As repórteres Elvira Lobato e Ana Terra Athayde mostraram no final do ano passado, no Observatório da Imprensa, as dificuldades do jornalismo local de Mariana para cobrir os impactos da tragédia ambiental do rompimento da Barragem do Fundão, em 2015. A reportagem foi parte da segunda fase do projeto Atlas da Notícia — conteúdo sobre a imprensa no país. O novo crime ambiental em Brumadinho motiva um retorno às reportagens , principalmente para buscar nelas não só erros a serem evitados, como reflexões sobre o alcance do jornalismo diante de tragédias que se repetem e trazem as marcas da impunidade e da injustiça.
O ponto principal no relato das jornalistas é a tensão entre a imprensa local — acusada de relativizar a tragédia ecológica e humana diante de forças econômicas e políticas — e a grande mídia — insensível ao poder da mineração no dia a dia dessas cidades. O primeiro parágrafo do texto de Elvira dá a dimensão do problema .“O município de Mariana sofreu duas tragédias simultâneas: o rompimento da Barragem de Fundão, em 5 de novembro de 2015 — que matou 19 pessoas, dizimou povoados e deixou um rastro de destruição até a foz do Rio Doce, no Espírito Santo —, e a explosão do desemprego pela paralisação das atividades da Samarco”.
Os jornalistas locais, por sua vez, argumentaram que a mídia nacional e internacional ignorou os índices de desemprego na cidade — o dobro da média nacional — e o impacto econômico nas regiões atingidas. O entendimento é de que a imprensa nacional agravou a crise econômica. A insensibilidade para o cotidiano dos moradores — principalmente depois que se esgotou o tema factual do rompimento da barragem — contribuiu para deixar as coisas como estão. As autoridades afrouxam a vigilância até que a tragédia anunciada se repetiu. O jornalismo local, envolto no poder econômico da mineração, não consegue fazer muito e se depara com o aumento crescente das filas de desempregados, como aconteceu em Mariana.
O rompimento da barragem em Brumadinho desmascara todos os descasos dos poderes públicos e privados. É função do jornalismo cobrar transparência e responsabilidade, mas isso não pode ser feito de maneira desconectada das demandas dos moradores da região. Fatos sociais são complexos e há décadas a mineração deixa suas marcas destrutivas na paisagem das montanhas, além de ser a principal fonte de renda dos municípios.
José Miguel Wisnik num livro recente — “Maquinação do Mundo: Drummond e a Mineração” (Cia das Letras, 2018) — reconstitui a influência da intervenção drástica da atividade na geografia da Itabira natal de Carlos Drummond de Andrade e seu impacto na produção do poeta.
Em “A montanha Pulverizada”, publicado em 1973, o poeta descreve a destruição do pico do Cauê: “chego à sacada e vejo a minha serra / a serra de meu pai e de meu avô, / de todos os Andrades que passaram e passarão, / a serra que não passa / Era coisa de índios e a tomamos / para enfeitar e presidir a vida / neste vale soturno onde a riqueza / maior é sua vista e contemplá-la. / De longe nos revela o perfil mais grave / A cada volta de caminho aponta / Uma forma de ser, em ferro, eterna, e sopra eternidade na fluência / Esta manhã acordo e não a encontro / Britada em bilhões de lascas / deslizando em correia transportadora / entupindo 150 vagões no trem monstro de 5 locomotivas / o trem maior do mundo — tomem nota — foge minha serra, vai / deixando no meu corpo e na paisagem / mísero pó de ferro, e este não passa.”
Wisnik percebe em Drummond a força da história mundial o na pequena cidade “queimando e se desnudando ali”. A serra retirada da paisagem revela a abertura para a máquina do mundo e a impossibilidade da permanência. “Como o sertão para Guimarães Rosa a Itabira de Drummond também é o mundo — só que , nesse caso, um mundo em que o mundo vai engolindo o mundo, movido pela geoeconomia e pela tecnociência”, escreve. A arte poética de Drummond é, em certo sentido, o encontro entre a província e o mundo atravessado pela presença da exploração mineral que tem imposto custos altos aos moradores da região. Das paisagens retiradas da geografia ao mar de lama que corre destruindo vidas.
São esses moradores que precisam ter um protagonismo narrativo que ajude a encontrar soluções a partir das demandas reais. O jornalismo não pode abandonar a pauta tão logo a situação adquira ares de normalidade. Uma das principais conquistas do ambiente digital é a capacidade dialógica. Os recursos tecnológicos permitem uma abertura participativa aos habitantes desses lugares para que conduzam o debate.
A região de Brumadinho foi transformada, nos últimos anos, pela existência do Inhotim, grande empreendimento de arte contemporânea financiado pela indústria da mineração como anota Silas Martí na Folha de S.Paulo (26.01).”Paz, o dono do Inhotim, fez sua fortuna explorando essa mesma indústria e financiou a construção de peças faraônicas que enquadravam a violência contra o meio ambiente”. A destruição deixou sua marca de representação artística para se inscrever no real histórico. Como reconstruir a vida a partir dessa contradição?
No relato sobre Mariana, Elvira Lobato e Ana Terra Athayde identificam um jornal inovador surgido da experiência trágica do crime ambiental. A Sirene, publicação custeada pela arquidiocese, é produzida por moradores afetados pelo rompimento da Barragem do Fundão. “O uso das doações para este fim foi decidido pelos próprios atingidos e aprovado pelo Ministério Público”. Os textos são assinados tanto pelos jornalistas quanto pelos entrevistados: pessoas que tiveram suas vidas transformadas pela ruptura da barragem. Na vídeo reportagem de Ana Terra Athayde, os jornalistas falam de dificuldades de sustentação financeira do projeto e reconhecem a riqueza da experiência que poderia ser estendida à outras realidades.
O jornal laboratório do curso de jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, Lampião, também buscou o ponto de vista dos atingidos pela tragédia do Fundão. Num artigo em que avaliam a experiência, os professores André Luiz Carvalho e Karina Gomes Barbosa escrevem: “Uma das tarefas do jornalismo diante de um acontecimento como o de Mariana é tentar construir a narrativa (ou as narrativas) desse evento traumático, experienciado e testemunhado pelas pessoas atingidas diretamente por ele. A importância de tal narrativa nos aproxima da acepção de Beatriz Sarlo, para quem “não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração”.
A pauta sobre os impactos da mineração no Brasil precisa ser aprofundada. Os acontecimentos trágicos e a poesia tem nos ensinado muito sobre as desvantagens dessa exploração, teremos, mais do que nunca, de colocar pesos e medidas na balança. Há muito trabalho para o jornalismo e ele diz respeito às relações entre as cidades de minas e a máquina do mundo.
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Pedro Varoni é jornalista, editor do Observatório da Imprensa e pesquisador em pós doutorado do Departamento de Informação e Cultura da ECA/USP.