O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, sem dúvida voltou cheio de propósito e razão de sua última viagem ao Oriente Médio e à Europa, que o levou de Brasília a Dubai e depois a Berlim. Ainda mais porque, em 1º de dezembro, ele assumiu a presidência rotativa do G20 de seu parceiro indiano no grupo BRICS, Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia desde 2014.
O grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) foi criado em 2009. Lula, que já era presidente do Brasil, tem uma longa experiência com líderes indianos. No BRICS, no G20, mas também, desde 2003, na OMC – Organização Mundial de Comércio, por meio da coalizão IBAS (Índia-Brasil-África do Sul). Portanto, não é de se surpreender que a diplomacia multifacetada do Brasil em 2023 pareça ser inspirada em Brahma, o deus indiano com quatro cabeças, voltadas para o norte, sul, leste e oeste, cada uma com um braço articulado.
Nenhuma parte do mundo foi esquecida por Lula desde que ele foi eleito presidente. Alemanha, Angola, Argentina, Bélgica, China, Colômbia, Egito, Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Itália, Japão, Portugal, São Tomé e Príncipe, África do Sul, Emirados Árabes Unidos, Reino Unido, Uruguai, Cidade do Vaticano. Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente do Brasil, visitou vinte países ao redor do mundo desde sua eleição em 28 de outubro de 2022.
Essas visitas contaram com dois formatos. Foram encontros bilaterais, por exemplo, com a Espanha, Itália, Estados Unidos e Reino Unido, entre outros, mas, sobretudo, multilaterais, como na Assembleia Geral da ONU, nas cúpulas do BRICS, na COP27 e na COP28, na CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), no encontro do G7 e do G20, no encontro do MERCOSUL, da CELAC e da União Europeia, também na Cúpula de Paris quando se tratou de um Novo Pacto Financeiro Internacional, sem mencionar as reuniões organizadas no Brasil, como a conferência da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) e a Cúpula Sul-Americana.
A pergunta agora é simples: “Por que tudo isso?”, já que não é preciso dizer que não se tratou de um desejo de entrar para o Guinness Book de viagens presidenciais, ainda que Lula tenha terminado o ano como ganhador da disputa. Por outro lado, não há nada de surpreendente no fato de o Brasil, depois de quatro anos de abstinência internacional, estar tentando “recuperar o tempo perdido”. Lula, como Brahma, multiplicou o número de cabeças e seus arquivos, em contato com o maior número possível de países e organizações. Mas será que ele conseguirá a bela Satarupa – a primeira mulher criada por Brahma – ou seja, um lugar de destaque no concerto das nações?
Parafraseando o argumento de venda de um famoso dicionário, não há como negar que a rede multifacetada lançada pelo chefe de Estado brasileiro “jogou a rede de pesca em todas as direções”, tanto no lado do chamado extremo sul quanto no lado do “Primeiro mundo”. Essa pesca, embora frutífera, tem um lado desconcertante. A vida diplomática dos últimos dias lança alguma luz sobre esse mistério. A caminho de Dubai para defender a necessidade urgente de “esverdear” a economia global, o presidente brasileiro convidou os países da COP28 a participarem da COP30 em Belém, em 2025. Já é hora, disse ele à plateia, de “descarbonizar o planeta e trabalhar para uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”. Paradoxalmente, ele voltou ao Planalto com uma passagem para se juntar ao grupo OPEP+. No mesmo dia, 1º de dezembro, o presidente da Petrobras anunciou a criação de uma subsidiária nos países do Golfo, a “Petrobras Arábia”. “Os combustíveis fósseis”, comentou Lula, quando perguntado sobre esse anúncio em Dubai, “serão necessários para a economia mundial por muito tempo”.
Também sabemos que, em Dubai, ele usou sua força silenciosa para convencer, ou tentar fazer com que seu colega francês, Emmanuel Macron, entendesse, com a benevolência premente do chanceler alemão, Olaf Scholz, que já era hora de apitar o fim das negociações iniciadas em 1999 entre a União Europeia e o Mercado Comum do Sul. O francês agarrou-se à cortina amazônica rasgada pela agroindústria para adiar os prazos, enquanto a dupla brasilo-alemã empurrou os agroexportadores brasileiros e os industriais alemães para a linha de frente para forçar as linhas defensivas ecológicas dos gauleses. No final, o acordo permaneceu na mesa de negociações.
A França obteve ganho de causa, ao custo de entrar para uma lista negra coletiva, de Brasília a Buenos Aires, Montevidéu, Berlim e Madri. A Alemanha e o Brasil aproveitaram a oportunidade para confirmar seu produtivo casamento de conveniência, selado por inúmeras visitas cruzadas nos últimos meses pelos dois presidentes, pelo chanceler e por vários ministros. Em 2 de dezembro, em Berlim, simultaneamente, em um fórum empresarial, os dois governos assinaram 19 acordos sobre economia sustentável e proteção ambiental.
Sem dúvida, é inútil buscar coerência em uma diplomacia que é deliberadamente multifacetada. No melhor dos casos do Brasil, os desvios são acompanhados de gestos, visitas e iniciativas – sempre amigáveis – para contorná-los. Embora claramente apontado como o vilão do cenário Europa-Mercosul, Emmanuel Macron está repleto de boas intenções. É verdade que a França não tem feito muito esforço nos últimos anos para elevar seu perfil de país aberto e amigável, dialogando no mais alto nível com os governantes da periferia internacional.
Além disso, desde janeiro de 2023, o Brasil tem feito uma série de gestos e iniciativas que lhe deram a imagem de uma nação que oferece soluções para todos os tipos de conflitos, desde a Rússia e a Ucrânia até a disputa entre a oposição e o governo venezuelano e as negociações de paz entre os guerrilheiros do ELN e o Estado colombiano. Tudo isso consolida o caminho de Brahma dado pelo presidente Lula aos diplomatas do Itamaraty. Para bom entendedor…
Notas
Texto publicado originalmente em francês, em 08 de dezembro de 2023, no site Nouveaux Espaces Latinos, com o título original “Au Brésil, la diplomatie Brahma… à plusieurs facettes, du président Lula début décembre”. Disponível em: <https://www.espaces-latinos.org/archives/116445 >. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.