A coluna do ombudsman da Folha de S.Paulo (29 de setembro) – “Uma Satisfação para Ágatha – chamou atenção para a cobertura do jornal sobre a trágica morte de Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, baleada no Complexo do Alemão durante ação policial no dia 20 de setembro. A crítica de Flávia Lima indica alguns pontos que não estão presentes apenas na cobertura da Folha, mas em grande parte da grande mídia brasileira.
O primeiro é o descompasso em relação às redes sociais, que “gritaram primeiro”, fazendo com que o tom e a intensidade da cobertura fossem intensificados. A voz das ruas é também a voz das redes e a capacidade dessa escuta define muito do futuro do jornalismo. A metáfora do gatekeeper não faz mais sentido num mundo em que a informação e a desinformação circulam sem filtros. Cabe ao jornalismo qualificar o debate proposto de forma participativa nas redes, contribuindo para a checagem dos fatos, cobrança de responsabilidades e busca de pluralidade. A violência do estado contra a população vulnerável intensificada no Brasil contemporâneo é um tema inescapável.
Flávia observa que a Folha fez uma cobertura correta do acontecimento, com destaque na primeira página e trazendo o tema do debate sobre a punição de policiais envolvidos em assassinatos, mas lamentou que não fosse o assunto de destaque na principal manchete do jornal no domingo. “A maioria da população vive nas periferias e a cobertura do jornal ainda reflete essa periferização: relega a espaços menos nobres ou expõe de modo pouco contextualizado e articulado assuntos que afligem sobretudo essa parcela da sociedade”, escreve Flávia.
O pano de fundo para a discussão levantada por Flávia são os critérios de noticiabilidade. Não só a escolha dos assuntos como sua valorização. E, mais do que isso, a possibilidade de permanecer na pauta, não ser esquecido – ou, pior, banalizado. A escolha da manchete do jornal ou da escalada dos telejornais reflete relações de poder.
Para além da importante discussão sobre responsabilização do governador do Rio, Wilson Witzel, pela letalidade das operações militares lideradas por ele, é preciso que o jornalismo tenha a coragem histórica de mudar o foco de sua abordagem. Quanto mais próximo estiver das populações de áreas atingidas pela violência, mais estará defendendo o processo democrático.
Todos conhecemos a imagem do apresentador de TV ou radialista, defensor da violência policial, explorando os acontecimentos trágicos pelo viés sensacionalista. Em quase todas as regiões do país, há a presença desse tipo de profissional, também abrigado sob o guarda-chuva do jornalismo. O antídoto contra essa forma de abordagem é investir na pulsão de vida daqueles que trabalham, criam e tentam transformam sua vida e o seu entorno, mas são obrigados a conviver com a violência daqueles que deveriam defendê-los.
Há jornalismos e jornalismos. Contra antigos bordões que hoje se tornam a matriz da macropolítica, como “bandido bom é bandido morto”, é tempo de lembrar que criança precisa de afeto, atenção, escola, cidadania. A construção dos discursos anda em conjunto com as práticas sociais que naturalizam a barbárie. Contra esse modelo, seria saudável apostar em abordagens a partir da visão de mundo das periferias – alguns exemplos felizmente já existem, como a Ponte Jornalismo ou o Énois, dentre outros. E mesmo a grande mídia parece ter despertado diante da indignação que os acontecimentos recentes produziram. Mas pouco mais de dez dias depois, o assunto Ágatha se dilui nos novos escândalos e outros fatos de tempos tão obscuros quanto turbulentos. A morte da vereadora Marielle Franco é um exemplo de certo cinismo contemporâneo: a despeito das reações e protestos, não temos acesso claro às motivações e responsabilidades pelo crime.
É preciso garantir o lugar de fala daqueles que são vítimas não só dos criminosos, mas também do Estado. Violência que promove protestos nas redes, mas está, principalmente, nas ruas que a maioria dos repórteres não acessam. Esse é também o novo tipo de jornalismo que a sociedade brasileira demanda. Por isso, a triste história de Ágatha não pode ser esquecida. E, junto com ela, a obrigação de dar voz cotidianamente aos que sofrem essa dor de perto. Não há outra saída.
***
Pedro Varoni é jornalista.