Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A sentença contra a repórter brasileira que deixou o mundo escandalizado

(Foto: Arquivo pessoal)

Em novembro de 2020, a jornalista Schirlei Alves revelou no site Intercept Brasil cenas de um interrogatório virtual que se transformou numa sessão pública de horror. Tratava-se de um julgamento de crime de estupro em que a vítima foi submetida a uma série de humilhações ante a inação do juiz que presidia a sessão. 

O país, escandalizado com o tratamento dado à jovem, Mariana Ferrer, que implorava por uma intervenção do magistrado, se mobilizou pela criação da Lei 14.245, que prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos. Foi criado também um protocolo para julgamento com perspectiva de gênero pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle e fiscalização do Poder Judiciário.  O mesmo CNJ aprovou, por unanimidade, a aplicação da pena de advertência ao juiz por sua omissão na condução da audiência.

É uma história em que o jornalismo corajoso traz resultados diretos para melhores práticas no trato com a sociedade. Mas não é bem assim. Depois da repercussão da matéria, promotor, juiz e advogado do réu foram à Justiça em busca de reparações. Como resposta, o Poder Judiciário de Santa Catarina feriu a liberdade de imprensa e puniu a repórter que ousou revelar as humilhações sofridas por Ferrer. Em primeira instância, ela foi condenada a um ano de prisão em regime semiaberto e a uma multa de R$ 400 mil, muito além de suas posses como jornalista freelancer.

Mas a decisão que condenou Schirlei Alves não matou o espírito democrático. Despertou perplexidade e ação: o caso dela já se tornou paradigmático para o Brasil e, felizmente, para o mundo.

Desde que a sentença contra Schirlei veio à tona, em meados de novembro passado, organizações nacionais e internacionais que monitoram violação de direitos humanos e o cerco à liberdade de imprensa já emitiram mais de 20 notas de repúdio à decisão determinada pela 5ª Vara Criminal de Florianópolis. A sociedade civil brasileira se uniu para denunciar a brecha perigosa. Mais de 50 reportagens foram publicadas e republicadas.

A campanha em prol de Schirlei Alves mobilizou a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que, a partir de Washington, emitiu um comunicado no qual insta o Estado brasileiro a agir, inclusive pedindo que as autoridades judiciais revisem a sentença em instâncias superiores. Dez anos atrás, a CIDH já havia recomendado que os países deixassem de tratar como crimes as acusações de injúria, calúnia e difamação. Até hoje a orientação é ignorada pelo Brasil. 

A Media Defence,  comandada em Londres pelo brasileiro Carlos Gaio, informou o caso ao Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). A Coalizão para Mulheres no Jornalismo (Coalition For Women In Journalism), definiu o veredito como “chocante” e apontou que a decisão é um ataque “não apenas contra uma jornalista corajosa, mas contra os princípios do jornalismo livre e independente”.

A Fundação Robert F. Kennedy de Direitos Humanos (RKFHR) incluiu Schirlei Alves entre os quatro brasileiros acompanhados pelo “Civic Space Case-Tracker”, um sistema inovador para monitorar situações similares que ameaçam o espaço cívico na África e na América Latina. Sofía Jaramillo, advogada sênior da organização, diz que o caso “precisa ser monitorado para evitar retrocessos graves no espaço cívico do Brasil”. 

Aqui no Brasil, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF), no Rio de Janeiro, encaminhou uma representação ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) pedindo adoção de estratégias para prevenir o assédio judicial contra jornalistas no qual cita os processos contra Schirlei Alves.

O despacho atendeu a uma representação enviada por seis organizações: Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC); Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB); e INTERVOZES – Coletivo Brasil de Comunicação.

 “Não se trata de um caso que afeta apenas a categoria, mas toda a sociedade. O MPF se somou a esse coro, que aponta as consequências nefastas dessa decisão judicial que desconsidera o relevante serviço prestado à população e penaliza a repórter”, disse Katia Brembatti, presidente da Abraji.

Para a advogada Charlene Nagae, diretora executiva do Tornavoz, a condenação da jornalista Schirlei Alves é tão absurda que não poderia deixar de gerar tantas reações. “Mas é preciso que a gente ultrapasse a barreira da indignação, que o Poder Judiciário reverta essas decisões, e que soluções para combate ao assédio judicial avancem – não é tarefa fácil, mas permitir que o sistema de Justiça seja mal utilizado para impedir a livre circulação de informações e ideias é algo que não podemos mais tolerar”.

Entre as entidades internacionais que vieram à público e condenaram a sentença está a Repórteres Sem Fronteiras (RSF). “O caráter desproporcional da condenação parece estar mais preocupado em satisfazer uma necessidade de vingança dos envolvidos e em desencorajar investigações jornalísticas sobre a atuação de operadores de Justiça, do que em reparar algum tipo de dano”, afirma Artur Romeu, representante da RSF na América Latina.

Antes da sentença, Schirlei Alves já havia sido condenada e perseguida pelo tribunal insano da internet. Foi uma das mulheres jornalistas mais visadas por campanhas difamatórias e recebeu centenas de mensagens misóginas. Recentemente, quando a Folha divulgou que o mesmo juiz está processando mais de 160 pessoas por terem usado nas redes sociais uma hashtag ligada ao julgamento de Mariana Ferrer, novos disparos de ódio eclodiram. Schirlei Alves voltou a ser atacada. 

Até o momento, a única pessoa punida foi a repórter que mostrou denúncias de estupro que respingam na responsabilização das vítimas. Não fosse por ela, toda essa história estaria fadada à sombra dos arquivos do tribunal.

***

Maria Cleidejane Esperidião é jornalista com doutorado, foi editora na Globo por duas décadas e gerente-executiva da Abraji. Hoje é consultora e atua como pesquisadora-bolsista do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ, na sigla em inglês). Contato: mariacleidejanee@gmail.com