Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Resposta ao artigo “Desafios do Feminismo”

[A autora deste texto escreveu para a Folha de S.Paulo sobre artigo de Helio Schwartsman, “Desafios do feminismo”, publicado em 14/03/2014. Não obteve resposta.]

Caríssimo Helio,

O senhor resolveu se apropriar do lugar de fala das mulheres que há anos militam nas diversas frentes feministas sem o mínimo de esforço de estudá-las antes de falar por nós quais são os nossos desafios. Exatamente na sua atitude é que se encontra um dos maiores desafios do feminismo atual: homens falando por nós o que queremos e como devemos atingir nossos objetivos. Muito obrigada pela sua opinião, mas ela está completamente distante da realidade sobre a qual debatemos e intervimos.

O senhor afirma que “Se restam mecanismos discriminatórios, são todos favoráveis à mulher como a dispensa do serviço militar obrigatório e a aposentadoria precoce.” Acreditamos que o serviço militar não deveria ser obrigatório para ninguém. No entanto, as próprias concepções relacionadas à masculinidade (força, coragem, valentia, agressividade, lógica) que os colocam em posição de serem escolhidos para morrer por uma instituição falida. Temos 17 estupros por dia apenas no Rio de Janeiro, sabemos que uma em cada quatro mulheres sofrerá abuso sexual antes dos 18 anos em suas vidas e, “só” por isso, não poderemos lutar pela causa de vocês. A aposentadoria precoce se dá também pelo fato da sociedade patriarcal ter construído o homem como o provedor e pelo fato de as mulheres terem dupla jornada de trabalho graças à não divisão do trabalho doméstico. O machismo também é ruim para os senhores: Bem-vindo à luta.

Outra afirmação feita pelo senhor que me faz questionar o que andam ensinando as faculdades de Filosofia atualmente foi a afirmação de que as mulheres não participam da vida política porque não querem, visto que não existem constrangimentos legais e culturais para a sua entrada. A abolição foi assinada em 1888 e então podemos afirmar que não há mais racismo? Os constrangimentos precisam ser institucionalizados para existirem? Desde crianças recebemos bonecas para cuidarmos e fogões para cozinharmos enquanto meninos recebem legos e pequenos laboratórios de química. Caso o senhor não tenha recebido carrinhos, soldados ou cubos mágicos, com certeza tem a noção desde que nasceu que o espaço público é seu por direito e que o senhor deve se impor e elevar a voz para ser ouvido. “Nosso futuro presidente”, seus pais pensavam. Eu e minhas companheiras recebemos o alerta de que o espaço público é perigoso (somos até estupradas “por causa de nossas roupas”, veja só) e o melhor é evitar um possível confronto, mesmo que seja de ideias. “Imagine entrando de branco na Igreja”, os meus pais pensavam.

Não sei se acompanhou as notícias relacionadas ao assalto da senhorita Manuela D’Avila, deputada do PCdoB. Após seu assalto, além dos apontamentos de que merecia ser assaltada por conta de sua ideologia política, também ocorreram desejos de que a mesma fosse violentada. Os comentários em uma mídia social popular diziam: “Foi é pouco, vadia” ou “Não gostou, vagaba? Comunismo é isso, piranha.” Quando leio indagações por parte dos internautas sobre políticos homens, questionam sua idoneidade e ética, mas nunca sua conduta sexual. Por que a mulher no espaço público pode ser deslegitimada pelo fato de ser mulher? Os internautas não se identificaram com a direita ou esquerda nos comentários. Eles são apenas o senso comum… Assim como o senhor.

A luta para entrar no espaço público vai contra o que a sociedade quer de nós, contra o que nossa família espera de nós e o que nos é ensinado a querer para nós mesmas. O senhor finaliza o seu grande desserviço à nossa luta dizendo que o objetivo do feminismo original era assegurar nossa autonomia, não o objetivo do “atual”, que é fazer com que sigamos os passos dos homens.

O homem é pintado em nossa sociedade como um ser cheio de impulsos que não consegue se controlar e que precisa da total supervisão na vida “privada” de uma mulher, seja sua mãe ou esposa. Não, obrigada, não quero ser vista assim. No entanto, lutaremos pelas mulheres que desejam seguir um ideal de gênero masculino. Lutaremos pelas mulheres que assimilaram e passaram a desejar exatamente o que a sociedade quer para elas ao serem grandes mães e donas de casa. Lutaremos pelas mulheres que não querem se limitar ao dualismo feminino/masculino. Lutaremos pelas mulheres que não nasceram mulheres e são mais mulheres do que muitas de nós.

E, principalmente, lutaremos contra a desinformação deliberada que desejam manter em relação à nossa luta e, exatamente por isso, lhe escrevo essa resposta.

Atenciosamente,

Uma feminista.

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Mayara Davy Bello de Freitas é bacharel em Relações Internacionais, Rio de Janeiro, RJ