberalizante e, sobretudo, capaz de vencer o PT. Percebendo a confluência de interesses, Bolsonaro não tardou em escalar Paulo Guedes, conceder-lhe passe livre para falar de reformas e, assim, selar uma aliança mais ou menos explícita com parte significativa da elite econômica.

Mas a união não era simples, pois uma parte dessa elite econômica – que, por falta de termo melhor, chamo de parte “mais esclarecida” – se incomodava sinceramente com o autoritarismo que sustentou por décadas a vida política do candidato. O mal-estar não impediu a aliança, mas conduziu setores a um difícil equilíbrio entre duas canoas, entre o apoio ao discurso das reformas e a crítica ao “caráter pouco civilizado” do novo companheiro de viagem. A Folha de S.Paulo, a meu juízo, tentou se manter nesse equilíbrio.

Uma das estratégias marcantes dessa posição era a de normalizar Bolsonaro, num processo que se desenvolveu ao longo de 2018, intensificou-se no período eleitoral e apareceu de modo particularmente claro em um editorial da Folha chamado “A hora do compromisso“. O editorial me parece simbólico desta opção do jornal, porque foi publicado na tarde do histórico 29 de setembro, sábado em que ocorreu a primeira manifestação do “ele não”.

A essa altura, o fracasso da candidatura de Alckmin já era evidente e forçava parte de seu eleitorado a um desvio para junto de Bolsonaro, que, no entanto, precisava ser normalizado. É nesse contexto que a Folha cobra, em editorial, um compromisso com a democracia e, contribuindo para a normalização de Bolsonaro, estabelece uma equivalência entre ele e os demais candidatos, em especial Haddad (que então ascendia nas pesquisas). No editorial, a Folha transforma o ignóbil histórico de Bolsonaro e o uso que ele fazia disso em sua campanha em algo equivalente à posição ambígua do PT sobre a Venezuela e à afirmação de que “eleição sem Lula é fraude”.

O apoio de parte do PT à Venezuela é realmente um problema e deve ser criticado, mas é importante lembrar que Haddad é voz destoante dentro do partido a esse respeito. Deve-se notar, ainda, que o zelo democrático é muito menor quando o assunto é, por exemplo, a Arábia Saudita, para onde Bolsonaro viajou em busca de parcerias econômicas e de onde transmitiu a live tresloucada ameaçando a Rede Globo. Quanto ao “eleição sem Lula é fraude”, acho que a Vaza Jato deu respostas suficientes, porque tem confirmado aquilo de que muitos já suspeitavam à época da eleição.

Ora, no momento em que a Folha publicava esse editorial, que saiu à tarde, milhares e milhares de pessoas estavam nas ruas justamente para dizer que Bolsonaro significava uma ameaça à democracia, mas era, neste ponto, muito diferente de todos os demais candidatos; milhares de vozes gritaram que não existia equivalência possível entre ele e nenhum outro candidato relevante àquela altura, fossem Ciro, Alckmin, Amoedo, Daciolo, Meirelles, Marina ou qualquer outro. Apesar do volume dos gritos, a Folha não ouviu.

O processo de normalização do presidente se manteve e foi temperado com críticas pontuais que estão se ampliando à medida que Bolsonaro mostra que é Bolsonaro. Essa mesma dubiedade diante do incômodo companheiro de viagem marcou também a posição dos membros mais tradicionais do PSDB (historicamente próximos à Folha). Também eles apoiaram a “disposição para as reformas” ao mesmo tempo em que lamentavam a “falta de jeito” do candidato e confiavam no poder civilizador da cadeira presidencial.

Em nome das tais reformas, muitos acharam por bem fingir que Bolsonaro era um candidato normal, uma opção como as demais, apenas meio atrapalhada. O PSDB “raiz” seguiu esse caminho e foi praticamente varrido do mapa político, tendo agora que conviver com o bolsonarismo light de Doria, que se fortalece recrutando os desertores do PSL (Frota, Bebianno, Santos Cruz, Hasselmann…). A Folha tem tentado se fortalecer com o antagonismo alimentado pelo presidente e é possível que obtenha sucesso neste movimento. Apesar de minha bronca com o jornal, temo que tenha destino comparável ao de seus companheiros de longa data.

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Thiago Dias é doutor em filosofia pela USP e membro do Centro de Estudos Hannah Arendt.