Todas as vezes que a imprensa nacional expõe a possível existência no Brasil da doença popularmente conhecida como “mal da vaca louca”, a notícia morre na praia. Isso acontece por não haver provas suficientes para o sensacionalismo desejado (e duradouro) nem potencial para uma crise diplomática – ruína das fortunas dos reis da pecuária e incineração generalizada de políticos e burocratas –, ou para o sacrifício de rebanhos inteiros, como aconteceu além-mar, no Reino Unido.
O calvário das pessoas atingidas e vitimadas por doenças priônicas e o de suas famílias, que já ocorre no país há décadas, é considerado infortúnio menor e assunto tabu, enredo que desencanta frente à sua complexidade teórica e escalada de termos científicos que rondam a “descoberta” e as manifestações do “príon” – proteína patogênica adquirida por herança genética ou contágio –, um silencioso serial killer que há séculos dizima várias espécies de animais mundo afora, inclusive a humana.
A suposta raridade da Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ), manifestação em seres humanos de uma proteína patogênica, que também é identificada na encefalopatia espongiforme bovina, ou BSE (sigla da expressão inglesa bovine spongiform encephalopathy), ou ainda “mal da vaca louca”, chega a ser enunciada no site do Ministério da Saúde como inexistente (sem registro) no Brasil desde 1994.
Vítimas da DCJ no Brasil
“No Brasil, no período de 1980 a 1999, foram registrados 105 óbitos suspeitos de DCJ, sem confirmação oficial. Desde o surgimento da nova variante da DCJ (vDCJ), em 1994, não foi registrado nenhum caso da doença” [Brasil. Ministério da Saúde. (Ed.). Doença de Creutzfeldt-Jacob (DCJ). Portal da Saúde – SUS. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/area.cfm?id_area=1548. Acesso em: 10 mar. 2012].
Qualquer busca realizada na internet permite vislumbrar que o Ministério da Saúde, ao fazer essa declaração, poderia ser acusado pelo crime de falsidade ideológica – “esconder informação ou dar informação falsa em documento público ou particular” –, tipificado no artigo 299 do Código Penal Brasileiro. O empenho em omitir a existência de casos de DCJ no Brasil, e não investigá-los adequadamente, pode ser comparado aos esforços da ditadura militar em não escrever o capítulo da história dos “desaparecidos”. Esse tipo de cenário torna propícias a aparição e a atuação de serial killers. Tal postura representa uma afronta à cidadania das vítimas dessa terrível enfermidade, suas famílias, amigos e demais pessoas implicadas.
Em 2001, uma mulher branca de 54 anos, natural de Ponta Grossa, Paraná (PR), foi atendida no Instituto de Neurologia de Curitiba (PR), apresentando problemas de visão, falta de coordenação motora e dificuldade para caminhar. A paciente, ainda lúcida, porém com momentos de alienação, manifestava estremecimentos ou “sustos” decorrentes de estímulos sonoros do ambiente, assim como tremores e contrações musculares involuntárias (mioclonias). A dificuldade para falar virou mutismo, associado à demência e ao confinamento ao leito devido à degeneração progressiva de seu estado de saúde, vindo a falecer em 2003, “por pneumonia” [ARRUDA, Walter Oleschko; BORDIGNON, Kelly C.; MILANO, Jerônimo B. and RAMINA, Ricardo. Doença de Creutzfeldt-Jakob forma Heidenhain: relato de caso com achados de ressonância magnética e DWI. Arq. Neuro-Psiquiatr. [online]. 2004, vol.62, n.2a [cited 2012-04-27], pp. 347-352 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2004000200029&lng=en&nrm=iso. ISSN 0004-282X. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X2004000200029 . Acesso em 15 mar. 2012].
“Não há transmissão desta doença no Brasil”
O diagnóstico dessa paciente foi de DCJ na forma de Heidenhain da doença (DCJvh). Essa variante já fora encontrada em 1983 em outra paciente brasileira, uma senhora de 63 anos de idade. Esse fato foi descrito na literatura médica em 1986, o que desmente, mais uma vez, a afirmação do Ministério da Saúde, desta feita no que se refere à expressão “sem confirmação oficial”. Após o óbito, os pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo incluíram em seu artigo a foto de um corte do encéfalo de mais essa vítima da DCJ, a quem chamaram de “o caso O. B. registro 995088”. Nessa época, ainda se falava em vírus e não em príon [PINTO JÚNIOR, Luciano Ribeiro et al. Forma de Heidenhain da doença de Creutzfeldt-Jakob: relato de um caso. Arq. de Neuropsiquiatria, São Paulo, 1986. Disponível em: http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&ved=0CEUQFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.scielo.br%2Fpdf%2Fanp%2Fv44n1%2F08.pdf&ei=qp6aT78_hLe3B9G2kacE&usg=AFQjCNFIzPPKywY0g6ZZY5M6nAd37G9IDg. Acesso em: 19 abr. 2012].
Em 2008, um homem branco de 48 anos, natural da cidade de São Paulo e residente na mesma, procurou atendimento médico por ter dificuldade para caminhar e limitações para movimentar o lado esquerdo do corpo. Em um curto intervalo de tempo, passou a ter mioclonias, demência progressiva, convulsões e piora generalizada do seu quadro clínico, o que resultou na sua morte cinco meses depois da internação. A história tornou-se pública na literatura médica de profissionais do Hospital Heliópolis, com a confirmação da DCJ obtida por necropsia [NEITZKE, Ideli et al. Apresentação clínica da Doença de Creutzfeldt-Jakob como Síndrome Cerebelar. Revista Neurociências, São Paulo, v. 1, n. 17, p.63-66, 2009. Disponível em: http://www.revistaneurociencias.com.br/edicoes/2009/RN%202009%201/217%20.pdf Acesso em: 24 abr. 2012].
Entre os relatos que surgiram na imprensa, há o de um homem de 58 anos com suspeita de DCJ, admitido duas vezes no Hospital Beneficência Portuguesa de Campinas (SP), em 2010, com alguns dos sintomas descritos anteriormente. O caso foi analisado por junta médica e houve manifestação pública das autoridades:
“A Vigilância em Saúde informou ainda que ‘não há transmissão desta doença no Brasil e, portanto, não tem impacto na saúde pública ou impacto econômico’. Também esclarece que ‘a doença não é transmitida de pessoa a pessoa e não exige medida de controle no Brasil’”[Campinas investiga caso suspeito de doença da vaca louca. G1 São Paulo. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/11/campinas-investiga-caso-suspeito-de-doenca-da-vaca-louca.html. Acesso em: 18 nov. 2010].
Pacientes têm doença rara
Também de São Paulo, porém com detecção no Hospital Universitário de Alagoas, um homem de 30 anos foi internado em estado grave, em 2009, mas houve o desmentido da suspeita de doença priônica, pois o médico afirmou que os resultados dos exames apontavam para a Doença de Wilson.
“O paciente com suspeita da doença tem 30 anos, reside em São Paulo e trabalha como estivador no Porto de Santos, onde teria ingerido carne bovina contaminada, oriunda do exterior” [TUDONAHORA.COM.BR (Brasil) (Ed.). Exame de homem com suspeita de ‘vaca louca’ deve sair até sexta. Disponível em: http://tudonahora.uol.com.br/noticia/maceio/2009/11/23/75535/exame-de-homem-com-suspeita-de-vaca-louca-deve-sair-ate-sexta. Acesso em: 29 abr. 2012].
Uma menina de cinco anos de idade foi vítima da DCJ em Campinas (SP), onde permaneceu internada no hospital desde os seis meses de idade com encefalopatia espongiforme, comprovada por necropsia. O estudo realizado na Pontifícia Universidade Católica de Campinas discutiu se a Síndrome de Alpers poderia ser uma variante da DCJ [POTT JÚNIOR, Henrique; FERREIRA, Maria Cristina Furian; MATTOS, Amilcar de Castro. Síndrome de Alpers uma variante da Doença de Creutzfeldt-Jakob? Revista Neurociências, Campinas – SP, v. 4, n. 19, p.663-667, 2011. Disponível em: http://www.pdfdownload.org/pdf2html/view_online.php?url=http%3A%2F%2Fwww.revistaneurociencias.com.br%2Fedicoes%2F2011%2FRN1904%2Frelato%2520de%2520caso%252019%252004%2F594%2520relato%2520de%2520caso.pdf. Acesso em: 30 abr. 2012].
Em Natal (RN), no Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL), foram identificados seis casos a partir de 2006 [SANTOS, Sérgio Henrique. Onofre Lopes: Pacientes não têm Vaca Louca, mas doença rara. Diário de Natal, Natal, 24 ago. 2011. Disponível em: http://www.diariodenatal.com.br/2011/08/24/cidades4_0.php]. Acesso em: 02 jul. 2012]. Em 2011, um homem de 42 anos e uma mulher de 31 anos foram internados com DCJ no mesmo HUOL, com intervalo de um mês entre as admissões.
Possível caso deixa hospital em estado de alerta
Em 2012, surgiu a suspeita de um homem com o “mal da vaca louca” no Amazonas [MAIA, Ana Graziela; LIFSITCH, Andrezza. Homem com suspeita de ‘Mal da Vaca Louca’ é tratado no Amazonas. G1 Amazonas. Disponível em: http://g1.globo.com/amazonas/noticia/2012/03/homem-e-diagnosticado-com-suspeita-de-mal-da-vaca-louca-no-am.html. Acesso em: 21 mar. 2012]. A DCJ não é mencionada nessa notícia. O desmentido foi feito na tribuna da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, quando o parlamentar disse que “o mal da vaca louca é causado por ração de origem animal”, revelando que havia dois casos de encefalite no Estado:
“Tony Medeiros reuniu-se com o presidente da Federação da Agricultura do Estado do Amazonas (Faea) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-AR-AM), Muni Lourenço Silva Júnior e com o presidente da Codesav, Sérgio Muniz, para que fique bem claro que os dois casos de encefalite registrados não têm nada a ver com o mal da vaca louca. ‘Gente, uma notícia dessas pode trazer sérios prejuízos ao país e é por isso que vai encerrar a história a partir de hoje’, disse ele, ao assegurar que ouviu a manifestação oficial da Codesav sobre o assunto” [Amazonas, Assembleia Legislativa do Estado do (Comp.). Tony Medeiros faz esclarecimentos sobre mal da vaca louca. Disponível em: http://al-am.jusbrasil.com.br/noticias/3068328/tony-medeiros-faz-esclarecimentos-sobre-mal-da-vaca-louca. Acesso em: 27 mar. 2012].
Apesar de excluída no contexto acima, a DCJ surge em Pernambuco quando esse serial killer é descoberto na internação de uma cozinheira de 54 anos, no Hospital do Tricentenário de Olinda e, posteriormente transferida para o Hospital Mendo Sampaio, no Cabo de Santo Agostinho. Feitos os exames, vem a confirmação com a designação da doença:
“De acordo com Gil Brasileiro, diretor da unidade de saúde, não há mais nenhuma análise a ser feita. Ela realmente tem a doença que pode, inclusive, vir a ser a Creutzfeldt-Jakob, conhecida popularmente como Mal da Vaca Louca” [PENA, Edward. Possível caso do “Mal da vaca louca” deixa hospital em estado de alerta em Olinda. Folha.com.br. Disponível em: http://www1.folhape.com.br/cms/opencms/folhape/pt/cotidiano/noticias/arquivos/2011/outubro/1010.html. Acesso em: 19 mar. 2012].
“Não é um caso isolado”
Nessa mesma época, em abril de 2012, um senhor de 70 anos estava internado no Hospital D’Ávila, mas a notícia com a informação de ser mais um caso de DCJ em Pernambuco, só foi publicada em julho de 2012, após o teste da proteína 14-3-3, feito a partir do líquor cefaloraqueano (LCR), ter sido positivo [GONÇALVES, Rui. Mais um caso suspeito de doença priônica foi notificado em Pernambuco: Paciente estaria internado desde abril em um hospital da rede particular . Folha PE – Cotidiano. Disponível em: http://www.folhape.com.br/cms/opencms/folhape/pt/cotidiano/saude/arquivos/2011/outubro/0156.html. Acesso em: 9 jul. 2012].
A essa, seguiu-se a desinformação da Gerência de Agravos Agudos da Secretaria Estadual de Saúde, com a declaração de que “a doença não é transmissível” [PERNAMBUCO, Diário de (Ed.). Exames confirmam que paciente tem doença priônica. Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br/vidaurbana/nota.asp?materia=20120423182923. Acesso em: 23 abr. 2012]. No mês seguinte, foi a vez de um engenheiro de 64 anos despontar em Belo Horizonte (MG) como “o primeiro caso de vaca louca em um país da América”, apresentando os sintomas clássicos da DCJ: demência progressiva, mioclonias e paralisia unilateral progressiva, permanecendo em coma induzido. Em seguida, vem o desmentido:
“Conforme a SMSA, a biópsia apresentou resultado inespecífico, não podendo confirmar o diagnóstico dessa doença. Segundo a secretaria, como a DCJ nunca foi registrada em BH, não existe medida adicional de saúde pública a ser iniciada” [CRUZ, Luana. Engenheiro com sintomas de Doença da Vaca Louca está internado em BH. Estado de Minas. Belo Horizonte, 05 abr. 2012. Disponível em: http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/04/05/interna_gerais,287392/engenheiro-com-sintomas-de-doenca-da-vaca-louca-esta-internado-em-bh.shtml. Acesso em: 14 abr. 2012].
Entre os comentários dos leitores dessa notícia, a contestação da raridade do caso:
“Autor: Rafael Fernandes da Silva O marido de uma prima minha apresenta os mesmos sintomas e o médico também suspeitou de DCJ. Acho que este não é um caso isolado…”
Reclamação ao Ministério Público e à ANS
Em abril de 2012, internada no Hospital Aroldo Tourinho, em Montes Claros (MG), uma mulher de 27 anos fez com que a imprensa noticiasse mais um caso de DCJ, confirmada por meio de exame laboratorial realizado na França:
“A mulher internada em Montes Claros passou por um transplante de córneas em São Paulo, recentemente. O exame dela apontou doença priônica, enquanto o do homem foi inconclusivo” [O DIA (Brasil) (Ed.). Minas acompanha pacientes com sintomas de doença do Mal da Vaca Louca. Disponível em: http://odia.ig.com.br/portal/brasil/minas-acompanha-pacientes-com-sintomas-de-doen%C3%A7a-do-mal-da-vaca-louca-1.429737. Acesso em: 11 abr. 2012].
Fátima Corrêa pertence ao grupo de familiares de pacientes com DCJ que acredita que a divulgação do drama vivido pela família pode ajudar outras pessoas que enfrentam situação similar. A família de Fátima reside no Rio de Janeiro e foi surpreendida pelo diagnóstico de DCJ para Cláudia Corrêa, psicóloga e analista de sistemas, 50, que começou a sentir os primeiros sintomas da doença em 2011. Perda de memória de curto prazo, confusão mental e mudanças comportamentais foram, inicialmente, atribuídas a um quadro de depressão ou estresse. A partir de uma biópsia cerebral, realizada em junho de 2012, houve a confirmação de que Cláudia tem a Doença de Creuztfeldt-Jakob.
Para essa família, existem outros casos de DCJ no Brasil, como o da professora cearense Ludmila Araújo Barroso, 39, de Itapajé, diagnosticada em 2008. Essa informação está contida em um dos artigos que Fátima encontrou e compartilha como fruto de suas pesquisas [Diário do Nordeste (Fortaleza – CE). Mulher sofre com doença rara. Disponível em: http://glo.bo/QiYIht. Acesso em: 19 jun. 2008]. Como sua irmã necessita de cuidados contínuos, assim como a mãe de 80 anos, que é hipertensa, e a sobrinha de 14 anos (filha de Cláudia), Fátima largou o emprego para cuidar da família. Recebe ajuda dos amigos e familiares, mas a luta inclui persuadir o plano de saúde a arcar com as despesas do home care para Cláudia, o que já resultou na consulta a um advogado e reclamação endereçada ao Ministério Público e à ANS [CORRÊA, Fátima. Lutando pela vida com amor. Disponível em: <Fonte: http://on.fb.me/Q1AvXh>. Acesso em: 20 jun. 2012].
Um fato cientificamente comprovado
Com poucas exceções, nas notícias sobre a incidência da DCJ no Brasil, predomina a desinformação de quem é solicitado a opinar sobre o assunto e daqueles que estão no papel de fazer perguntas sobre o que está acontecendo com essas pessoas.
É de praxe, quando uma doença de notificação compulsória vira notícia, fazer um histórico da incidência da enfermidade no país. Isso ainda não acontece com a DCJ, ou seja, não há memória sobre onde, quando e quantos casos estão ocorrendo. As suas aparições na imprensa são narradas como o primeiro caso, raríssimo(a)s, insignificantes ou inexistentes. Como um grande quebra-cabeça cujas peças estão sendo produzidas ora pela imprensa, ora pela comunidade científica, isoladamente, mas sem uma visualização mais abrangente e conjugada das peças que formam esse cenário.
A maior dificuldade da imprensa é entender que a DCJv, aquela contraída a partir da carne do gado, “vaca louca”, tem uma diferenciação que só aparece na análise histopatológica do tecido cerebral em relação às outras denominações (esporádica, iatrogênica e familiar). Nesse caso da DCJv, aparecem placas no “formato de margaridas”, visíveis somente aos olhos do patologista que fizer essa análise e emitir o laudo. Fora isso, trata-se de uma encefalopatia espongiforme transmissível, doença priônica, como todas as demais, inclusive a que acomete o gado. Além disso, a DCJ pode ser transmitida por transfusão de sangue ou instrumental cirúrgico contaminado. É quando ganha o nome de iatrogênica (DCJi). Algumas pessoas podem vir a ter a doença por herança genética (DCJf). Portanto, é uma doença transmissível, a despeito do número de vezes em que as autoridades brasileiras insistirem em negar esse fato, cientificamente comprovado.
Muitos outros questionamentos
A DCJ esporádica (que corresponde a não saber qual foi a rota de contágio ou o que originou a doença) em muitos casos pode até ser DCJv ou outro tipo de encefalopatia espongiforme transmissível de contágio por carne bovina ou de outras espécies de animais consumidos pelo homem e que tenham contraído doença priônica. Só a análise histopatológica do tecido cerebral pode descartar essa hipótese ou a confirmação de um diagnóstico diferenciado. Há estudos recentes que indicam que o gado tem outras manifestações de doenças priônicas, além da tradicional encefalopatia espongiforme bovina (BSE, da sigla em inglês), que podem se manifestar tanto como DCJv ou DCJe [ASANTE, Emmanuel et al. BSE prions propagate as either variant CJD-like or sporadic CJD-like prion strains in transgenic mice expressing human prion protein. The European Molecular Biology Organization Journal, Londres, v. 21, p.6358-6366, 2 dez. 2002. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC136957/?tool=pubmed. Acesso em: 15 jun. 2012].
O esquecimento da imprensa sobre outras rotas de contágio da DCJ que fogem do universo da pecuária, inclui a arena do comércio de sangue e hemoderivados e o das cirurgias com instrumental médico-cirúrgico contaminado. Sobre isso, houve um pedaço do quebra-cabeça, publicado no Jornal do Commercio em 2001:
“A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ficou sabendo, em dezembro último, através do representante no Brasil do Bio Product Laboratory, que o País estava entre 11 nações que tinham recebido de 1996 a 2000 quatro lotes de imunoglobulinas e albumina suspeitas. A agência rastreou 900 mil frascos, concluindo que 18 mil deles poderiam ter como origem o doador com DCJ. Os frascos foram distribuídos para 76 hospitais e 14 distribuidoras, cujos nomes são mantidos em sigilo” [Jornal do Commercio (Recife – PE) (Ed.). Doença da vaca louca II: saúde monitora casos. Publicado em 8 fev. 2001. Disponível em: http://www2.uol.com.br/JC/_2001/0802/cd0802_2.htm. Acesso em: 24 jun. 2012].
A relevância dessa notícia de 2001 abrange vários questionamentos: O que a comissão de especialistas, criada por José Serra em 2001, com a missão de acompanhar os casos da DCJ em brasileiros fez em prol da prevenção da doença no país? Esse grupo deveria, além de estudar as ocorrências, orientar neurologistas no diagnóstico e criar medidas de biossegurança para o atendimento de pacientes. O que aconteceu com esses propósitos? Quem são os sucessores desse grupo? Quais são os centros de referências para quem é atingido por essa enfermidade? Por que as amostras suspeitas não foram destruídas? Com a publicação da Lei da Transparência caiu a determinação do sigilo sobre quais foram os 76 hospitais e 14 distribuidoras que teriam recebido os frascos contaminados pelo doador que tinha DCJ? Esse sigilo tem embasamento legal para que a informação não tenha jamais sido divulgada como de domínio público? Pode existir alguma correlação entre alguns dos casos de DCJ no Brasil e a entrada de imunoglobulinas e albumina suspeitas no país? Alguém está publicando ou ouvindo a visão e a experiência vivida pelos familiares dos vitimados pela DCJ? É fácil notificar a doença? As perguntas que são feitas no formulário de notificação são suficientes para estabelecer uma rota de contágio? Quais estados têm competência local para lidar com a incidência da DCJ? Esses e muitos outros questionamentos fazem parte da pauta sobre DCJ que não vinga no Brasil.
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[Nathália Kneipp Sena é jornalista, Brasília, DF]