A votação local e regional espanhola no domingo, em 28 de maio, encerrou qualquer perspectiva de retomada das relações entre a União Europeia e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC)? As relações entre os dois grupos estão em estado de “morte cerebral” há vários anos. A última cúpula foi realizada em 2015. A presidência espanhola da União Europeia, de julho a dezembro de 2023, iria, como disse em Madrid, mudar esse cenário. Desde 17 e 18 de julho de 2023, o primeiro grande evento inscrito no calendário foi, de fato, aquele da reunião euro-latino-americana, em Bruxelas.
O governo espanhol preparou o evento há vários meses. As visitas do Rei, as do Presidente e de seu Ministro de Assuntos Exteriores a vários países da América Latina, do Brasil ao Chile, passando pela Colômbia e pelo Equador, atestavam esse interesse. A presença paralela do Presidente, do Chanceler e do Vice-chanceler alemães, nesses países, da Argentina ao México, passando pelo Chile e pela Colômbia, na falta de complementaridade, atestavam um interesse convergente, que consolidava assim o evento.
No entanto, no domingo 28 de maio, chamados a renovar suas câmaras municipais e seus representantes nas doze regiões – ou comunidades autônomas no jargão político territorial espanhol –, os eleitores censuraram a maioria presidencial. O PSOE[1] de Pedro Sánchez, presidente do governo, se desgastou e sofreu perda, já o partido Unidas Podemos, seu aliado, deixou no fundo da urna todos os seus eleitos madrilenos e valencianos. No final, a maioria da centro-esquerda perdeu o controle de uma meia dúzia de regiões. Em 30 de maio, Pedro Sánchez, anunciava a dissolução das Cortes, o Parlamento. A eleição geral foi recuada em seis meses e acontecerá em 23 de julho, início da Presidência Europeia pela Espanha, cinco dias após a Cúpula Europa/América Latina de Bruxelas. A recuperação intercontinental programada, esperada por muitos, neste contexto, deu uma guinada para pior. O presidente Sánchez tem agora outra prioridade, sua sobrevivência política e de sua maioria, até 23 de julho. Quer ganhe, quer perca, ao final de julho, não terá tempo para se dedicar à América Latina, e até mesmo à Europa, e ao resto do mundo.
O Brasil assumiu a dianteira nesse processo. Mal acabara de participar do G7 em Hiroshima e de ser recebido por seus membros europeus, Lula, defensor de uma terceira via internacional, tomou uma série de iniciativas que confirmaram a sua abordagem. Seu ministro da Justiça, Flávio Dino, sublinhou, em 22 de maio, a incompreensão do Brasil em relação às instituições espanholas consideradas incapazes de defender os jogadores de futebol negros, vítimas de ataques racistas, em particular, o brasileiro Vinicius Junior, atacante do Real Madrid, repetidamente agredido verbalmente. “O Brasil”, declarou publicamente, “que estuda a possibilidade de recorrer ao princípio da extraterritorialidade, […] caso as autoridades espanholas não tomem as medidas necessárias”. Em 28 de maio, o presidente brasileiro felicitou Recep Tayip Erdogan depois de sua vitória na corrida presidencial turca, em termos que são promissores para o futuro diplomático: “desejo um bom mandato”, ele escreveu e acrescentou: “conte com a parceria do Brasil na cooperação global pela paz”. Lula relembra assim a tentativa de mediação em 2010, conduzida pela Turquia e pelo Brasil, na questão nuclear iraniana, e que foi à época enfraquecida pelos cincos membros permanentes do Conselho de Segurança. Por fim, em 30 de maio, no Itamarati, sede do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o presidente Lula recebeu 10 presidentes e um primeiro-ministro sul-americanos [1]. Alguns são de direita, como os presidentes equatoriano, paraguaio e uruguaio, outros mais à esquerda, como os presidentes argentino, colombiano e venezuelano. Lula convidou Nicolás Maduro, evitado pelos “ocidentais”, pelo menos até a crise petrolífera desencadeada pela invasão russa na Ucrânia. Esse convite foi acompanhado de um comentário ácido em relação aos “sociais-democratas europeus e aqueles que defendem a democracia”, com os quais, disse, “tive muitas discussões sobre você, eleito presidente pelo povo”, enquanto “um deputado foi reconhecido como presidente” (referia-se ao reconhecimento do deputado Juan Guaido, autoproclamado presidente numa manifestação de rua e então reconhecido como chefe de estado pelos Estados Unidos e vários países da União Europeia).
Em Hiroshima, onde ocorreu a cúpula do G7, se produziu um afastamento ainda maior do Brasil em relação à União Europeia. Não há dúvida de que o encontro regional organizado por Lula em 30 de maio, aumentou essa distância. A Colômbia compartilha da análise de Brasília sobre a situação mundial, assim como a Venezuela. O concerto intercontinental realizado de 17 a 18 de julho em Bruxelas teria contribuído, em situações normais, para dissipar os mal-entendidos? A presidência espanhola, impedida pelas razões eleitorais, não está em condições de o fazer. Entretanto, há um monstro marinho à espreita, se a oposição espanhola, o Partido Popular e o seu aliado de extrema-direita Vox, ganharem as eleições. Os dois têm uma concepção “imperial” e ocidental da relação que a Europa e a “Pátria Mãe” devem ou deveriam ter com a América Ibérica. Vox formalizou sua base eleitoral construindo uma “Iberosfera” com seus homólogos do outro lado do Atlântico, a família Bolsonaro, José Antonio Kast, Álvaro Uribe e outros [3]. O Partido Popular, sem ser tão arcaico, defende uma inserção econômica e de segurança da América latina no bloco “ocidental” [4]. Seja qual for o resultado das eleições legislativas espanholas do próximo 23 de julho, este evento eleitoral terá “afundado” uma tentativa louvável de Madrid de restaurar o horizonte de uma relação bilateral desgastada.
Notas
Texto publicado originalmente em francês, no dia 31 de maio de 2023, no site Nouveaux espaces latinos, seção Actualités: Amérique Latine, Lyon/França, com o título original “Sommet Europe-Amérique latine: Coulé par l’impromptu électoral de Madrid?”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/112554 . Tradução de Pâmela Rosin e Luzmara Curcino.
[1] N.T. Partido Socialista Operário Espanhol.
[2] Os presidentes argentino, boliviano, chileno, colombiano, equatoriano, guianês, paraguaio, surinamês, uruguaio e venezuelano, como também, o Primeiro-Ministro do Peru.
[3] Essa Iberosfera materializou-se em um documento, assinado por alguns, intitulado “Carta de Madrid”.
[4] Teorizado na obra do ensaísta argentino, Marcelo Gullo Omodeo, “Pátria Mãe”, Espasa Calpe, 2021.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.