Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma análise do caso Mirella Cunha

Em maio de 2012, o programa local Brasil Urgente, da TV Bandeirantes Bahia, exibiu uma matéria denominada: “Chororô na delegacia: acusado de estupro alega inocência”. Na reportagem, a jornalista Mirella Cunha entrevista o suspeito Paulo Sérgio Silva Souza. Em virtude do baixo nível de escolaridade, o entrevistado pronuncia a palavra “próstata” de maneira errônea. A repórter então debocha do acusado e ri das suas respostas. E embora ele fosse apenas suspeito de um crime, a jornalista o expõe como um condenado.

O vídeo da entrevista repercutiu nas redes sociais e representantes de entidades repudiaram a atitude da entrevistadora. O Ministério Público argumentou que os direitos constitucionais do acusado foram violados. O caso reacendeu um antigo debate sobre a ética na mídia.

É razoável pensar que a equipe do programa almejava uma repercussão com aquela reportagem. Isto resultaria no acréscimo da audiência e, por decorrência, da publicidade. Vale lembrar que a entrevista não aconteceu “ao vivo”, mas sim, fora pré-gravada. Em outras palavras, os produtores do Brasil Urgente tinham consciência do que ali era exibido. Não fora algo que escapou do controle da equipe. O que se apresentou tinha consentimento dos produtores. É evidente que não se esperava uma repercussão negativa. No entanto, o caso refletiu em outras mídias e, ademais, recebeu duras críticas de entidades e jornalistas.

Ética e mídia

De acordo Eugênio Bucci, a ética no jornalismo não deve ser perseguida somente pelos “repórteres e editores”, mas também pelos detentores dos meios de comunicação. “Cada um, agindo eticamente, constrói o próprio caráter em direção à virtude; no mesmo movimento, constrói o bem comum tal como ele é entendido em sua comunidade”, afirma Bucci (2000, p.16). Ainda segundo ele, há duas correntes que fundamentam o estudo da ética na imprensa: o utilitarismo (ou teológica) e a deontológica.

Na primeira corrente, diz Bucci, o jornalista deve analisar qual das opções irá trazer mais benefícios para uma maioria. Sendo assim, no caso Mirella Cunha, levanta-se o questionamento: os produtores do Brasil Urgente julgaram que a reportagem traria um benefício para muitas pessoas? Embora quem produz este gênero de programa afirme que há uma “função social”. Entendemos que expor o ser humano a gozação não é benigno para uma maioria e nem sequer uma minoria. Essas reportagens, na verdade, reforçam preconceitos e estigmas sociais. Bucci salienta que “o homem moderno age tendo em vista as consequências de seus atos, assumindo a responsabilidade pelos seus atos e também pelos seus efeitos” (2000, p.22). Isto que dizer que os produtores devem ou deveriam ter a consciência das consequências do que produziram e, assim sendo, são sim responsáveis pelos seus efeitos.

Na outra corrente, que se fundamenta na visão de Kant, o jornalista deve seguir princípios válidos para todos os homens. É o caso, por exemplo, da liberdade e da verdade. Noutras palavras, a liberdade deve ser um direito de todos e a verdade ser dita por todos independentemente das consequências. Para Bucci, esta corrente “não ajuda muito a decidir entre dois valores que se julgam equivalentes” (2000, p.13). Por exemplo: o que deve priorizar o jornalista: a verdade ou responsabilidade? Segundo Bucci, isto é um ponto fraco da ética deontológica.

O jornalista ainda cita na obra a chamada “regra de outro” que seria uma terceira variante. Por essa lógica, os jornalistas devem “agir em relação aos outros do mesmo modo que gostaria que os outros agissem em relação a si”, diz Bucci (2000, p.23). Será que Mirella Cunha e os produtores do Brasil Urgente queriam ser tratados da mesma forma como abordaram Paulo Sérgio? Concebemos que não, no entanto, este princípio também não foi levado em conta.

Os direitos humanos e a mídia

Na entrevista concedida ao jornal A Tarde, o doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas Edson Fernando Dalmonte asseverou:

“O argumento dela (Mirella Cunha) parte da ideia de que existem duas categorias de humanos: os com direitos e os sem. Ela me parece detentora dos direitos humanos ao mesmo tempo em que aquele rapaz (Paulo Sérgio Souza Silva) pobre, negro e desdentado, não tem direito algum. Ela tem e ele não, então ela pode fazer o que quiser” (DALMONTE, 2012, Caderno 2 Mais).

Na mesma linha se pronunciou o advogado criminalista Jackson Azevedo:

“A maneira como ela entrevistou o rapaz revela uma carga de preconceito muito grande. Se é negro, jovem e pobre, sofre toda a sanha repressiva de todos que têm possibilidade de alguma atuação pública. Duvido que o filho de Eike Batista tivesse esse tipo de tratamento” (AZEVEDO, 2012, Caderno 2 Mais).

A partir dessas declarações constata-se que só houve uma violação dos direitos humanos porque o entrevistado pertence à parte inferior da pirâmide social. Cabe lembrar que Paulo Sérgio Souza Silva mora desde criança nas ruas. Segundo o portal de notícias Correio da Bahia, ele é analfabeto e tem seis irmãos.

O pensador italiano Norberto Bobbio define assim direitos humanos: “São coisas desejáveis, isto é, fins que merecem ser perseguidos, e de que, apesar de sua desejabilidade, não foram ainda todos eles (…) reconhecidos” (2004, p.16). Ainda segundo Bobbio, há direitos em que “valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente” (2004, p.20). O autor cita, por exemplo: o direito de não ser escravizado e de não sofrer tortura.

Neste sentido, entendemos que não ser exposto a uma situação degradante e de menosprezo seria também um direito que vale para todos os homens e em quaisquer circunstâncias. Uma vez que, pôr um individuo em uma condição degradante não deixa de ser uma forma de tortura psicológica. A defensora pública e subcoordenadora de Proteção aos Direitos Humanos Fabiana Miranda chegou a declarar ao portal UOL, na época: “A repórter não se limitou ao dever de informar, atingiu cabalmente a honra, a dignidade e a imagem do deito.”

Conclusão

A partir do que expomos não resta dúvida de que os valores éticos e morais não foram levados em conta pelos produtores. Demonstramos também que os direitos humanos foram violados por quem produziu a matéria do Brasil Urgente. As razões para serem infringidos, entre outros, se deve ao baixo nível de escolaridade e das condições sociais e financeiros do entrevistado. Não são raros, na televisão brasileira, sobretudo nas retransmissoras baianas, episódios de repórteres e produtores violando direitos humanos e princípios éticos e morais.

Percebe-se neste artigo que não colocamos a responsabilidade pelo que fora praticado somente sobre os ombros da repórter. Entendemos que ela é apenas a ponta do iceberg. Como salientou Bucci não dá para exigirmos uma ética somente da base desta pirâmide. A ética deve ser seguida também pelos que estão no topo, onde se encontra os proprietários desses canais.

Isto também vale para a reponsabilidade, ou a penalização, pelos atos práticos. Em outras palavras, os repórteres, produtores e proprietários das emissoras devem ser responsáveis pelo conteúdo e penalizados em casos como de Mirella Cunha. Na época, somente a repórter fora penalizada sendo retirada do programa pela emissora. Os produtores, o apresentador do programa, Uziel Bueno, e os proprietários da emissora, não sofreram qualquer tipo de pena.

A busca desenfreada por audiência e lucro resulta num mal para a sociedade e o Estado deve brecar essas atitudes. Os produtores, deste gênero de programa, se revestem com a capa de “servidores da sociedade” e praticam atos que maculam a imagem dos seres humanos. Diferentemente de algumas artistas, que participam de programas debochadores e degradantes, Paulo Sérgio não pediu para ser exposto ao ridículo e, ademais, não recebeu nada em troca. A não ser uma exposição humilhante perante aos amigos e familiares.

Referências

BOBBIO, Noberto. “Sobre os fundamentos dos direitos do homem”. In: A Era dos Direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Layer. Nova ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2004 – 8ª impressão.

BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CORREIO DA BAHIA. Suspeito entrevistado em reportagem polêmica diz que se sentiu humilhado. Disponível aqui, acesso em: 15/05/2013 às 07h32min

MADEIRO, Carlos. “Ele se sente humilhado”, diz defensoria sobre jovem chamado de estuprador por repórter na Bahia. Portal UOL. Disponível aqui, acesso em: 15/05/2013 às 06h36min.

PAIVA, Mariana. “A mídia e a ética”. A Tarde. Salvador, p.1, Caderno 2 Mais, 26 mai. 2012.

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Rodrigo Daniel Silva é graduando do 4º Semestre do curso Comunicação Social com ênfase em Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia