Texto publicado originalmente pelo objETHOS.
“Os fatos são o que menos importa nas grandes reportagens”. Com esta frase, escrita na medida para causar surpresa e instigar a leitura, Eugênio Bucci abria o texto da orelha do livro A arte da reportagem, uma coletânea organizada por Igor Fuser e publicada pela primeira vez em 1996. Na sequência, Bucci esclareceria: não estava rejeitando a objetividade e o respeito à verdade factual, mas assinalando que isto não era suficiente para se fazer jornalismo. “A questão, portanto” — prosseguia ele —, “não são os fatos, mas os sentidos que eles possam ter”. E, por isso, “o repórter deve entender o que ele tem a narrar”.
Ressuscitei este breve texto de Bucci porque ele se aplica, a rigor, a toda prática jornalística – não apenas às grandes reportagens —, porque mostra que todo relato, por mais “objetivo” que seja, implica e exige uma interpretação, e porque vem bem a propósito da recente polêmica em torno da atuação das agências de checagem, no episódio do terço abençoado pelo papa que o ex-presidente Lula recebeu na prisão, sem que seu portador, entretanto, tivesse sido autorizado a entregá-lo pessoalmente.
Desde que as primeiras dessas agências surgiram no Brasil, em 2015, na esteira de iniciativas semelhantes nos Estados Unidos e na América Latina, repetem-se comentários entre o espanto e a ironia: afinal, checar os fatos não é a tarefa elementar do jornalismo? Fornecer informação confiável não é o que o justifica como atividade socialmente necessária? Certamente sim, de modo que a existência dessas agências, por si, já indicaria quanto o jornalismo vem deixando de cumprir seu compromisso básico. Poderíamos, entretanto, pensar no papel dessas agências de maneira mais ampla, voltada não para verificar o que a mídia tradicional produz, mas para filtrar o que seria ou não confiável em meio à overdose de informação que passou a circular desde que a internet ofereceu essa possibilidade de comunicar com tamanha intensidade, velocidade e imediatismo.
Foi esse o propósito, aliás, que levou o Facebook a contratar os serviços das agências Lupa e Aos Fatos para fiscalizar o que se divulga nas redes nesse período em que a campanha eleitoral começa a esquentar, num quadro de inédita tensão e imprevisibilidade na política brasileira desde, pelo menos, o fim da ditadura militar. Seria uma forma de demonstrar que a empresa, abalada pelo escândalo da sua relação com a Cambridge Analytica nas campanhas do Brexit e de Trump, no ano passado, está empenhada em evitar a disseminação de notícias falsas como as que costumam proliferar de maneira muito mais intensa em momentos como esse. O trabalho dessas agências seria, portanto, um “selo” de qualidade para quem participa dessa mídia social. Um “selo” que as empresas jornalísticas tradicionais já carregariam automaticamente, como se, de fato, cumprissem seus princípios editoriais.
É notório, aliás, o esforço que essas empresas vêm fazendo para demarcar-se como referência de credibilidade em relação ao que circula na internet. O mais recente projeto editorial da Folha de S.Paulo, lançado em março do ano passado, é bem claro a esse respeito já no título: “Jornalismo profissional é antídoto para notícia falsa e intolerância”. Adiante, define o ambiente das redes como “um condomínio fechado das convicções autorreferentes”, produzido pelos algoritmos que “garantem índices elevados de audiência para as multinacionais do oligopólio” e “alimentam o sectarismo e a propagação de inverdades”. A contrapartida ao condomínio seria a praça pública representada pelo próprio jornal, “em que se contrapõem os pontos de vista mais variados e onde o diálogo em torno das diferenças é permanente”.
Como se vê, uma das características de quem redige esses projetos editoriais é o senso de humor.
(No caso específico da Folha, recordemos apenas dois episódios marcantes, entre muitos outros: o da ficha falsa de Dilma Rousseff, reproduzida supostamente dos arquivos do Dops, destaque de primeira página em abril de 2009, cuja autenticidade, semanas depois, o jornal afirmou que não poderia ser assegurada nem, tampouco, descartada, e a fraude aos resultados de uma pesquisa de seu próprio instituto, o Datafolha, para sustentar que Temer “é melhor para o país” – manchete de julho de 2016 –, quando a maioria dos entrevistados pedia a antecipação das eleições).
Questões de método e ideologia
No que diz respeito ao trabalho das agências de checagem, o que está em causa são justamente os pressupostos e métodos.
Já em 8 de abril, o cientista político Luis Felipe Miguel, da UnB, demonstrava as distorções resultantes do tipo de “checagem” feito pela Lupa, que, em texto publicado na Folha de S.Paulo naquela data, apontava “três dados falsos e três verdadeiros ditos por Lula” em seu comício no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, horas antes de ir para a cadeia. Por exemplo, entre as “verdades”, a agência “transforma a afirmação de Lula – ‘fui o presidente que mais fez universidades’ – e conclui que ele ganha no olho mecânico, pois ‘durante a gestão de Lula, foram criadas 28 universidades’ e ‘no governo Fernando Henrique Cardoso foram 27’”, esquecendo que o petista criou 23 universidades públicas, enquanto, com FHC, “foram quase todas privadas (só seis federais, cinco delas como conversão de instituições já existentes). Sem falar na expansão de vagas, contratação de docentes, multiplicação de campi. Ou nos institutos federais. Ou na democratização do acesso”. Em suma, diz o professor, “o que o fact checking faz é manipular a realidade para diminuir o contraste, brutal, entre o governo Lula e o governo FHC no que se refere ao ensino superior”.
É apenas um exemplo do tipo de contextualização que a agência faz, a partir da apuração da veracidade ou falsidade de “frases” a serem investigadas, e que dão início à investigação, como consta na explicação de sua metodologia.
Pior ainda, comenta Luis Felipe, “é o que fica de fora. A Agência Lupa não tem nada a dizer sobre os elementos centrais do discurso de Lula – o golpe de 2016, a perseguição judicial contra ele, a falsidade das acusações, a parcialidade do Judiciário. É como se tudo isso não fosse uma questão de verdade, mas apenas bate-boca da disputa política. Com isso, o fact checking cumpre seu papel ideológico de legitimação da narrativa dominante”.
Daí a sua conclusão, que corrobora o que diz “há tempos” o professor da UFF Afonso de Albuquerque: a de que “o fact checking” – feito dessa forma, acrescento eu, e a ressalva me parece fundamental – “é a maior fake news”. Porque engana no essencial, com seu “poderoso reforço à ideia de que a ‘realidade’ é uma coleção de fatos ‘objetivos’, independentes da narrativa que os organiza, e portanto que o jornalismo ‘imparcial’ apresenta a seus leitores nada menos que a verdade”.
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Na mesma linha de raciocínio, o jornalista Hugo Souza contestou, em 23 de maio, a agência Aos Fatos, que resolveu checar as “propostas” de Michel Temer no segundo aniversário do seu governo – ou seria o golpe? não, a própria agência há havia cravado o selo de “exagerado” nessa definição do impeachment. “Como se as propostas do documento ‘Ponte Para o Futuro’ fossem, assim, luminosas promessas de campanha, e não o exato oposto disso”, argumenta Hugo: “essas ‘reformas e ajustes’ ora são feitos por um governo sem respaldo democrático para fazê-los, precisamente porque foram quatro vezes consecutivas reprovadas nas urnas”.
O caso do terço e a “disputa de narrativas”
No dia 11 de junho, começou a circular nas redes do PT ou identificadas genericamente à esquerda, e também em vários sites jornalísticos, a notícia de que o papa havia enviado um terço a Lula, e que seu emissário, o advogado Juan Grabois, tinha sido impedido de entregá-lo pessoalmente. Tanto a Lupa quanto a Aos Fatos foram “checar” a informação e rapidamente lhe pregaram o selo de “FALSO”, baseando-se numa primeira nota do site VaticanNews, que depois, entretanto, seria retificada. As duas agências atualizaram a informação, mas Aos Fatos e, num primeiro momento, também a Lupa mantiveram o selo. No dia 13, depois que Grabois publicou uma carta no Facebook (ver o original aqui e aqui) dando a sua versão do ocorrido, a Lupa mudaria o selo para “DE OLHO” e acrescentaria um texto explicativo com uma placa de “ATENÇÃO”.
Nesse meio tempo, porém, o jornalista Renato Rovai, editor da Forum, anunciou que a página da sua revista no Facebook havia sido notificada de que “estava sendo punida e poderia ser suspensa por ter espalhado maliciosamente fake news”, e que outros dois sites de esquerda, o DCM e o 247, sofreram a mesma ameaça. Isso pôs em pauta as consequências desse trabalho de checagem, considerando que ele é feito nessa “parceria” com o Facebook: seria, segundo Rovai, uma forma de censura, seja pela hipótese de suspensão das publicações ou da redução de seu alcance. Em outro artigo, publicado dia 14, o editor relaciona os problemas envolvidos nesse episódio, destacando a necessidade de manutenção de um “pacto mínimo entre veículos de qualquer viés ideológico em defesa da liberdade de imprensa”.
Pois a questão de fundo, como sempre, é a do viés ideológico, ainda mais grave quando não reconhecido, porque nesse caso fica oculto. Afinal, para as duas agências, tudo o que importa nesse caso é se a frase “Papa envia terço a Lula” é verdadeira. Certamente a notícia serviu na guerra ideológica – hoje, eufemisticamente, chamada de “disputa de narrativas” – que se trava hoje no país em torno da figura do ex-presidente e de seu papel na campanha eleitoral. É do interesse do PT afirmar que o terço foi um presente do papa, mas a confirmação disso não é simples como poderia parecer a princípio.
Ao alterar seu selo de “falso” para “de olho” – a etiqueta relativa a informações que ainda estão sendo acompanhadas –, a Lupa informou que estava aguardando “um esclarecimento oficial e definitivo” do Vaticano “sobre o desejo do Pontífice em dar um terço ao ex-presidente”.
Talvez os checadores ignorem os meandros da política e da diplomacia, em especial quando envolvem a mais alta autoridade da Igreja Católica. Talvez porque estejam acostumados – treinados? adestrados? – a dar vereditos definitivos e, pior, imediatos, como se tornou hábito entre jornalistas.
Afinal, como lembrou Hugo Souza num dos textos que publicou sobre esse tema, seria facilmente checável que o mesmo terço entregue a Lula foi enviado recentemente pelo papa a dois notórios presos políticos na América Latina. E que “tantos outros episódios envolvendo o ‘carismático’, o ‘revolucionário’ Francisco – como o ‘Deus te fez assim e te ama’ dito a um homem gay” renderam “tantas páginas de jornal e horas de telejornal no Brasil e no mundo”, sem jamais terem sido claramente confirmados pelo Vaticano nem, tampouco, negados.
Em seu último artigo sobre esse caso, Hugo demonstra exemplarmente a complexidade do trabalho jornalístico, expressão das contradições, ambiguidades e incertezas da própria vida, e por isso a impossibilidade de um verdadeiro trabalho de checagem limitar-se à simplificação classificatória dos “selos”:
“Não é difícil supor que, à luz de tudo disso, à pergunta ‘Papa enviou terço a Lula?’ aparecerão as respostas mais ao gosto dessa ou daquela visão política, dessa ou daquela visão do Brasil, até desse ou daquele ódio, e nem por isso terão que virar questões de ‘verdadeiro ou falso’, como nos testes da escola primária. Isso porque a realidade, a própria vida que se faz, é uma ambígua incorrigível, cheia de nuances, dada a interpretações, passível de argumentos, crivada de contradições, tantas que nem mil e uma etiquetas de checagem serão um dia capazes de abarcar, muito menos resolver — como as contradições no seio do Vaticano. A não ser quando se trata de desmentir boatos sobre doações de filhotes de labrador.
“Assim, as agências de fact checking, também elas, veem-se agora, ou melhor, mais que nunca, em dificuldades com uma questão fundamental do jornalismo, a credibilidade, porque, afinal, é precisamente o mais elementar em matéria de jornalismo o que elas se propõem a fazer, e reivindicando o suprassumo da excelência: o trabalho de checagem. Pois, no fim das contas, o que está sempre em jogo, com lupa, com pena ou microfone na mão, em matéria de jornalismo, é a ética, a responsabilidade, o compromisso com o direito das pessoas do nosso tempo à informação fidedigna, o que significa ter sempre em vista, em vez de tentar expurgar, aquelas mais de mil e uma contradições”.
Seria o caso de recordar uma famosa e premiada propaganda institucional da Folha, lançada em 1987, na qual o locutor em off vai relacionando uma série de feitos de um líder político, todos muito positivos, sobre uma imagem reticulada e indefinida, até que, ao final do texto, o foco se fecha subitamente e exibe o rosto de Hitler. Então, o locutor diz: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”.
É exatamente isso: tomadas isoladamente, todas aquelas frases mereceriam o selo de “verdadeiro”, caso fossem “checadas” pelos métodos utilizados por essas agências. Vistas em conjunto com o que não foi dito, apreendidas em seu contexto histórico, o resultado seria o oposto. Precisamente porque, para o jornalismo, o que menos importa são os fatos.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora aposentada da UFF, pesquisadora do objETHOS.