Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imagens digitais na cobertura do incêndio da boate Kiss

Introdução

Um jornalista tem como sua missão filtrar a avalanche de informações que ocorrem no mundo contemporâneo. Conforme Dalmonte (2008), a apresentação do real é a condição necessária que justifica a existência do jornalismo. Essa condição vem sendo bastante discutida, uma vez que todo relato trata-se, na verdade, de uma reconstituição de fatos.

Por muito tempo a fotografia se mostrou capaz de se aproximar do real, por, conforme Floch (1986), conciliar natureza e cultura, presença e ausência. “A fotografia tem a capacidade de repetir aquilo que jamais irá se reproduzir, fazendo o objeto desaparecer” (FLOCH, 1986, p.14).

Neste trabalho será feita uma análise do uso de dois elementos que dão subsídios ao real, utilizados no jornalismo televisivo e no webjornalismo: simulações e infográficos. Serão analisadas produções jornalísticas da Rede Globo – da internet e da televisão. Na primeira parte do trabalho, realiza-se uma pesquisa bibliográfica, com o objetivo de contextualizar os elementos de simulação. Em um segundo momento, parte-se para a análise. Por fim, finaliza-se com uma conclusão acerca do que o jornalismo contemporâneo vem trabalhando em termos de imagens digitais e simulações da realidade.

Simulações da realidade

Muitos autores concordam que o jornalismo trata-se uma construção, uma interpretação social do real. Conforme Sponholz (2009), os jornalistas tomam conhecimento de parte da realidade social e a transformam em realidade midiática. Com o avanço das tecnologias, cada vez surgem mais ferramentas e alternativas para que a realidade possa ser simulada, chegando ao máximo perto do “real”. A palavra “simulação” é bastante utilizada nesse trabalho, mas não em um contexto de falseador da realidade, e sim como um ato de construção de imagens que não existiriam sem a utilização de tecnologias apropriadas – tais como ferramentas de edição de computador e vídeo.

Quando não existem imagens gravadas para representar um importante acontecimento, o telejornalismo se vale de um recurso que simula as possíveis situações ocorridas. Conforme Cabral (2008), trata-se de imagens que são construídas no computador, com base nos fatos reais, e aparecem na tela junto com as palavras “simulação” ou “reconstituição”, para indicar que as imagens foram criadas. Para Farré (2004), as estratégias de simulação, que fazem parte do trabalho de manipulação jornalística estão a serviço do enriquecimento do mundo. A imagem é um elemento crucial para a TV, já que o telejornal resulta da confluência do gênero jornalístico com o suporte televisivo/ audiovisual. É por isso que os jornalistas buscam criar verossimilhança, “uma ilusão de realismo que não alcançariam com os meios de representação objetivos, nem naturais” (FARRÉ, 2004, p. 158).

O autor Vizeu (2006) destaca que os telejornais cumprem uma função de sistematizar, classificar e hierarquizar a realidade. Com a capacidade tecnológica que se detém atualmente, os jornalistas e os editores de telejornais utilizam a simulação de imagens como estratégia para mostrar os fatos e melhorar o processo comunicacional. É importante lembrar, porém, que o recurso da simulação já era possível com a tecnologia analógica – a diferença é que hoje ela possui uma execução mais simplificada, através do uso de programas especiais.

De acordo com Silva e Rocha (2010), o Jornal Nacional, da Rede Globo é pioneiro no uso de recursos gráficos e de ficção. Foi a partir de 1989 que ele trouxe para a televisão brasileira a tendência de reconstruir os fatos utilizando desenhos (caracterizando, assim, uma reconstituição) ou gravação com atores (que seria, então, uma dramatização).

Já no webjornalismo, o recurso audiovisual complementar utilizado nas matérias costuma ser a infografia. Os infográficos são recursos gráficos que unem texto e imagem, com o objetivo de permitir a compreensão de algum fenômeno ou acontecimento. “É uma das mais sofisticadas formas de explicar complexas histórias ou procedimentos, por que combina palavras com imagens, quando palavras apenas poderiam ser cansativas para leitores e a imagem apenas seria insuficiente” (HARRIS; LESTER apud DIONÍSIO, 2006: 138). A linguagem jornalística na internet tem se tornado cada vez mais imagética, visto que o meio permite a utilização de maiores recursos visuais.

Entre as formas de se narrar notícias online, os infográficos representam apenas uma parte. Eles, porém, se enquadram numa nova forma de se fazer narrativa, digitalmente, o que criou uma alteração de paradigmas da narrativa tradicional. Conforme Lima (2009, p. 23), a infografia pode ser definida como “uma peça gráfica que utiliza simultaneamente a linguagem verbal gráfica, esquemática e pictórica, voltada prioritariamente à explicação de algum fenômeno”.

A tragédia em Santa Maria

Como contam Leite et al. (2013), na madrugada de 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria (RS), 241 pessoas morreram em decorrência de um incêndio. O fato ocorreu quando a banda Gurizada Fandangueira se apresentava na boate Kiss, localizada na região central da cidade.

Conforme Oliveira e Berwig (2013), as investigações do inquérito policial nº 94/2013/150501 (Estado do RS, 2013) apontam que, em inúmeras situações, a Boate Kiss funcionou com alguma irregularidade pertinente à documentação que autorizaria seu funcionamento. Os autores dizem, ainda, que de acordo com a perícia, a causa do incêndio foi o uso, durante o espetáculo, de artefatos pirotécnicos, cujas faíscas atingiram a espuma do teto – considerada inadequada, por se tratar de material altamente inflamável– dando início ao fogo.

O incêndio teve grande repercussão midiática, em âmbito nacional e internacional. A seguir, faz-se a análise de duas publicações de um grande portal de notícias acerca do ocorrido.

Análise

Para a realização desse trabalho, foram utilizados dois links retirados do portal de notícias da Globo, o G1. Além de trabalhar com jornalismo online, o portal reúne vídeos dos telejornais transmitidos pela emissora. A palavra-chave “boate Kiss” foi utilizada no campo de busca do portal, o que gerou 3.817 resultados (matérias relacionadas ao assunto). Abaixo listados, os títulos das duas matérias escolhidas para análise.

>> 1: Simulação mostra como fogo se espalhou rapidamente por espuma [disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2013/01/simulacao-mostra-como-fogo-se-espalhou-rapidamente-por-espuma.html. Acesso em: 10 set. 2013].

>> 2: Ao entrar numa casa noturna, saiba como verificar se o local é seguro [http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2013/01/ao-entrar-numa-casa-noturna-saiba-como-verificar-se-o-local-e-seguro.html].

A escolha da Rede Globo se deu em virtude da tradicional história e pioneirismo que a empresa de comunicação tem com o uso de imagens digitais e diferentes ferramentas. Optou-se pelo caso do incêndio da boate Kiss por ser uma notícia local, do Rio Grande do Sul, que ganhou grande repercussão na mídia nacional e internacional, promovendo muitos debates, mudanças de leis e investigações que duraram muito tempo.

Os dois links escolhidos trazem duas formas diferentes de simular a realidade. O primeiro conta com simulações e maquetes virtuais. O segundo traz um completo infográfico. Abaixo, faz-se a análise mais aprofundada de cada um dos materiais.

O primeiro link traz um vídeo do telejornal Jornal Nacional. O texto da matéria é exatamente o que é dito no vídeo. Trata-se, portanto, de uma transcrição. A estrutura do vídeo contém 1) a cabeça lida pelo apresentador William Bonner, ao vivo e na frente do local do acontecimento – o prédio da Boate Kiss, em Santa Maria, parcialmente destruído; 2) off do repórter, coberto com imagens do local que foi montado para representar a Boate Kiss. 3) breve imagem simulada no computador, representando as faíscas de um sinalizador se transformando em fogo ao tocar a espuma que reveste o local, 4) sonora de um bombeiro, apontando para o fogo e explicando sobre ele; 5) off do repórter coberto por imagens do fogo e de um especialista; 6) sonora do especialista apresentando opções de revestimento que teriam impedido a ocorrência de um incêndio; 7) sonora do repórter junto a uma maquete virtual, que representa a Boate Kiss; 8) off do repórter falando sobre o vice-presidente do Conselho Regional de Engenharia do Rio de Janeiro, coberto por imagens do vice-presidente em frente a um computador e imagens da boate no dia do incêndio; 9) sonora de Jacques Sherique, do Conselho Regional de Engenharia; 10) off do repórter, coberto com mais imagens da Boate Kiss; 11) imagens criadas por computador sobre a estrutura da boate. A matéria é finalizada com uma 12) sonora de Jacques Sherique, do Conselho Regional de Engenharia.

O VT contém, no total, dois minutos e trinta e nove segundos. Desses, cinquenta e quatro segundos contam com a participação de simulações e elementos criados por computador. Ou seja, aproximadamente 33% do material é coberto com imagens simuladas sobre o incêndio em Santa Maria.

A maquete virtual, que aparece na parte 7 da reportagem, vai trocando de cor à medida que o repórter explica ela. Pontos como o palco, por exemplo, ficam vermelhos para representar onde ele ficava, já que foi o ponto inicial do início do incêndio. Essa maquete tem como função fazer uma espécie de mapeamento animado, que posiciona os locais dos acontecimentos no espaço.

Diferente do primeiro, o segundo link não traz vídeos. Ele é, essencialmente, uma matéria produzida para o jornalismo online. Trazendo como título “Ao entrar numa casa noturna, saiba como verificar se o local é seguro”, a matéria do portal G1 traz uma reunião de opiniões e dicas de especialistas para garantir a segurança de frequentadores de boates e casas noturnas. Além das informações, a matéria traz imagens de sinalizações que devem estar presentes em locais públicos, como indicações de saídas de emergência, por exemplo. Há, também, uma galeria de fotos para que o leitor entenda como ocorreu o caso do incêndio na boate Kiss. Mas, para esse trabalho, utilizou-se como foco a parte final da matéria, que conta com a presença de um infográfico.

O infográfico usa muito pouco do que se esperaria em termos de possibilidades de recursos. Não há opções de vídeos, por exemplo. As ilustrações são estáticas. Esse exemplo de infográfico poderia ser o que Ribas (2006) chama de transposição do impresso, devido a imagem estática. Conforme as classificações de Nora Paul (2003), é um infográfico fechado, onde o leitor pode apenas consumir a informação disponível em forma de texto. A vantagem desse infográfico online é a quantidade de informação que ele pode conter em um pequeno espaço.

Conclusão

Ao analisar esses dois materiais, pertencentes a um grupo de jornalismo que é referência tanto de conteúdo como de estética, percebe-se que o cuidado com as imagens simuladas e a presença delas dentro do ambiente informativo potencializa o ato comunicativo.

Visualizar os fatos através de simulações ou desenhos que remetem aos acontecimentos trazem uma adição dos sentidos. A presença de imagens simuladas é diferente da ação ficcional. A diferença de dá principalmente devido ao contexto em que ocorre. O contexto jornalístico tem por missão informar. Por isso, a combinação de texto e imagem contribui para a retenção da informação.

Conclui-se que, embora exista muito ainda há ser explorado, o jornalismo contemporâneo vai de encontro a uma corrente pós-modernista, em que o real vem se tornando mais real que o próprio real. Uma realidade expandida. Os editores e jornalistas da era digital reforçam a realidade através de diferentes camadas de sentido. E todos saem ganhando.

Referências

CABRAL, Águeda Miranda. “A edição não linear digital e a construção da notícia no telejornalismo contemporâneo”. Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE: Recife-PE, 2008 (mímeo)

DALMONTE, Edson Fernando. “Efeito de real e jornalismo: imagem, técnica e processos de significação”. Revista Famecos, PUCRS, nº20. Porto Alegre, 2008.

DIONÍSIO, Ângela Paiva. 2006. “Gêneros multimodais e letramento”. In: KARWOSKI, Acir Mário et al. (Org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna.

FARRÉ, Marcela. El noticiero como mundo posible: estrategias ficccionales em información audiovisual. Buenos Aires: La Crujia Ediciones, 2004.

FLOCH, Jean-Marie. “Le changement de formule d’un quotidien approche d’une double exigence: la modernité du discours et la fidelité du lectorat”. Les Médias – Experiences, Recherches Actuelles, Applications. Paris, IREP, p. 231-247, juillet 1985.

LEITE, Andressa Cristina Pedras; SANTOS, Beatriz Silva Pereira dos; PEREIRA, Camila Gomes; NOGUEIRA, Jéssica Aparecida Oliveira; HUTTEMBERGUE, Lara Maria; LIMA, Mayara Silva Vaz de; HATAYAMA, Natália Mitie; ZANOTTI, Carlos Alberto. Incêndio na boate Kiss: tragédia, objetividade e análise de cobertura jornalística. XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Bauru – SP. 2013. Disponível em: < http://portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1081-1.pdf>. Acesso em: 14 set. 2013.

OLIVEIRA, Tamires De Lima De; BERWIG, Aldemir. Aspectos jurídico-administrativos do incidente na Boate Kiss em Santa Maria/RS. Salão do Conhecimento. Unijuí, 2013. Disponível em: < https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/salaoconhecimento/article/viewFile/2063/1723> Acesso em: 14 set. 2013.

PAUL, Nora. Behind the Message: Information Strategies for Communicators. Longman, 2003.

RIBAS, Beatriz. Infografia multimídia: um modelo narrativo para o webjornalismo. Congresso Iberoamericano de periodismo en internet. 2004. Disponível em: < http://www.periodistaseninternet.org/docto_congresos-anteriores/VcongresoBrasil/AIAPI%202004%20Beatriz%20Ribas.pdf> Acesso em: 14 set. 2013.

VIZEU, Alfredo Eurico Pereira Júnior. “Telejornalismo: cotidiano e lugar de segurança”. Revista Estudos em Jornalismo e mídia, Vol. 3, nº 1, Florianópolis: Posjor UFSC/ Insular, p. 103 -113, 1º semestre de 2006.

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Nicole Schmitt Dias é bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo – pela Universidade Feevale (2013). Acadêmica de Especialização em Jornalismo e Convergência de Mídias