Algumas semanas atrás, foi amplamente noticiado que o quadro Pool with two figures, do artista David Hockney, havia sido vendido por US$ 90,3 milhões num leilão em Nova York, sendo a obra mais cara a ser leiloada de um artista vivo. A notícia tomou conta dos telejornais matinais. O Bom dia Brasil, da TV Globo, relatou o fato e contextualizou dizendo que o homem retratado na piscina era um antigo amor do pintor.
Poucos minutos depois, o Balanço Geral da TV Record noticiou o mesmo fato, mas, na descrição da pintura, a apresentadora disse que se tratava de “um homem nadando na piscina”. E nada mais.
No jornalismo, o silêncio pode, às vezes, dizer muito mais coisas do que as palavras. Aquilo que não foi notícia, mas possuía relevância, atualidade ou regionalidade pode falar muito mais de um tempo e de um povo do que aquilo que ganhou os noticiários. O exemplo acima ilustra uma tendência que poderá se acentuar a partir de 2019, com a ascensão de um governo conservador e tido, por muitos analistas, como de extrema direita. Emissoras abertas são concessões públicas e, historicamente, fazem bons grados ou relações amistosas com o governo no poder. Qualquer governo.
Na reta final das eleições deste ano, o grupo de Edir Macedo declarou abertamente apoio ao então candidato do PSL, Jair Bolsonaro. Junte-se a isso o fato de a Record ser um grupo de mídia com programação jornalística e de entretenimento altamente pautados por uma visão conservadora e religiosa (cristã). O silêncio na notícia acima, portanto, faz todo o sentido.
Se o presidente eleito e seu time levar a cabo as promessas (e ameaças) das eleições, haverá perseguições — abertas e veladas — a grupos de mídia cujo perfil de notícias nem sempre agrada a eles. Assim como o presidente dos EUA, Donald Trump, esses grupos de mídia serão descreditados publicamente pelo governo, tachados de ideológicos de esquerda, comunistas, fábricas de fake news etc.
O cenário é muito perigoso, não pela falta de coragem da grande mídia de se manter eticamente íntegra ao respeito por todos os ângulos de uma notícia, mas pelo fato de que todos os grupos de mídia — sem exceção — passam por uma grave crise financeira há pelo menos meia década no Brasil. Instabilidade financeira é o celeiro perfeito para reajustes ideológicos ao lado de quem está com o poder nas mãos.
O jornalismo cultural é responsável por cobrir as manifestações relevantes nos campos da arte e do entretenimento. E arte e entretenimento só são relevantes quando criados da maneira mais livre, corajosa e desimpedida possíveis. Do contrário, está-se fazendo pãezinhos numa fila insignificante de produtos.
Silenciar-se diante do que é criativo, novo, reflexivo e corajoso é um dos maiores pecados capitais que o jornalismo cultural poderá fazer. Silenciar, como fez a notícia da TV Record, pode ser até pior do que criticar, condenar. Pois, ao menos, na crítica se tem a possibilidade de conhecimento de um fato, e hoje, com múltiplas fontes de informação, a notícia criticada por um pode ser esclarecida em outro veículo no alcance de um clique.
Vamos imaginar um cenário no qual o silêncio tomasse conta do jornalismo cultural nos outros campos da arte e do entretenimento. Imagine que a série de TV Modern Family, por exemplo, arrebate um recorde de prêmios no Globo de Ouro ou no Emmy do ano que vem, mas algum veículo decide não noticiar o fato porque, no programa, um dos núcleos familiares é composto por dois homens e uma filha adotiva. A série é considerada uma das mais inteligentes e divertidas feitas na TV mundial atualmente. Mas, para uns, é justamente aí que remonta o perigo de noticiar o fato. Melhor silenciar.
Ou então um chef cria uma bem sucedida rede internacional de restaurantes veganos como forma de conscientização ambiental e alimentação saudável. E está chegando ao Brasil. Mas aí um grupo de mídia prefere não comentar o assunto porque isso fere a diretriz da bancada ruralista e, portanto, corre-se o risco de ser descreditado pelo grupo no poder. Melhor silenciar.
Agora imagine se fosse nos próximos quatro anos que Madonna trouxesse ao Brasil a turnê de Confessions, na qual ela simula ser crucificada numa cruz gigante e cheia de luzes. Apoiar jornalisticamente a proibição do show ou, se o show fosse autorizado, criticar a apologia bíblica seriam males menores do que simplesmente não noticiar fato.
Pode parecer coisa de outro mundo um tipo de autocensura como esta, mas exemplos não faltam de povos e países que vivem debaixo de uma avalanche de filtros e bloqueios jornalísticos. Já que estamos no campo da música, lembra daquele documentarista britânico que perguntou, numa sala de aula norte-coreana, quem era Michael Jackson e ninguém soube responder?
Os outros campos da arte e do entretenimento podem ser ainda mais preocupantes. Torçamos para que o Brasil tenha instituições reguladoras e democráticas sólidas o suficiente para permitir que a literatura nos dê versões brasileiras de livros investigativos como Medo: Trump na Casa Branca, do jornalista Bob Woodward. E, por consequência, o jornalismo cultural tenha a sobriedade ética de analisar tais obras.
Imagine um cenário onde, por muita sorte do destino, é levada para os palcos de Nova York a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, em que uma transexual interpreta Jesus — e acaba ganhando o Tony, o prêmio mais importante do teatro. A peça foi tirada de cartaz no Brasil — antes mesmo do governo Bolsonaro. Noticiar este prêmio daria oportunidade para refletir sobre o conteúdo e as intenções do dramaturgo e pensar sobre a proibição ocorrida no Brasil. Melhor silenciar.
Mais sorte ainda seria se algum cineasta brasileiro conseguisse não depender de nenhum recurso via editais e leis de fomento e fizesse, por exemplo, uma versão com abordagem das questões brasileiras do documentário de fôlego — e divertidíssimo — que fez Michael Moore em Fahrenheit 11 de setembro no ano da reeleição de George W. Bush. Ou uma versão brasileira de Vice, filme que satiriza Bush e seu vice, Dick Cheney, e que lidera a corrida pelo Globo de Ouro. Documentário ou ficção, obras polêmicas, divertidas, que atiçam a reflexão, olhar por outros ângulos, sem mitos nem pedestais. Melhor silenciar.
Leitores, internautas e telespectadores precisam ter consciência de que o silêncio poderá ser uma poderosa arma de alguns grupos de mídia contra fatos que são contra seus interesses particulares. Deixar de noticiá-los fere toda ética e padrão de qualidade jornalísticos. Se uma árvore caiu no meio da floresta e ninguém viu nem ouviu, esta árvore caiu? Para muitos grupos de mídia, a partir do próximo ano, ela nem mesmo existiu.
**
Franthiesco Ballerini é autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’ e finalista do 60º Prêmio Jabuti por ‘Poder Suave – Soft Power’.