Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De ventura em desventura

The world turns and the world changes,/ But one thing does not change./ In all of my years, one thing does not change./ However you disguise it, this thing does not change:/ The perpetual struggle of Good and Evil./ Forgetful, you neglect your shrines and churches;/ The men you are in these times deride/ What has been done of good, you find explanations/ To satisfy the rational and enlightened mind./ Second, you neglect and belittle the desert./ The desert is not remote in southern tropics,/ The desert is not only around the corner,/ The desert is squeezed in the tube-train next to you./ The desert is in the heart of your brother (T. S. Eliot)

Mauro Souza Ventura acaba de ver incluída, na edição 832 do Observatório da Imprensa, uma sua resenha da tradução que fiz do primeiro livro de Otto Maria Karpfen ou, como ficou conhecido no Brasil, Otto Maria Carpeaux (ver “O conservadorismo crítico de Otto Karpfen“). Ventura, infelizmente incapaz de receber com honestidade o lançamento de Caminhos para Roma: Aventura, Queda e Vitória do Espírito e insistindo em verter o subtítulo erradamente com um vergonhoso genitivo plural indigno dos honrosos títulos acadêmicos que obteve, tenta desautorizar o tradutor e desprezar o livro.

Ventura, intercale-se desde logo, é o responsável por uma aparente promessa de narrativa biográfica, De Karpfen a Carpeaux, título que vem seduzindo leitores desde 2002.

Ventura, cheio de si e cheirando a vanglória, ali anunciava que a partir de então, a partir do acesso que tivera a uma cópia dos originais e a partir das traduções que fizera de uns poucos trechos, dois novos livros, “completamente ignorados”, passavam “a integrar definitivamente a bibliografia” de Carpeaux: a “descoberta” de Caminhos para Roma e de Missão Européia da Áustria (embora não tivessem escapado, por exemplo, a Robert Menasse, a Andreas Pfersmann e a Albert von Brunn) possibilitava uma “interpretação sistemática” da obra e iluminava o início da “maturidade intelectual” de um homem que aos trinta e nove anos chegaria ao Brasil “no exercício pleno de suas faculdades críticas”. Ventura chegava a proclamar que “já não cabe mais a separação entre o Karpfen e o Carpeaux”, já que as duas fases, a austríaca e a brasileira, “estão unidas por uma continuidade de pensamento”. Desta vez, porém, desdiz-se descaradamente: Caminhos para Roma é uma curiosidade longínqua, tipicamente situada no século 19 – um dos raríssimos séculos nos quais houve luta contra o mal – e simultaneamente circunscrita ao momento da sua redação em 1933. Desta vez, “muito pouco” ou “quase nada” de uma ingênua “concepção religiosa” aparece nos “brilhantes e lúcidos” ensaios brasileiros publicados a partir de 1941. Afinal, conclui o resenhista, “Karpfen não é Carpeaux”.

“Homem sem religião”

Ventura, ademais, sugere aos editores o acréscimo de “notas lexicais e explicativas do tradutor”. O tradutor, convicto de que não as deve acrescentar se não as pode justificar, esclarece aos leitores que não inseriu senão as quatro que julgou necessárias, assim abstendo-se de sobrecarregar à toa as páginas de um livro, aliás, eminentemente traduzível. “Se hoje muitos de seus textos parecem de leitura difícil pela quantidade de alusões a obras e autores desconhecidos, é porque já não existe um público medianamente culto como o de quatro décadas atrás”, comentava Olavo de Carvalho em 1999.

Ventura, portanto, afirma que a tradução se ressente de “falta de familiaridade” com certo “espírito local”, seja lá o que isso for, e com certa “dicção vienense”, o que não só requer exemplos como não impressiona senão os que desconheçam de todo a incompetência linguística que o resenhista exibe e reexibe em escritos redundantes onde repete regularmente os erros até grosseiros das suas traduções malfeitas, duas das quais – copy and paste – retornam na resenha. Exemplo: “A pompa sagrada do barroco converte-se nos adornos luxuriosos de uma sociedade decadente” em vez de “A ostentação barroca, consagrada a Deus, transformou-se no ornamento luxuoso de uma sociedade putrescente”. Ventura, na ânsia de prevenir que o livro contamine os leitores e o resto da vida e da obra de Carpeaux, adverte que a leitura de Caminhos para Roma, publicado em 1934, não pode prescindir de “dados contextuais” como o fato de que Hitler anexou a Áustria em 1938.

Ventura, na verdade, seria melhor que falasse do próprio livro, mas, como vem fazendo há mais de doze anos, não se atém senão a seletas seções do capítulo sobre estética e, evitando falar do entusiasmo com que o autor vê reaproximarem-se do catolicismo a literatura, a escultura, a pintura, a arquitetura e a música, entende tudo errado: Carpeaux acaba virando um anticapitalista vulgar. Ventura lamenta que o título do capítulo tenha sido traduzido literalmente por “O Sol de Satã”, o que, assegura-se ele e segure-se quem puder, faz “desaparecer a metáfora da luz do demônio que seduz e corrompe”. Ventura, na ausência de “notas lexicais e explicativas do tradutor”, permanece ignorante de que o título desse capítulo é referência direta ao romance de estreia de Georges Bernanos, Sous le soleil de Satan, já incorporado às letras germânicas em 1927.

Ventura, ainda que recebesse tudo mastigado, cuspiria no prato em que vem comendo, pois, conquanto se dedique a pesquisar os escritos da primeira metade da vida de Carpeaux, mal consegue disfarçar o desgosto que lhe dá engolir que Caminhos para Roma seja mesmo um livro católico redigido por um intelectual católico, um fato que, longe de trazer respostas fáceis, torna mais numerosas, mais dificultosas e não raro mais dolorosas as perguntas. Por que se converteu? Por que produziu, logo depois, essa apologia do catolicismo que é Caminhos para Roma? Por que é que, dos seus milhares de livros, não levou consigo senão um missal na fuga da Áustria? Por que se apresentou como católico ao chegar ao Brasil? Por que deixou de confessar publicamente a fé? Por que, às escondidas, continuou rezando? Por que é que, na clínica onde morreria, não permitiu que lhe tirassem do pescoço, enquanto teve forças, uma medalha de São Bento? Por que preferiu um enterro sem ritos religiosos? Por que é que havia sido, segundo a sua viúva, um “homem sem religião”? Se no catolicismo de Caminhos para Roma encontra o leitor “uma face ainda pouco conhecida” de Otto Maria Carpeaux, assuma o resenhista a sua parcela de culpa e a insuficiência das pesquisas que realiza.

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Bruno Mori é tradutor