Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Por que a crise argentina não é devidamente destacada na grande mídia?

(Foto: Presidencia da Argentina – Fotos Públicas)

De maneira geral, a América do Sul é pouco mencionada nos noticiários internacionais da grande mídia brasileira. Nos principais jornais, revistas e emissoras do país, temos mais informações sobre os Estados Unidos, a Europa ou mesmo o Oriente Médio do que propriamente de nossos vizinhos subcontinentais. Historicamente, o Brasil se desenvolveu “de costas” para a América do Sul; seja por causa do idioma, por ter sido a única monarquia em meio a várias repúblicas após o processo de independência ou por economicamente privilegiar os laços com nações de outros continentes. Essas questões explicam, em grande medida, porque os brasileiros, em geral, e a mídia, em particular, demonstram pouco interesse em ter conhecimento sobre acontecimentos que envolvam as outras nações sul-americanas.

Não obstante, conforme pontuou a professora da UFABC, Margareth Steinberger, em seu livro Discursos geopolíticos da mídia: jornalismo e imaginário internacional na América Latina, a América do Sul ainda constrói práticas sócio-informativas a partir de um imaginário colonialista. Isso significa que as informações que as nações do subcontinente recebem sobre os países vizinhos não são geradas diretamente por eles, mas por agências de notícias sediadas nos países desenvolvidos. Diante dessa realidade, governos sul-americanos que, de alguma forma, representem obstáculos para a expansão capitalista tendem a ser representados negativamente na mídia; e, por outro lado, mandatários que mantenham posturas favoráveis aos interesses das grandes potências mundiais são retratados de maneira positiva e os equívocos de seus governos são estrategicamente escamoteados do grande público.

Nesse sentido, dificilmente (para não dizer impossível) teremos alguma notícia na mídia hegemônica sobre as constantes violações aos direitos humanos praticadas pelos governos pró-imperialistas na Colômbia, em relação ao grande número de idosos que cometeram suicídio no Chile após a reforma previdenciária promovida naquele país ou do acordo secreto entre os governos de extrema-direita do Brasil e do Paraguai para a renegociação dos termos de distribuição de energia da usina hidrelétrica binacional de Itaipu (o que quase levou à abertura de um processo de impeachment contra o presidente da nação guarani).

Seguindo essa linha editorial, os grandes grupos de comunicação brasileiros e seus principais articulistas receberam com bastante entusiasmo a notícia de que a eleição presidencial argentina de 2015 teve como vencedor o empresário e ex-presidente do Boca Juniors Mauricio Macri, candidato que apresentava como principal promessa de campanha colocar em prática a agenda política neoliberal; isto é, menos Estado e mais mercado, em nome da “austeridade fiscal”. Sendo assim, Globo, Bandeirantes, Veja, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo foram unânimes sobre a convicção que a vitória de Macri sobre o “populismo kirchnerista” (representado por Daniel Scioli) traria novos investimentos internacionais para a Argentina, eliminaria a corrupção estatal e reequilibraria as contas públicas, o que aqueceria a economia de nosso vizinho platino.

Na época, a revista Isto É enfatizou que a vitória de Mauricio Macri colocou fim ao ciclo que levou a Argentina para o buraco. Para o site O Antagonista, Macri era um “exemplo para o Brasil”. Por sua vez, a Folha de S.Paulo apontou que ex-presidente do Boca Juniors devolveria a competitividade da economia argentina. Já o Jornal Nacional destacou que Macri, no discurso de posse, “reafirmou seu compromisso com a ‘pobreza zero’, prometeu ser implacável contra a corrupção, defendeu a independência do Judiciário, o direito à informação e à transparência de dados”. No Programa Miriam Leitão, da GloboNews, Luiz Felipe Lampreia, ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso, teceu vários elogios ao ministro da Economia de Macri, Alfonso de Prat-Gay. Para a revista Época, a vitória do “apolítico” Macri foi um “não” ao autoritarismo e à polarização política.

No final de 2015, ainda durante a euforia pós-eleitoral, o Movimento Brasil Livre (MBL), conhecido por difundir ideias de extrema-direita no Brasil, publicou em sua conta no Facebook a seguinte frase: “Argentina vive dias mais liberais – e distantes do bolivarianismo kirchnerista – e seu povo reconhece a melhoria”. Por sua vez, o atual governador de São Paulo, João Doria, após uma visita a Buenos Aires em setembro de 2017, escreveu no Twitter: “Nossas ideias são absolutamente iguais, sem retoque. Foi um encontro inspirador, Macri é absolutamente inspirador”. No mesmo ano em que Doria visitou Macri, Miriam Leitão, conhecida por suas previsões econômicas equivocadas, apontou em sua coluna no jornal O Globo que a Argentina estava em recuperação e poderia crescer 3% em 2017 e 4% em 2018; e que o ajuste promovido pelo governo traria resultados positivos para a população.

Quatro anos depois de eleito, conforme (tragicamente) era de se esperar, o governo Macri se mostrou desastroso. De acordo com dados divulgados pelo jornalista Helio Gurovitz, justamente um dos principais porta-vozes do mercado financeiro na imprensa brasileira, em três dos quatro anos de Macri à frente da Casa Rosada, o PIB argentino encolheu. A estimativa para este ano é de queda de 1,2%. De 25% em 2017, a inflação subiu para 44% na previsão para 2019, bem acima dos 30% previstos. O déficit primário, de 2,6% do PIB em 2018, está estimado em 0,3% para 2019. A dívida pública fechou o ano passado em 87% do PIB. A dívida externa beira os 60% e a necessidade de financiamento do governo supera 15% do PIB. Em 2018, o peso argentino perdeu 35% do poder de compra.

Sendo assim, nos últimos meses, a Argentina foi tomada por manifestações de rua contra as políticas de Macri, por ondas de saques a supermercados e, na quarta-feira passada (28/8), o governo decretou moratória (o que significa adiar o prazo de pagamento) de parte de sua dívida com o FMI e com bancos privados. Não é difícil concluir que, se esses acontecimentos fossem na Venezuela, estariam nas manchetes de todos os jornalões brasileiros, mereceriam vários programas na GloboNews, renderiam reportagens especiais no Jornal da Band, capas da Isto É e seriam temas dos comentários raivosos de Arnaldo Jabor no Jornal da Globo.

Respondendo à pergunta que intitula este texto, as causas da crise argentina não são devidamente destacadas na grande mídia brasileira pois isso atestaria o completo fracasso das políticas neoliberais que as potências imperialistas tentam impor aos países periféricos. Como principal porta-voz do grande capital internacional, a imprensa brasileira busca de todo modo difundir o falacioso discurso de que o único caminho para o nosso desenvolvimento está na abertura total do mercado e na diminuição do papel estatal. Mesmo nas (poucas) ocasiões em que a crise argentina é mencionada nos noticiários, sua culpabilidade recai sobre a “pessoa” de Macri, e não sobre o modelo econômico adotado, blindando assim o “deus-mercado” de qualquer análise crítica. Em uma “virada de casaca” monumental, tipo um atleticano do nada começar a torcer para o rival Cruzeiro, o site O Antagonista, inclusive, já chama Macri de “social-democrata”.

No entanto, ainda há quem defenda incondicionalmente a impopular figura de Mauricio Macri. Ao comentar a derrota do atual presidente argentino para o oposicionista Alberto Fernández nas eleições primárias realizadas no início de agosto, Uta Thofern, chefe do Departamento América Latina da Deutsche Welle, afirmou que a Argentina escolheu o caminho do retrocesso ao populismo de esquerda e das “soluções fáceis para problemas complexos”. Ou seja, para Thofern, mesmo com o povo argentino passando inúmeras dificuldades, ele deve optar por continuar sob a direção de Mauricio Macri em nome da “modernizadora” agenda neoliberal.

Além do mais, o exemplo argentino serve de alerta para nós, brasileiros, pois a política econômica do Planalto é bastante similar à colocada em prática por Macri. Parafraseando um famoso comercial de vodca dos anos 1980, a Argentina parece nos dizer: “Eu sou você amanhã”. Enquanto isso, a Bolívia, por causa dos investimentos estatais do “indígena/cocaleiro/comunista” Evo Morales, tem sido a economia que mais cresce na América do Sul nos últimos anos. Não veremos William Bonner anunciar essa notícia no cinquentenário Jornal Nacional. Se, na última eleição presidencial, os setores conservadores de nossa sociedade diziam que, em caso de vitória da esquerda, correríamos o sério risco de nos transformarem em uma “nova Venezuela”, ironicamente, um ano depois, com a política econômica do atual governo, poderão nos transformar em uma “nova Argentina”.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor do PROEJA do IFES – Campus Vitória. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.