Thursday, 07 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Um breve estudo sobre a verdade

Ryszard Kapuscinski escreveu grandes livros de jornalismo literário. Entre eles, figura Ébano, escrito em meados de 1958, que reúne os relatos do correspondente polonês sobre suas viagens pelo continente africano. Com uma narrativa envolvente e uma descrição detalhada dos lugares, dos habitantes e seus costumes, Kapuscinski se consagrou como um grande repórter, um modelo para escritores e jornalistas.

Na revista CartaCapital n° 720, do mês de outubro de 2012, foi publicada uma matéria sobre o lançamento da versão em inglês do livro do também polonês Artur Domoslawski, Ryszard Kapuscinski – A life. A reportagem aborda as polêmicas declarações do biógrafo, que afirma que o jornalista “tornou-se um mito do jornalismo ao contar mentiras”. Propondo que as obras de Kapuscinski sejam consideradas ficção em vez de jornalismo literário, a revelação desses fatos provoca uma quebra no contrato que prevê que os relatos jornalísticos devem sempre buscar a verdade, lançando muitas incertezas sobre o jornalismo literário.

Não sendo possível desprezar esses novos elementos para analisar a verdade, a subjetividade e a objetividade na obra Ébano, esse artigo vai utilizar os conceitos de teóricos como Bill Kovach e Tom Rosenstiel, Daniel Cornu e Ben-Hur Demeneck para destacar a importância de um contrato de credibilidade estar agregado a uma obra jornalística. Kovach e Rosenstiel confirmam a existência de um acordo acerca da verdade no jornalismo, que se aplica também em sua modalidade literária

“Ao longo de trezentos anos, os profissionais de imprensa desenvolveram um grande código não escrito de princípios e valores que devem nortear a difusão da informação – o conhecimento indireto pelo qual as pessoas podem formas suas opiniões sobre o mundo” (KOVACH E ROSENSTIEL, 2004, p. 60).

Cheque em branco

Os autores, em seu livro Os Elementos do Jornalismo (2004), definem que a primeira obrigação do jornalismo é com a verdade. Mas a questão da verdade e principalmente da credibilidade no jornalismo literário é um problema complexo, já que a esse estilo de jornalismo é dada uma margem, uma certa “licença criativa” para que o jornalista possa construir um relato mais subjetivo e pessoal dos fatos, não tão preso a técnicas de redação em comparação ao jornalismo noticioso, por exemplo. Em qualquer dos casos, como destacam Kovach e Rosenstiel (2004) “o desejo de que a afirmação seja verdadeira é básico” já que a “verdade cria uma sensação de segurança que se origina da percepção dos fatos”. Mas será essa verdade um objetivo alcançável? Os autores pontuam que há um ceticismo em torno de tudo o que é produzido, seja em literatura ou em história, e o jornalismo não escapa disso.

Uma das funções do jornalista é trabalhar em função da verdade. Quando surgem denúncias como as levantadas sobre a obra de Ryszard Kapuscinski, é preciso ressaltar que a quebra desse acordo com a verdade é um indício de que essa funcionalidade está prejudicada, já que

“O jornalista, ‘na sua missão de observador do notável, assume uma tripla responsabilidade: distinguir o que é realmente digno de ser relatado, incluindo o aspecto crítico de uma tomada em consideração do mundo vivido; relatar a realidade observada e distinguida com exatidão, sem a travestir; decidir em última análise sobre a publicação de suas informações, tendo em conta as respectivas consequências. O jornalista é responsável – pessoalmente responsável! – pela verdade das informações que relata e é seu responsável perante o público’” (CORNU, 1994, p. 320).

Os acontecimentos devem ser analisados dentro de seu contexto, contemplando a vida, a visão política, e a opinião de cada repórter ou veículo, o que conta para a interpretação de suas palavras. Na reportagem da revista CartaCapital, o biógrafo de Kapuscinski o acusa de ser um colaborador do regime comunista, fato que o teria ajudado a permanecer no cargo de correspondente por mais de trinta anos. Mesmo que se confirmem as denúncias, o fato de o jornalista possuir uma conduta política, não significa que seu trabalho esteja necessariamente contaminado por ela. Domoslawski diz que isso fazia com que o repórter “se achasse” no direito de combater “a atuação imperialista dos EUA”. No entanto pode-se também compreender uma influência subjetiva no olhar de Kapuscinski, segundo o conceito de Daniel Cornu:

“A interpretação intervém desde o começo da procura e não, tardiamente, sobre os fatos estabelecidos. Esta precocidade de interpretação, tanto no jornalista como no historiador, indica que se deve necessariamente abrir caminho à subjetividade do investigador. Mas há que considerar essa subjetividade em si mesma, como uma espécie de cheque em branco que perturbaria ou desqualificaria inevitavelmente a investigação” (CORNU, 1994, p. 341).

A prática do metajornalismo

Para Kovach e Rosenstiel, a sociedade espera que o jornalista busque sempre a verdade, independente da sua opinião partidária e com o mínimo de influência da subjetividade, já que

“essa verdade jornalística é muito mais do que simples precisão. É um processo seletivo que se desenvolve entre a matéria inicial e a interação entre o público leitor e os jornalistas, ao longo do tempo. Esse princípio básico, do jornalismo – a busca desinteressada pela verdade – é, em última instância, o que diferencia a profissão de todas as outras formas de comunicação” (KOVACH E ROSENSTIEL, 2004, p. 68).

Analisando a objetividade no jornalismo literário, Demeneck esclarece que mesmo com mais liberdade criativa, a opção por não preservar a realidade no relato jornalístico traz severas consequências, sendo que

“A perenidade e a profundidade da reportagem oferecem aos jornalistas literários os materiais brutos que eles precisam, mas não são suficientes, pois os detalhes precisam estar corretos, já que um escritor que relata dados que não correspondem ao mundo realista perde os seus mais expressivos leitores” (DEMENECK, 2009, p.7).

Relatando casos como o dos peixes gordos que segundo o autor de Ébano comiam cadáveres no Lago Vitória, mas que na verdade eram apenas uma espécie sem predador no local, o biógrafo planta uma dúvida sobre a credibilidade do relato de Kapuscinski. Seria toda a sua narrativa permeada por floreios e enfeites, como descrevem Kovach e Rosenstiel, “ironicamente enfiados nas matérias para criar uma sensação de realismo”? As consequências dessas denúncias na obra do jornalista polonês com certeza vão prejudicar a interpretação de todos que buscarem seus textos, já que um livro escrito por um jornalista deve ser pretensamente um relato jornalístico, logo, engajado na busca pela verdade e não pode ter em seu conteúdo relatos deturpados pela introdução de fatos ficcionais. Mas como ressalva Daniel Cornu, esse ideal de objetividade é muito difícil de ser atingido

“como é possível falar de notícias puras, e mais do que isso, de fatos brutos? O uso destas expressões supõe que a informação seria capaz de reproduzir a realidade, sem perdas e sem intervenção humana. Isso significaria que o jornalista como sujeito tem um papel (mera e aparentemente) passivo” (CORNU, 1994, pp. 338-339).

Para Kovach e Rosenstiel, a verdade jornalística é um processo, uma caminhada em direção ao entendimento – quesitos que aparentemente são cumpridos por Ryszard Kapuscinski em Ébano. O jornalista viveu por muito tempo na África, em diversos países e repúblicas ou reinos (classificação difícil dado a ebulição política da época, onde golpes eram dados e derrubados a todo o tempo), sempre optando por estar no meio dos habitantes locais e não nas áreas destinadas a homens brancos – segundo ele, o que poderia contar da África para os europeus se permanecesse junto aos europeus da África? – sujeito a contrair doenças e ser roubado por diversas vezes, coisas que o fizeram compreender melhor a realidade do povo africano. Mas a sua real intenção em percorrer o terceiro mundo, era a de um correspondente informativo ou a de um informante soviético? Talvez se o repórter adotasse uma postura mais transparente na descrição de seu método de apuração, muitas dessas dúvidas estariam dissolvidas. Para Ben-Hur Demeneck, a transparência é uma das exigências para a construção de um jornalismo literário, “em favor da relação entre jornalismo literário e objetividade há a transparência, da prática de um metajornalismo”. Segundo o autor, “mais que expor as conclusões da apuração, dispor-se a explicar como se deu o processo de obtenção das informações, quais valores e procedimentos serviram de critério.”

O que se espera de um livro reportagem, mesmo que com uma narrativa literária, é descobrir a verdade sobre um local distante como o continente africano, local tão bem descrito por Kapuscinski. Mas os novos fatos que lançam suspeitas á sua obra, transformando seus relatos em meras histórias inventadas, fazem com que esse contrato estabelecido pelo rótulo de jornalismo se fragilize.

Referências

CORNU, Daniel. Jornalismo e verdade – Para uma ética da Informação. Lisboa: Instituto Piaget, 1994, 468p.

DEMENECK, Ben-Hur. Objetividade e jornalismo literário: um conceito em construção. UFSC: Santa Catarina, 2009.

KOVACH, Bill. A verdade: O primeiro e mais confuso princípio. In: Os elementos do jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. 2ª ed. São Paulo: Geração, 2004.

PIRES, Francisco Quinteiro. “O jornalismo como fábula”. In: Revista CartaCapital, ed. 720. p. 74-76. 24 de outubro de 2012.

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[Nidiane Perdomo é estudante de Jornalismo na UFRGS]