Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma tese de segunda mão

Escrevemos este artigo em resposta ao texto “O jornalismo local falha com a democracia“, de Eduardo Nunomura, publicado na edição 994 deste Observatório, com a convicção de que o autor não se ofenderá ao ver o título. Afinal, é esta a conclusão que emprestou à sua tese – “Notícias de Segunda Mão: os jornais locais e a cobertura política”, em que pretendia analisar a cobertura jornalística do Comércio do Jahu e de outros cinco jornais do interior do Brasil.

O pesquisador buscou verificar de que forma os periódicos conduziram suas coberturas ao longo do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2 de dezembro de 2015, até sua conclusão pelo Senado, em 31 de agosto de 2016, e as duas denúncias de corrupção contra o presidente Michel Temer engavetadas pelo Congresso no ano seguinte. Nunomura quis identificar se os jornais mantinham coberturas próprias a respeito do fato ou se compravam conteúdos prontos das agências de notícias, entre outros objetivos.

Sobre o Comércio do Jahu, chegou a conclusões absolutamente apressadas e enviesadas. O que antes aparentava ser “apenas” um descuido metodológico revelou-se uma representação enganosa a respeito da cobertura do jornal naquele período, que afronta o jornalismo praticado na nossa redação, provavelmente a partir de uma ideia preconceituosa de que todos os jornais do interior são provincianos. Passamos, a seguir, a detalhar esses dois quesitos.

Descuidos metodológicos

O recorte temporal ambicioso elegido pelo pesquisador cerca uma série de eventos relacionados ao impeachment da ex-presidente Dilma, separados pelo intervalo de quase dois anos. Para analisar a cobertura, o pesquisador busca referências na análise de conteúdo, em metodologia proposta por Bardin (1977).

Neste período, os seis jornais analisados produziram, juntos, milhares de edições diárias ou semanais. No entanto, o pesquisador pinçou 62 delas, não sequenciais, para sustentar o tópico “Todos os olhos voltados para Brasília”, provavelmente nos dias em que a crise política se agudizou.

A necessidade de um recorte temporal faz parte da natureza da pesquisa científica em comunicação, sobretudo naquelas em que se pretende analisar conteúdos noticiosos. No entanto, o pesquisador opta por estudar as edições de maneira descontinuada, o que provoca uma série de problemas de natureza formal e ética.

Jornalista que é, o autor deveria saber que a cobertura jornalística faz parte de um continuum, do qual a edição do dia é apenas uma parte.

Análises fragmentárias obscurecem a forma como o jornal conduziu o assunto ao longo dos dias, ao sabor dos novos acontecimentos.

Portanto, o pesquisador poderia ter optado por dois caminhos: ou selecionava um recorte menor, e sequencial, ou analisava todas as edições de todos os jornais ao longo do período em questão, o que lhe legaria um trabalho sobre-humano. Preferiu, emprestando uma expressão que permeia sua tese, o menor esforço: caçar, nesta enorme coleção de periódicos, aqueles que vestiriam sua hipótese — a de que os jornais do interior ou compram material pronto (segunda mão) ou são clientelistas. Foi a esta última chancela que Nunomura chegou ao analisar o Comércio.

Representações enganosas

Tanto em sua tese, quanto no artigo do Observatório, o autor dá especial atenção para a reportagem publicada no dia 15 de maio de 2016, uma manchete de domingo, cujo título da página interna era o seguinte: “Mandato de Temer realinha Jaú com governo federal”. Para o autor, o jornal saudava o novo momento da política nacional, entre outros devaneios.

Assim como em todo o País, o MDB orbita o poder em Jaú desde a redemocratização. Está na vice-prefeitura e nas principais secretarias. Ao assumir o poder — qualquer que seja a interpretação a respeito disso, um golpe ou uma obrigação constitucional — o MDB reabriu as portas do Planalto para as prefeituras alinhadas. Isso não é uma saudação. É uma constatação, detalhada ao longo da reportagem principal e de cinco matérias relacionadas.

O pesquisador, em uma seleção absolutamente oportunista para referendar sua hipótese, desconsiderou duas reportagens relacionadas publicadas na mesma página. Em uma, uma cientista política manifesta seu desencanto com o início do governo Temer, e critica o fisiologismo que Nunomura afirma que o jornal ignorou. Em outra, o então secretário de Cultura e Turismo de Jaú critica a extinção do Ministério da Cultura, medida polêmica que marcou o início do atual governo.

No editorial da mesma edição, o jornal também punha todos os pés atrás com relação à gestão Temer. No texto batizado de “A recolha de cacos”, alertava: “No plano político, quase nada muda. Acostumado a flertar com o poder onde quer que esteja — na virtude ou no vacilo, o PMDB reúne em seu ministério figuras conhecidas do plano nacional, que já figuraram em dezenas de outros fatos em que outros momentos históricos. O combate à corrupção começa com um desalinho: sete ministros são citados na Operação Lava Jato”.

Em outra seleção enviesada, o autor iça uma reportagem publicada no dia seguinte ao arquivamento de uma das denúncias contra Temer no Congresso, cuja manchete foi publicada em seu artigo n´Observatório: “Jaú entra em briga por verbas após Congresso salvar Temer”. A reportagem relatava peregrinação de prefeitos e vereadores que buscavam emendas e recursos liberados como moeda de troca para os deputados. Para o autor, o Comércio comemorou ou naturalizou o balcão de negociações de Brasília. Para nós, apenas reportou as relações espúrias que envolvem esses episódios.

O que escandaliza em sua seleção parcial, contudo, é a sucessão de manchetes publicadas pelo jornal neste período em que criticamos a supressão de direitos engendrada no governo Temer, algo raro não apenas na imprensa do interior, como nas publicações nacionais, totalmente apagadas de sua tese. Foi o caso da matéria “Entidades de Jaú divergem sobre impactos de reforma”, sobre a reforma trabalhista, publicada no dia 13 de julho de 2017.

A avidez em demonstrar que o jornal é pró-Temer ou clientelista não parou por aí. No dia seguinte ao vazamento do áudio de Joesley Batista com Michel Temer, o Comércio estampou em sua primeira página: “Delator grava aval de Temer para compra de silêncio”. Para Nunomura, o jornal foi “hermético” ao não indicar (no título) silêncio de quem o presidente estava comprando e apressado ao cumprir o bom jornalismo e apresentar o contraditório em outra chamada: “Presidente nega ter feito pedido”.

No dia seguinte (19 de maio), eis a suíte local do Comércio do Jahu: “Lideranças defendem desembarque do governo”, que mereceu a manchete do dia. No sublide, lia-se: “Entre as demais lideranças partidárias locais, a avaliação é consensual: a suposta compra do silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha compromete o governo Temer”. Trechos deliberadamente suprimidos da “tese” de Nunomura, a esta altura merecedora de todas as aspas possíveis. Trata-se de uma tese de segunda mão.

Simples mandamento

O Comércio do Jahu completou 110 anos em 2018. Trata-se de um dos mais longevos do País. Ao longo deste período, experimentou toda a sorte de administrações de uma empresa centenária. Há pelo menos duas décadas, se esforça para se manter comprometido com as questões locais, sem interferência partidária.

Esta conclusão não é nossa. É do PROJOR – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo, que selecionou o Comércio para uma consultoria no ano de 2014.

Os dados coletados naquela oportunidade aparecem maneira descuidada na “tese”, contendo até mesmo incorreções. O autor se apropriou de informações de bastidor que recheiam o seu material sem qualquer contribuição acadêmica. A todo momento, Nunomura tenta desqualificar o trabalho empreendido no Comércio, com pílulas de informações que reforçam o estigma do provincianismo.

Por ser um dos meios que mais difundem crítica, o jornal não está e nunca estará imune a críticas. É isso que areja nosso trabalho, contanto que nestas asserções não haja enganos grosseiros e omissões. Afinal, como ensina Eugênio Bucci, orientador de Nunomura em seu doutorado, “a ética do jornalista poderia se resumir a um simples mandamento: não mentir”.

Achatada pela crise de narrativas e do modelo de negócio, a imprensa do interior e um de seus expoentes mais resistentes não merecem uma análise tão perversa e apressada. Lamentável que tenha sido assim. Como pesquisador, o autor tinha uma miríade de caminhos para escolher. Optou pelo caminho do preconceito que faz de sua hipótese uma meta, como se fosse errado dizer, ao final de um estudo, que esta hipótese não se confirmou.

O Comércio do Jahu não é clientelista. Em troca das 10 edições selecionadas sem qualquer crivo metodológico, oferecemos 30,6 mil edições de acertos e erros, que sobretudo na história recente, dedicaram ao nosso leitor algo muito maior que notícias de segunda mão.

Refutamos essa pecha, que não reflete a linha editorial deste periódico. Convidamos, ainda, o pesquisador a conhecer de fato e in loco a rotina de nossa redação e como lidamos diuturnamente com as dificuldades e desafios. Ao vivenciar de forma continuada nosso fazer jornalístico, receberemos de bom grado críticas bem-construídas e fundamentadas.

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Ana Karina Victor, Bianca Giordana Zaniratto, Estela Capra, João Guilherme D´Arcadia, Matheus Ramalho Orlando, Natalia Gatto Pracucho D’Arcadia e Ricardo Recchia são repórteres do Comércio do Jahu.