Recentemente, realizei duas importantes leituras sobre a água em âmbitos completamente distintos. No primeiro caso, li o capítulo sobre o mais precioso dos líquidos no livro “Domine sua Saúde”, do doutor Ícaro Alves Alcântara. O segundo caso envolveu um texto com a seguinte introdução: “maior fundo financeiro do planeta abocanha um gigante global de infraestruturas e obtém, na Bolsa de Chicago, o ‘direito’ de negociar a água como commodity” (fonte: Outras Palavras).
Segundo o doutor Ícaro Alves, “75% do corpo é ÁGUA e também 92% do sangue, 72% do cérebro (com pouca água as conexões entre os neurônios, as sinapses, que são basicamente ‘bolsas de água’, funcionam mal, o que prejudica o ato de pensar), 56% dos músculos e quase ¼ dos ossos e dentes./Você ficará surpreso(a) de ver quantos sintomas e doenças melhoram (ou até desaparecem) quando você toma água direito”. Essas considerações integram o capítulo “Água – O primeiro e mais importante hábito”.
A recomendação presente no livro “Domine sua Saúde” é “tomar água de hora em hora, mesmo sem sentir sede”. Para quem tem entre 65 e 85 quilos, o consumo deve ser de um copo de 200 ml por hora acordado(a) e ainda mais durante a prática de atividade física e logo após.
No capítulo 44 do livro “Saúde e Bem-estar. Minhas anotações”, de minha autoria, destaco o seguinte registro integrante do “Guia alimentar para a população brasileira” do Ministério da Saúde: “Como qualquer alimento, a quantidade de água que precisamos ingerir por dia é muito variável e depende de vários fatores. Entre eles estão a idade e o peso da pessoa, a atividade física que realiza e, ainda, o clima e a temperatura do ambiente onde vive. Para alguns, a ingestão de dois litros de água por dia pode ser suficiente; outros precisarão de três ou quatro litros ou mesmo mais, como no caso dos esportistas”. Acrescentei, no livro referido, que segundo especialistas, um estado crônico de leve desidratação é comum para cerca de 70% das pessoas. O indicador mais simples da ingestão adequada ou deficiente de água parece ser a cor da urina. O ideal é a cor amarela bem clara. Um amarelo mais escuro indica um consumo insuficiente de água.
O sexto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) inclui alcançar, até 2030, o acesso universal e equitativo a água potável e segura para todos. Segundo estudo da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) lançado em 2023, “26% da população global não tem acesso à água potável, ou 2 bilhões de pessoas” (fonte: news.un.org).
Durante a Conferência da ONU sobre a Água em 2023, uma nota dos relatores de direitos humanos da organização destacou que a água é “um bem comum e não uma commodity”. O documento referido ressaltou “… que o recurso é um direito e deve ser gerenciado desta forma, sem que um viés mercadológico dificulte ou impeça o acesso equitativo” (fonte: brasil.un.org). Commodity “… é um termo que corresponde a produtos básicos globais não industrializados, ou seja, matérias-primas que não se diferem independentemente de quem as produziu ou de sua origem, sendo seu preço uniformemente determinado pela oferta e procura internacional” (fonte: pt.wikipedia.org).
No Brasil, a Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, conhecida como “Lei das Águas”, instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. Esse diploma legal: a) qualifica expressamente a água como bem de domínio público (art. 1o, inciso I) e b) define, como objetivo, assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos (art. 2o, inciso I). “O território brasileiro contém cerca de 12% de toda a água doce do planeta. Ao todo, são 200 mil microbacias espalhadas em 12 regiões hidrográficas, como as bacias do São Francisco, do Paraná e a Amazônica (a mais extensa do mundo e 60% localizada no Brasil). (…) Talvez o principal problema seja o processo de urbanização acelerado que não apenas gerou um aumento da demanda em áreas mais populosas, como também gerou a contaminação dos corpos hídricos por resíduos domésticos e industriais” (fonte: oeco.org.br).
Infelizmente, notícias veiculadas no início do ano de 2024 mostram que o processo de financeirização extrema das atividades econômicas em escala global alcançou a água de forma especialmente grave.
“Em 14 de janeiro, o maior fundo mundial de private equity, a BlackRock, anunciou a aquisição de um gigante das infraestruturas, o Global Infrastructures Partners (GIP). A transação envolveu dinheiro e ações, segundo um acordo de bolsa que avalia a GIP em 12,5 bilhões de dólares. A empresa é o maior gestor independente de infraestruturas do mundo, com um patrimônio de mais de 100 bilhões de dólares nos setores de energia, infraestruturas digitais, água e resíduos” (fonte: outraspalavras.net).
No texto “Megafundos financeiros: o essencial é invisível aos olhos”, de 10 de novembro de 2023, afirmei: “As empresas conhecidas como “administradoras de ativos” supervisionam dezenas de trilhões de dólares em investimentos em escala global. As mais famosas são as “Três Grandes”: a) BlackRock; b) Vanguard e c) State Street Global Advisors. O modelo de negócios operado baseia-se principalmente nos chamados fundos de índice “passivos”. Esses investimentos em ações transformam as administradoras de ativos nos principais acionistas de milhares (sem exagero) de corporações ao redor do mundo.
As administradoras de ativos não operam apenas com instrumentos financeiros na forma de ações e títulos da dívida de empresas e Estados. Existe um movimento crescente dessas gigantes do mundo financeiro no sentido da aquisição de ativos “reais”, representados, entre outros, por casas, prédios, hospitais, redes de ensino, distribuidoras de água e energia elétrica e parques eólicos. Esse fenômeno revela uma das facetas mais perversas (e ocultas) dos processos de privatização, invariavelmente “vendidos” como os caminhos para a eficiência exigida pelo usuário.
Essas megaempresas estão, em um processo lento e vigoroso, dominando as estruturas básicas relacionadas aos principais bens e serviços utilizados nas sociedades modernas para o convívio minimamente civilizado. Esse importantíssimo movimento socioeconômico, em escala global, persegue um objetivo muito bem definido. Pretende-se extrair os maiores lucros possíveis e da forma mais rápida possível. Essa é a perversa lógica do capitalismo contemporâneo, selvagem ou não. Praticamente tudo se transforma em mercadoria, comprada e vendida para gerar uma monumental acumulação de riquezas. As normas jurídicas, as questões éticas, a dignidade da pessoa humana e outras limitações civilizatórias são inconvenientes obstáculos a serem competentemente contornados ou afastados” (fonte: Observatório da Imprensa).
A BlackRock, além de adquirir a GIP, fez uma importante solicitação ao Chicago Exchange Mercantile (CEM), a maior bolsa de commodities do mundo. E obteve êxito no pleito. A Bolsa de Chicago abriu seu mercado de derivativos, com forte caráter especulativo, para transações financeiras nos futuros da água. Assim, a água foi transformada em um relevantíssimo ativo financeiro em todas as dimensões possíveis.
A Bolsa de Chicago complementou um movimento anterior realizado pela Bolsa de Nova York, a famosa “Wall Street”. Foi criado, em 2021, o capital natural como uma nova categoria de ativos. Assim, qualquer elemento do mundo natural pode ser tratado como um ativo negociado no mercado financeiro. A financeirização da natureza atingiu seu patamar mais elevado.
A financeirização extremada, predatória e insensível aos grandes desafios de sobrevivência da humanidade é uma das características mais marcantes e tristes da nossa atual quadra histórica. Trata-se do caminho mais relevante para uma monumental acumulação de riquezas nas mãos de uma ínfima parcela de agentes econômicos. Nesse preocupante cenário, os megafundos integram um conjunto de poderosos instrumentos de extração e concentração da recursos financeiros que inclui os paraísos fiscais, o “cassino global” dos derivativos, os gigantescos endividamentos público e privado, taxas de juros elevadas e uma variedade de ferramentas operadas pelos bancos centrais.
A financeirização da atividade econômica (ou “dreno financeiro improdutivo”) assumiu proporções tão gigantescas que provocou um instigante debate acerca da superação do modo de produção capitalista. Teria surgido algo muito mais deletério em termos de geração de opressões e explorações socioeconômicas?
***
Aldemario Araujo Castro é advogado, Mestre em Direito e Procurador da Fazenda Nacional.