Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O consumidor e a via crúcis da incorporação imobiliária

(Foto: Oleksandr Pidvalnyi por Pixabay)

“A Via-Crúcis (em latim: Via Crucis; lit. “Caminho da Cruz”), também chamada Via-Sacra, refere-se ao trajeto que foi percorrido por Jesus carregando a cruz, desde o Pretório até o Calvário, onde morreu” (fonte: pt.wikipedia.org).

É certo que o consumidor no Brasil experimentou, nas últimas décadas, um ganho enorme em termos de proteção jurídica. A Constituição de 1988 definiu que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (artigo quinto, inciso XXXII). A lei em questão foi editada como o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 1990). As atuações do Ministério da Justiça (Secretaria Nacional do Consumidor), dos PROCONs e de organizações da sociedade civil ganharam intensidades jamais vistas.

Entretanto, o consumidor, na condição de promitente comprador de um imóvel no âmbito das atividades de incorporação imobiliária, ainda enfrenta uma verdadeira via crúcis. As dificuldades decorrem basicamente: a) da aplicação de uma legislação antiga; b) da falta de regulamentação para importantes questões; c) da assunção, pelas incorporadoras, de uma indevida posição de mando em um conjunto muito amplo de questões; d) da adoção de práticas abusivas pelas incorporadoras, inclusive quanto à cobrança de taxas e valores de várias naturezas; e) de uma jurisprudência equivocada em vários temas prestigiando a posição privilegiada das incorporadoras e f) de um volume exagerado de providências burocráticas a serem atendidas pelo consumidor.

Entre as modalidades de incorporação, a mais comum consiste na venda de imóveis na planta (por serem construídos). Trata-se da espécie mais problemática em termos de conflitos entre incorporadoras e compradores. É justamente o tipo abordado nessas singelas ponderações. 

A Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964, regulamenta a atividade econômica de incorporação imobiliária. Afirma o art. 29 do diploma legal referido: “incorporador é a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que, embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas”.

Depreende-se, da definição legal, que no âmbito da incorporação não ocorre a compra de um imóvel. A rigor, o incorporador compromete-se a vender ao signatário da promessa uma casa ou apartamento quando concluída a construção. Nas palavras de Marcelo Tapai, advogado especialista em direito imobiliário: “É um contrato de confiança, no qual o comprador começa a pagar por algo que não tem antes mesmo do início da construção e continua realizando os pagamentos durante toda a obra, financiando parte do projeto administrado pela incorporadora. O montante que faltar para a construção o incorporador normalmente obtém por meio de financiamento bancário, oferecendo o próprio imóvel como garantia para o pagamento da dívida” (fonte: infomoney.com.br).

A operação de venda do imóvel ocorrerá depois de: a) concluídas as obras; b) expedido o “habite-se”; c) instituído o condomínio e d) individualizada a matrícula no registro de imóveis. Dependendo do caso e de possíveis percalços nesse caminho, o consumir, ainda promitente-comprador, pode experimentar uma angustiante espera.

O recebimento do imóvel pelo comprador depende do pagamento integral do preço do bem. Em regra, são usados recursos próprios do consumidor ou de um financiamento bancário. A entrega das chaves, que marca a efetiva imissão na posse, ocorre depois de uma vistoria para verificação do cumprimento do que consta no chamado “memorial descritivo”.

Não são poucas as agruras do consumidor nessa longa e acidentada estrada da incorporação imobiliária. Segue um rápido apanhado (muito longe de ser exaustivo):

a) algo normalmente desconsiderado é a especulação imobiliária que reduz áreas de lazer, esportes, para unidades educacionais e de saúde, feiras, entre outros, e produz um excessivo adensamento populacional. Boa parte dos espaços são realocados pelo Poder Público ao longo do tempo para receber empreendimentos imobiliários de grande porte com a clara redução da qualidade de vida dos futuros moradores;

b) o consumidor, na qualidade de promitente comprador, assina um contrato de adesão elaborado pela incorporadora com a probabilidade (mais do que possibilidade) de inclusão de uma série de cláusulas abusivas;

c) ao longo da construção o consumidor realiza uma quantidade considerável de pagamentos. A prática demonstra que boa parte deles são lícitos (parcelas mensais, intermediárias e Taxa de Decoração, por exemplo). Outro conjunto de exigências são entendidas como ilícitas (Taxa de Serviço de Assessoria Técnica Imobiliária e Taxa de Habite-se ou Individualização de Matrícula, por exemplo);

d) os pagamentos mensais são corrigidos pelo Índice Nacional da Construção Civil (INCC), em regra maior do que os índices inflacionários. Assim, os reajustes constantes das parcelas e do saldo devedor geram um ônus significativo para o consumidor. Afinal, esses compromissos normalmente crescem em níveis superiores ao aumento da capacidade financeira dos promitentes compradores;

e) admite-se, com respaldo jurisprudencial, tolerância de 180 dias para entrega da obra e não cabimento de condenação em indenização por danos morais na hipótese de atraso na entrega do imóvel pela incorporadora;

f) concluídas as obras, impõe-se a constituição do condomínio. A realização da chamada Assembleia Geral de Instalação (AGI) pode ser bastante problemática, especialmente quando a incorporadora deixa completamente a cargo dos futuros condôminos as delicadas tarefas de decidir sobre os integrantes da administração, aprovação da previsão orçamentária e regras provisórias de mudanças e habitação. Boa parte das dificuldades com a AGI decorrem da falta de disciplina legal para esse importante ato;

g) especialmente delicada é a situação dos condôminos que precisam observar uma convenção elaborada e registrada unilateralmente pela incorporadora;

h) é comum, com chancela jurisprudencial, que as parcelas do preço do imóvel sejam acrescidas de juros compensatórios a partir da expedição do “habite-se”. Trata-se de ônus excessivo imposto ao consumidor, notadamente diante da eventual demora no procedimento de averbação desse documento e da completa ausência de mora ou inércia imputável ao promitente comprador;

i) a incorporadora normalmente centraliza em um determinado cartório de notas a elaboração das escrituras de compra e venda. Trata-se de expediente que pode agilizar e uniformizar os procedimentos. Entretanto, por outro lado, deixa os compradores inteiramente vinculados às mais variadas conveniências da incorporadora;

j) condicionamento da entrega das chaves a uma série de pagamentos ou reembolsos, como a “taxa de instituição de condomínio” e o inusitado rateio do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) entre comprador e vendedor;

k) as incorporadoras, em regra, se negam a devolver o dinheiro recebido diante da “desistência” (ou distrato) do promitente comprador. Mesmo no Judiciário a restituição sofre redução entre 10 a 25%, a título de indenização de despesas diversas, apesar das enormes vantagens experimentadas pela incorporadora (afinal, recebeu dos consumidores um verdadeiro empréstimo gratuito). As alterações promovidas pela Lei n. 13.786, de 2018, na Lei n. 4.591, de 1964, consagram perdas mais significativas para o consumidor;

l) o recebimento de informações adequadas, claras, precisas, suficientes e tempestivas não é o cenário comumente vivenciado pelo consumidor. Em regra, por conta da relativa complexidade jurídica da incorporação imobiliária, o promitente comprador fica literalmente confuso e “perdido” diante uma infinidade de providências a serem adotadas.

O advogado Marcelo Tapai, antes referido, destaca: “A Lei 13.786/2018 promoveu diversas alterações na Lei de Incorporações, porém as mais impactantes foram os pontos que tratam das penalidades impostas àqueles que não conseguem realizar os pagamentos. Modificou drasticamente direitos já conquistados há décadas pelos consumidores adquirentes, cujos entendimentos sedimentados e Súmulas, tanto dos tribunais estaduais quanto do STJ, já haviam garantido. (…) Como se não bastasse todos os retrocessos legislativos, que afligem a questão da incorporação imobiliária e causam ainda mais prejuízos aos promitentes compradores de imóveis na planta, e que não conseguem levar o negócio adiante, existe um forte movimento de entidades ligadas ao mercado imobiliário com o objetivo de modificar entendimentos sumulados no STJ, que de alguma maneira ainda dão algum tipo de proteção aos consumidores desse setor” (fonte: conjur.com.br).

O rápido apanhado realizado demonstra uma relação profundamente assimétrica entre incorporadoras e consumidores. É urgente e importante uma criteriosa revisão da legislação, com reflexos na jurisprudência, para consagrar um equilíbrio razoável, com segurança jurídica, entre o desenvolvimento da importante atividade econômica de incorporação imobiliária e a proteção do consumidor, na peculiar condição de promitente-comprador de uma unidade imobiliária por ser construída.

Esse delicado panorama da incorporação imobiliária ilustra bem uma afirmação que faço de maneira recorrente. As profundas desigualdades socioeconômicas brasileiras decorrem, em grande medida, de importantes instrumentos de transferência de riquezas cuidadosamente inseridos na institucionalidade jurídica.

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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e Procurador da Fazenda Nacional.