As células passam a ter um comportamento anormal, multiplicando-se de forma desordenada. É aberto, assim, o caminho para o surgimento do câncer. Quando essa alteração não se limita a um órgão, se espalhando para outros, resulta em metástase, uma forma mais agressiva da doença, que é associada com uma maior taxa de mortalidade. Assim como a metástase agride o organismo, as fake news têm o potencial de se disseminar velozmente na sociedade.
Quando o câncer é diagnosticado precocemente, maior é a chance de sucesso do tratamento. Quanto mais cedo as notícias falsas forem identificadas, menor será o seu impacto negativo. Prevenção também é uma palavra importante para as duas situações. Para que a disseminação de fake news seja evitada, é fundamental que jornalistas e comunicadores em geral estejam atentos à veracidade das informações que circulam na mídia convencional e online, nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens instantâneas como WhatsApp.
Um estudo publicado em março pelo laboratório de mídia do Massachussets Institute of Technology (MIT), tema de capa da Science, destaca que as mentiras são difundidas de forma muito mais rápida e abrangente do que as notícias reais. Segundo os autores, a probabilidade de uma fake news ser compartilhada na internet é até 70% maior. Foram analisadas 126 mil notícias postadas no Twitter de 2006 a 2017. No período, as notícias falsas atingiram mais de 3 milhões de pessoas.
Segundo o Relatório de Segurança Digital produzido pelo dfndr lab, da PSafe, especializada em cibercrime, a disseminação de notícias falsas na internet é uma prática comum também no Brasil. Entre janeiro e março deste ano, mais de 2,9 milhões de acessos a fake news foram identificados pelo sistema de segurança criado pela empresa. No entanto, a estimativa do laboratório é que o número de pessoas impactadas por notícias falsas seja ainda maior. Algo em torno de 8,8 milhões em todo o território brasileiro.
Quanto maior é o apelo popular, maior é o risco de uma notícia ganhar a sua vertente fake. O relatório mostra que as principais notícias falsas são sobre saúde (41%), seguidas por política (38%) e bastidores da vida de celebridades (18%). A pesquisa mostrou também que o WhatsApp é o meio favorito para a disseminação de mentiras.
Câncer no alvo das fake news
“A indústria farmacêutica já descobriu a cura do câncer, a verdade que a ciência não quer que você saiba”. “Vazaram informações da OMS que a mídia tenta esconder da sociedade”. “O governo distribui vacinas porque quer que você adoeça”. Todas as frases desse parágrafo são teorias da conspiração que circularam no ciberespaço. Quanto mais elas são construídas com características semelhantes das notícias verdadeiras, mais as fake news sobre câncer desinformam e dificultam o acesso e assimilação às notícias baseadas em evidências científicas.
Em 2016, em pleno Outubro Rosa, mês de conscientização sobre a importância do diagnóstico precoce de câncer de mama, uma mulher — que não se identifica — diz em um vídeo que viralizou no WhatsApp, que a mamografia aumenta o risco de desenvolvimento de câncer de tireóide em razão da radiação que o exame emite. A pessoa em questão atribui a informação ao médico e comunicador Dráuzio Varela, que teria trazido esse dado em reportagem no Fantástico. A referida matéria nunca existiu. “Passamos tantos anos insistindo que as mulheres façam mamografia anualmente a partir dos 40 anos, e uma pessoa infeliz dessa usa meu nome para assustar as mulheres”, disse Dráuzio em seu canal no YouTube.
O vídeo alarmista reproduziu uma falsa notícia que já havia circulado em 2013, época em que foi atribuída ao programa americano de TV The Dr. Oz Show, apresentado pelo médico Mehmet Öz, nos Estados Unidos. Entre 2014 e 2015, uma versão em texto passou a circular entre os brasileiros no WhatsApp, já sendo atribuído a Dráuzio Varella, que é oncologista. Mas foi por meio do vídeo que a notícia falsa disseminou mais agressivamente. A mídia convencional teve uma papel importante na desconstrução desse factoide, trazendo reportagens, como essa do Jornal da Band ressaltando a eficácia e segurança da mamografia. No entanto, nem sempre a informação verdadeira é capaz de desconstruir uma mentira por completo.
Com o objetivo de frear a disseminação de fake news, o Instituto Oncoguia criou um serviço pelo qual o usuário pode enviar, por WhatsApp, uma determinada notícia que está circulando e especialistas respondem se a informação é ou não verdadeira. Entre março e julho de 2018, o serviço checou 163 mensagens. Desse total, 94,9% eram falsas. Mais de um terço dessas mentiras (37%) eram diversas correntes sobre tratamentos. Dentre as mentiras específicas, a mais prevalente foi “açúcar causa câncer”, seguido por “consumo de graviola cura câncer” (16%), “limão cura câncer” (12%) e “fosfoetanolamina cura câncer” (8%).
Mídia como disseminadora
A repercussão das fake news não é uma ação exclusiva do público leigo. Aliás, não são poucos os casos em que as mentiras sobre câncer são propagadas pela mídia. O caso recente mais emblemático foi a chamada pílula do câncer. Uma reportagem publicada pelo G1 de São Carlos deu visibilidade nacional para uma substância que, apesar dos resultados insatisfatórios em modelos in vitro (em células) — etapa que antecede aos estudos em animais e em humanos —, foi propagada pela mídia como a cura contra todos os tipos de câncer.
O assunto gerou grande comoção social e política. Juízes se sobrepuseram à necessidade de evidências científicas e exigiram que o composto fosse estudado. O protocolo clínico foi liderado pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) e os relatórios concluíram que a fosfoetanolamina se mostrou inócua no combate à doença. Desperdício de investimento de recursos públicos que poderiam ter sido direcionados para fomentar pesquisas de fato promissoras.
Em outros casos, a forma como a mídia retrata determinados assuntos gera uma interpretação equivocada e alarmista. Em 2015, a OMS divulgou uma meta-análise (revisão de vários estudos) que afirmava que o consumo de uma porção diária de 50 gramas de carne processada aumentava em 18% o risco de câncer colorretal.
A mídia interpretou o estudo com um certo exagero, como foi o caso da manchete da BBC — “Linguiça, bacon e presunto são cancerígenos, diz OMS”. De fato, esses alimentos, quando consumidos em excesso, aumentam — como já foi dito — em 18% o risco de ocorrer um câncer no cólon (intestino grosso) e reto. Mas o consumo abaixo de 50 gramas por dia foi avaliado como sendo seguro. E isso ficou em segundo plano ou foi omitido pela mídia.
Outro alarmismo promovido pela imprensa nasceu de um posicionamento infeliz dos conceituados cientistas Bert Vogelstein e Cristian Tomasetti, do Johns Hopkins Hospital. Em 2015, eles publicaram na Science um artigo que aborda o papel de mutações aleatórias, ocorridas principalmente em células-tronco normais do nosso corpo como as desencadeadoras de câncer. Usando um termo trazido no estudo pelos autores, a mídia estampou manchetes que afirmavam que o câncer era resultado do simples azar.
Ao fazer a associação entre azar e desenvolvimento de câncer, os autores, mesmo que involuntariamente, colocaram em xeque as políticas de prevenção, fato que poderia estimular a sociedade a não adotar medidas saudáveis como evitar o consumo em excesso de álcool, não fumar, evitar dietas ricas em gorduras e açúcares e também a exposição à radiação solar (raios UVB). Embora uma grande parcela das mutações ocorra sim de forma aleatória, os fatores ambientais funcionam como gatilho para que essas alterações no DNA resultem em câncer. Prevenção, portanto, não pode ter a sua validade questionada.
A mídia, enquanto formadora de opinião, não tem exercido apenas o papel de vilã. Pelo contrário, tem sido fundamental na desmitificação dos mais variados temas sobre câncer, conscientizando a população sobre a importância da prevenção e diagnóstico precoce do câncer e alertando para a necessidade de ser oferecido acesso universal ao que há de mais avançado em tratamento e reabilitação. Mas, é claro, sempre é possível evoluir.
Por meio da recém-criada Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RBJCC), temos o objetivo de favorecer a melhora constante da formação dos profissionais que difundem informações sobre saúde e todas as outras especialidades, tornando possível um cenário em que o noticiário sobre câncer, baseado em evidência científica, seja sempre dominante. Com isso, limitaremos o potencial de disseminação das fake news e, quem sabe, sejamos capazes de contribuir também para a redução da mortalidade por câncer.
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Criada em 2018, a Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RBJCC) visa aproximar os profissionais que trabalham nessa área, chamar a atenção para a importância de divulgar conteúdos relacionados à ciência e, de maneira geral, melhorar cada vez mais a qualidade do que é produzido e publicado sobre saúde, meio ambiente, física, astronomia, agronomia e demais temas dentro dessa editoria.