Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O cinema como um subterfúgio da realidade

Este artigo faz uma análise reflexiva sobre a relação da realidade com o ficcional através do recurso da metalinguagem presente no filme A rosa púrpura do Cairo (1985) – do diretor norte-americano Woody Allen no período histórico em que está inserido: a grande depressão de 1929. O problema a ser questionado aqui é: por que as pessoas buscam no cinema subterfúgios em vez de elucidação em momentos de crise? Durante a grande depressão de 1929 o estilo de vida outrora invejável dos americanos estava desmoralizado e o cinema se tornou uma fuga imaginária. O filmeA rosa púrpura do Cairo manteve sua padronização do ideal de vida americano onde Cecília, personagem e espectadora do filme A rosa púrpura do Cairo, se identificou e passou a vivenciar o mundo imagético.

O questionamento de nossa realidade faz reviver uma história jamais contada na telinha do cinema, imuniza-nos contra o domínio dos padrões midiáticos, aceita as diferenças e vive a realidade. Num momento de crise, a fuga se torna a escolha mais fácil e procrastinatória, visto que causa distração em vez de elucidação. A análise crítica da contemplação fílmica leva em consideração que a subjetividade pode ser manipulada quando esta não está enraizada ou diante de uma grande crise econômica ou existencial. A fragilidade é inerente ao homem independente da época ou período em que vive. Quando se vê incapaz de solucionar um problema, cria condições de fuga. A crise econômica intensificou a necessidade da ficção, os vitimados passaram a buscar otimismo e glamour projetado nas telas do cinema.

O objetivo deste artigo é analisar reflexivamente o filme A rosa púrpura do Cairo (1985)- do diretor norte-americano Woody Allen – contextualizando o período histórico que está inserido: A grande depressão de 1929. Identificando os elementos metalinguísticos que levaram a personagem e espectadora Cecília a vivenciar uma fábula como fuga da realidade. Para isso foi utilizado o método da pesquisa teórica descritiva e da observação do comportamento humano detido na obra. O objeto de estudo são as personagens, especialmente a personagem e também espectadora, Cecília. A análise descritiva do comportamento da personagem diante da ficção idealizada em comparação com a realidade de uma grande crise econômica. A pesquisa está fundamentada no estudo de grandes autores bibliográficos como Douglas Kellner, Gianni Vattimo, Zygmunt Bauman e o historiador Eric Hobsbawm.

O cinema na Grande Depressão de 1929

A grande depressão de 1929 se tornou um marco histórico do século 20. Foi um período longo de recessão econômica sentida no mundo inteiro que perdurou durante a década de 1930 até o início da segunda guerra mundial (1939-1945). Os EUA se mantiveram na liderança econômica mundial no período de 1920 a 1929 num crescente desenvolvimento econômico também conhecido como o grande boom. No entanto, a prosperidade da nação se tornou ilusória, o aclamado status americanocaiu por terra e a crise se alastrou tão rápido como faísca no palheiro.

A superprodução agrícola e industrial juntamente com a diminuição do consumo, a economia de livre mercado e a quebra da Bolsa de Valores de Nova York se tornaram fatores decisivos para despertarem o cenário caótico da economia norte-americana e de diversos países. O desemprego trouxe a fome e com ela a miséria. O estilo de vida tão almejado pelo ocidente agora era o pior possível. A grande depressão, sentida no mundo inteiro, havia se instalado e prometia demorar-se. “… a economia mundial capitalista pareceu desmoronar. Ninguém sabia exatamente como se poderia recuperá-la” (Hobsbawm,1995, p.91).

Apesar da crise econômica a indústria cinematográfica fez ressurgir das cinzas grandes avanços tecnológicos para os cinematógrafos como a criação dos primeiros filmes a cores e sonoros. Mesmo com a recessão econômica, milhões de pessoas se tornaram cinéfilos, apaixonados pelo cinema, embevecidos pelos ideais de romances, estilo de vida e personalidade das personagens. Uma nuvem de otimismo era projetada propositalmente nas grandes telas. Os atores e atrizes mostravam bravura, coragem e esperança de uma vida melhor, tornando heróis e heroínas de seu tempo. Havia se instalado um grande fascínio ao cinema americano.

“Os espectadores despojados de poder gozam a emoção de identificar-se com o poder ‘natural’ e tecnológico e de superar magicamente todas as adversidades. Os efeitos especiais de Hollywood produzem um espetáculo graças ao qual o público é capaz de vivenciar o poder de derrotar decisivamente o mal” (Kellner, 2001, p. 95).

Metalinguagem – O filme dentro do filme

A influência cinematográfica na grande depressão traz à luz uma reflexão sobre a subjetividade humana posta a mercê dos encantos ficcionais. Os filmes cinematográficos com sua linguagem otimista influenciaram a psique dos americanos, fez brotar o sentimento de esperança onde só havia desmoralização.

O mais inesperado é que os EUA se tornariam a principal potência econômica e cultural cinematográfica do mundo, tendo como um símbolo dessa ascensão Hollywood. O cinema americano enrraizou suas convicções e solidificou a indústria cinematográfica durante os anos da depressão. O gênero fílmico mais procurado nas salas das ilusões eram as comédias, podemos contrapor as lágrimas reais de um mundo inundado no caos pela futividade ao mundo do riso, da luz, cãmera e ação.

A Rosa Púrpura do Cairo(1985) é uma explícita homenagem de Woody Allen ao mundo mágico dos filmes cinematográficos. Se trata de uma obra situada no gênero comédia mítica. O filme evidencia o enlace da realidade com o mito fabuloso. De um lado, as incertezas e misérias resultantes da tragédia socioeconômica do outro, a magia cantada em versos e prozas com muito glamour e promessas de felicidade. Mesmo sendo uma homenagem ao cinema e aos cinéfilos, o autor usa de primazia e leveza para evocar o pensamento crítico dos espectadores. A metalinguagem é o principal recurso línguistico ultilizado na adequação da fábula glamurosa à realidade vivenciada pelas personagens. A noção do filme dentro do filme não é só criativa mas uma forma de reflexão. O título do filme é o mesmo da trama, que se desenrrola no período da grande depressão de 1929, um período de crise econômica incomensurável.

A protagonista e espectadora Cecília vive num bairro pobre de Nova Jerssey e trabalha como garçonete para sustentar a casa enquanto seu marido finge procurar serviço. Cecília vive uma realidade difícil, que é a mesma da maioria das pessoas de sua época. O cinema se tornou um momento de prazer diante do triste palco de sua vida. Ao contemplar o filme A Rosa Púrpura do Cairo, sente-se como sair do corpo e experimentar um mundo novo e convidativo. Ela retorna ao cinema por cinco vezes em uma só semana e vive um sonho distanciado por uma tela. Cecília se apaixona por Tom Baxter o ator principal do filme que ela assiste encantada pela postura e delicadesa que o mesmo desempenha atrás da tela.

A ideologia nos filmes

“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quando mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte” (PINTO, 2011 apud DEBORD, 1997, p. 24).

O clímax do filme se dá no momento que Tom Baxter sai da tela do cinema para se encontrar com sua “amada” Cecília. As cenas subsequentes são diálogos profundos entre a ficção e realidade. A ânsia de uma vida melhor distanciou a personagem e espectadora de sua funesta realidade. Seus olhos outrora ofuscados, agora brilhavam sem pudor ou medo do que estava porvir. O desfecho do filme não é mítico mas totalmente racional. Cecília se vê novamente como a simples espectadora do filme que dantes a fizera sonhar em fazer parte dele. A decepção do ‘despertar’, vista na expressão facial da personagem e espectadora, gera uma contraditória reflexão, ao mesmo tempo que queremos ver a moça ir para Hollywood nos braços do romântico ator, percebemos que tal fato é humanamente impossível, nunca acontecerá, porque Cecília não é só personagem é também espectadora de seu próprio filme.

Tão acostumados com o happy end, A Rosa Púrpura do Cairo nos faz pensar sobre como acordar de um sonho tão real no imaginário e seguir com a realidade controvérsia a lineridade da ficção. O olhar triste de Cecilia nos impulsiona a desejar o que ela desejou, um final feliz. A característica sonhadora da personagem Cecilia se identifica na ingenuidade e fragilidade dos espectadores. Somos flexíveis mediante novas perspectivas de vida e se essa vem enquanto estamos sentados saborenado um pacote de pipocas, melhor ainda. Por natureza somos levados a comodidade, enquanto o mundo está um caos tremendo, nós fugimos ao abrigo das ilusões. O filósofo norte-americano Douglas Kellner deixa claro em seus escritos que os meios que comunicam alguma informação o fazem de forma a mostrar sua visão ideológica e na maioria das vezes utópica. Parte do espectador a necessidade de ter o senso crítico apurado, capaz de selecionar aquilo que convém a sua forma de vivência daquilo que não convém. “Em filmes a ideologia é transmitida por imagens, figuras, cenas, códigos genéricos e pela narrativa como um todo” (Kellner, 2001, p.93).

O olhar imaginário da realidade

A indústria cultural é um imenso campo de batalhas. Somos a todo momento bombardeados por narrativas e recursos audiovisuais conotativos, com propósito de manipular nossa visão de mundo e consequentemente nosso comportamento. No filme A Rosa púrpura do Cairo, a personagem Cecília se torna uma presa fácil, ela está totalmente fragilizada pela crise a sua volta, seu senso crítico não é tão relevante no momento em que ela se entrega a viver de ilusão. Mas como acordar de um sonho, Cecília, nota que estivera na mesma situação a todo momento. Assim, “os textos ideológicos (…) põem à mostra tanto os sonhos e os pesadelos significativos de uma cultura quantos os modos como essa cultura está tentando canalizá-los para manter suas atuais relações de poder e dominação” (Kellner, 2001, p.146).

A metalinguagem é um recurso utilizado para compreender a linguagem cinematográfica. O filme dentro do filme desempenha o papel crítico da relação do cinema com o espectador. Existe uma identificação da personagem e também espectadora do filme com os espectadores reais ou seja, todos nós. O autor está contando nossa própria maneira de ver, ouvir e sentir o mundo mágico do cinema. Logo que existe uma interação, surge a reflexão sobre nosso comportamento diante da imagem em movimento carregada de ideologia ou simples denotação. Pensar sobre a direção que estamos tomando como humanidade pelo que meus olhos estão contemplando se tornou essencial na busca pela identidade e separação do real da ficção.

“A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão tais trevas!” (Jesus, Mateus 6.22-23).

A percepção do mundo que nós vivemos é alcançada pela integração dos sentidos humanos. A visão é o sentido mais claro e denunciatório de todos, através dela conseguimos distinguir o preto do branco assim como a comida do veneno. As imagens captadas nos dão a noção de realidade segundo algo que já conhecemos. Nos filmes cinematográficos a visão faz seu trabalho da mesma forma, o resultado é o real imaginário: “Objeto, pessoa ou natureza, tudo já está em movimento e, dentro deste, produz-se uma imagem singular que desperta a emoção, um conhecimento novo” (Médola, 2007, p. 26).

O retorno do “homem visível”

Ver além significa atravessar as cortinas do real imaginário, é sair da tela como fez Tom Baxter no filme A Rosa Púrpura do Cairo, é ter uma conversa franca com o eu espectador sobre como estou vivendo a minha realidade. A sociabilidade ou associação do olhar com o espírito crítico resulta em conformidade e lucidez tão necessárias para a busca do ideal alcançável de uma sociedade ou ser humano íntegros com uma história única de sobrevivência e coragem para enfrentar os horrores mais nefastos de sua própria história que outros, talvez, jamais visualizarão.

A crítica não deve ser para levar à fogueira a indústria cultural cinematográfica e sim apresentar como produto cultural passível de manipulações do imaginário em prol da cultura dominante. Ver mais além das imagens apresentadas significa descobrir o histórico da obra e as razões que motivaram o autor a criar seres fantasmagóricos com vidas distintas da maioria de nós. Muitos autores ignoram o fato de que muitas pessoas contemplarão furtivamente uma obra de arte que negligencia a sua cultura e ou momento histórico crítico que vive.

O que fazer? Ou convidar a ver? A composição da imagem se relacionava com a postura dos espectadores, com sua capacidade de hierarquizar os estímulos; mais importante, o cinema poderia ser uma lição, um momento de liberação do olhar, de revelação, de descoberta ou de recuperação de algo perdido, como mais tarde se formulou ao se dizer que ele era o retorno do “homem visível” e instalava novamente a ordem da fisionomia dentro da cultura” (Médola, 2007 p. 23).

Uma realidade furtiva além das possibilidades

O olhar atento demonstra interesse profundo pela mágica magistral, como um recém nascido, busca a compreensão dos fragmentos dissolutos na grande tela luminosa. Todos os efeitos cinematográficos são responsáveis por tornar verossímil o conjunto de imagens em movimento. Essa concentração de atenção se torna a pura contemplação de algo abstrato que se compõe no imaginário daqueles que o fazem, se os mesmos estão cheios do espírito crítico cinéfilo, qualquer que seja a metáfora não vai persuadi-los por caminhos de fugazes incertezas. Para Zygmunt Bauman, a instabilidade ou “liquidez” da sociedade, faz da vida um labirinto de dispêndios. O consumismo desfez a essência da vida natural onde ‘tudo se transforma’ em vida e não em “lixo”. “A crítica é auto-referente e voltada para dentro. E assim o é a reforma que essa autocrítica exige e estimula. É em nome dessa reforma, que olha e se dirige para dentro, que o mundo exterior é depredado, saqueado e devastado” (BAUMAN, 2007, P.19).

“Assim, se com a multiplicação das imagens do mundo perdemos o sentido da realidade, como se diz, talvez isso não seja afinal uma grande perda. Por uma espécie de lógica internaperversa, o mundo dos objetos medidos e manipulados pela ciência-técnica (o mundo do real, segundo a metafísica) tornou-se o mundo das mercadorias, das imagens, o mundo fantasmagórico dos mass media” ( VATTIMO,1992, p. 14).

A sétima arte necessita ser analisada de forma reflexiva de todos os ângulos, não somente como um produto que causa euforia e desejo, mas como uma obra de arte numa caixa de surpresa que será recebida por vários consumidores das mais diversas formas. A dominação cultural existe somente se nos colocarmos como seres passíveis de receber tudo o que nos é apresentado como fórmulas mágicas de fuga da cultura ou realidade presente. A noção de que não existem subterfúgios no mundo imaginário e sim somente momentos passageiros de distrações, já é o bastante para nos posicionarmos diante da verdade. O olhar transparente sabe que não existe sociedade ideal.

A necessidade de estímulos sensoriais é necessária ao homem. Olhar uma representação de algo muito desejado é quase unanimemente considerável, porém transformar essa imagem visualizada como realidade furtiva além das possibilidades é correr riscos sem sair do lugar.

Conclusão

A sétima arte desempenha um papel único na adesão de seus respectivos espectadores e cinéfilos. Sendo incomparável a flexibilidade com que expõe sua ideologia ou pensamento crítico a respeito de um assunto, o cinema se destaca entre todas as outras artes por tornar muito verossímil suas obras primas. A Rosa Púrpura do Cairo se deteve no papel de responsabilidade do cinema em mostrar onde se encontra o espectador diante dos raios de luz criados para ofuscar sua realidade e demonstrar que o mundo ficcional sempre será mais brilhoso. E como o mesmo reage a todo esse deslumbramento inalcançável mas desejado. Woody Allen trabalhou em tornar eloquente a leveza com que trata dois assuntos extremos e ao mesmo tempo tão unidos, como é a ficção com a realidade nos filmes e o olhar do receptor diante de todo o movimento aparentando realidade.

A personagem e também espectadora do filme Cecília nos apresenta uma auto-reflexão, ela não só é tomada pela fuga da realidade como também se mostra aflitiva quanto à situação atual em que vive. Como espectadores identificamos profundamente com a narrativa a ponto de também nos volvermos para uma auto-reflexão sobre como estou confrontando a minha realidade, que é consequentemente a realidade de uma sociedade. A fuga não compensa o desfecho de toda uma história, ela apenas limita nossa capacidade de ver além das situações adversas.

A análise fílmica como forma de discussões, através de estudos de simples estudantes ou de grandes autores, é necessária para que haja elucidação da veracidade contida nos produtos que trabalham com o imaginário fértil de todo ser humanos nos mais diversos momentos de sua vida.

Referências bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. Bauru, Edusc, 2001.

MÉDOLA, Ana Sílvia, ARAUJO, Denize Correa e BRUNO, Fernanda. Imagem, visibilidade e cultura midiática. Livro da XV Compós. Porto Alegre: Sulina, 2007.

VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

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[Edicléia da Silva Oliveira é estudante de jornalismo, Centro Universitário Adventista de São Paulo, Unasp-EC, Conchal, SP]