Recebi o convite via Facebook e, ao abrir a página, deparei com uma das mais interessantes matérias já publicadas nesses primeiros dias de 2014: um especial sobre os 50 anos do golpe militar de 1964, produzido pela Folha de S.Paulo. Mais do que isso, a interessante obra gráfica é resultado do trabalho final de cinco rapazes e seis garotas que concluem a 56ª turma do curso de jornalismo diário, promovido pelo grupo. Realmente um excelente trabalho que vale a pena ser visto.
Mas, ao menos em mim, esta extensa reportagem marcou uma conclusão que há algum tempo vem se cimentando: o sonho tradicional do estudante de jornalismo, em grande parte, vai se enterrando e se tornando uma fonte de desilusão e arrependimento eternos. Os motivos para isso, todos nós cansamos de discutir aqui neste Observatório, mas a visão do estudante universitário ainda parece ser pouco relevante neste universo todo.
Digo que essa matéria me causou algum desconforto pois eu era um dos concorrentes diretos a uma das vagas desta concorrida prova, realizada duas vezes por ano no grupo Folha da Manhã. De quase quatro mil concorrentes, sobram pouco mais de trinta que, durante uma semana, ficam em São Paulo assistindo palestras de grandes nomes que trabalham para o jornal. Como cereja do bolo, ocorreu que esta semana caísse no final de junho, coincidindo com as gigantescas manifestações pela passagem na cidade. Um prato cheio para qualquer estudante de jornalismo.
O padrão de vida dos selecionados
Mas serviu para entender também o porquê de uma redação ser o que é – e do porquê a profissão do jornalista ter se elitizado sem demonstrar a glória de um bom serviço, em velocidade astronômica: não quero aqui discutir o processo de escolha dos trainees, ou mesmo a habilidade dos 11, nem mesmo considerar esse evento uma linha exclusiva da Folha, mas algo me intrigou desde o primeiro dia do processo: dos 11 selecionados, encontrei nove algum tempo depois. Ao menos quatro vêm da USP; o resto vem da UFSC, UFMG e da Cásper Líbero. Entre as fotos, viajamos por pelo menos dois continentes – todos já haviam viajado para o exterior antes e alguns também ganhariam viagens para a Inglaterra bancada pelo consulado local.
E o mesmo padrão é encontrado na turma anterior, cujo trabalho se intitula “Brasil: terra do futebol” e se encontra disponível no site da Folha: na biografia dos 12 selecionados (também disponível no portal), vemos que um em cada três é da USP; que três em quatro são de universidades públicas, e encontramos trechos como “Intercâmbio na Sorbonne”, “intercâmbio na Argentina” e “tirando alguns meses que morou em Paris” (não confundir com a primeira).
Não conheço a história de vida de todos os mais de trezentos jornalistas e colunistas da Folha, muito menos do Agora (o “irmão pobre” do jornal), do Estadão e outros meios paulistanos. Mas o padrão tende pelo mesmo caminho, assim como nos meios de televisão e alguns de internet. Levei todos esses dados em consideração durante essa semana de provas, aliado ao meu próprio status: ainda no quarto semestre como bolsista de uma faculdade paga de pequeno porte; morador do subúrbio paulista e que conhecia Paris, Nova York e Londres pelos cartões-postais (e pelas imagens do Google). Talvez a redação de um grande jornal não fosse feita para pessoas assim.
“Novos modelos”
Talvez a redação de um grande jornal não seja para pessoas assim que hoje lotam salas de aula de dezenas de faculdades particulares, independentemente do potencial ali escondido. (Volto a afirmar: há aqui não um “coitadismo” de minha parte, apenas relato aqui experiências, entre alguns colegas e comigo mesmo – no ano de 2013). Com alguns destes divido a alma mater: a Fapcom, na zona sul de São Paulo. Em sua maioria, os estudantes de lá são bolsistas, provenientes das zonas periféricas que buscam no centro o estudo. Os cursos são amplamente reconhecidos pelo MEC (que considera o de jornalismo “o melhor da capital”, por exemplo) e pelo corpo docente, que vê na alta quantidade de teorias na qual os alunos são expostos um diferencial perante quase todas as outras faculdades.
Todos ali, ao menos no primeiro semestre, tinham os mesmos sonhos: uma mesa para chamar de sua na Rede Globo, ou o seu próprio bloquinho de notas, cheio de telefones e endereços na contracapa, dados pelo Estadão ou pela Folha. De ficar até às três da manhã esperando sair a primeira edição do jornal e encher a mão de tinta, no papel-jornal sujo e ver, com resoluta alegria, a sua pequena nota publicada no rodapé.
Mas nada disso parece empolgar muito o RH destas empresas: nos oito anos de existência da instituição, poucos alunos obtiveram o real sucesso que sonharam nos primeiros anos; a fama de apresentar um jornal ou ver seu nome estampado no caderno de cultura de um grande jornal menos ainda (nenhum nome vem à cabeça). Não é difícil encontrar quem, durante a entrevista, sofreu alguma desvantagem perante alunos do Mackenzie, USP, PUC. O resultado é um balde de água fria nos planos de quem sonhava estar por detrás de um furo jornalístico na grande mídia: normalmente o destino é uma cadeira em alguma assessoria de imprensa ou jornal/blog de pequeno porte.
E, em detrimento da sede dos grandes veículos de comunicação por alunos de universidades públicas ou particulares tradicionais, esse processo se repete em inúmeras outras instituições, não apenas em São Paulo: com os programas de bolsa como o Prouni, o número de formados em comunicação aumentou exponencialmente durante os últimos anos. Não é surpresa que nem todos tenham sua mesa quadrada na Barão de Limeira ou em algum andar do Birmann 21. Porém essa preferência predadora joga pela janela a chance de um bom profissional, que domine técnicas de escritas e comunicação.
Não é de suspeitar que, segundo o relatório “Quem é o jornalista brasileiro”, publicado em 2013 pela Fenaj, 40% deles atuem com comunicação fora da mídia. E, quando parece que é nula a relação entre as coisas, não é de se surpreender também que grandes grupos de comunicação sofram em continuadas crises e culpem “novos modelos de mídia” pela sua agonia: o conteúdo veiculado por ela (e criado pelas mesmas cabeças e vindas dos mesmas catedrais do jornalismo) é obsoleto e uniformemente chato. Algo que, quem sabe, podia ser resolvido por uma pequena parcela desses 40%.
Conclusões
Ainda em 2013, durante uma palestra na Livraria Cultura, em São Paulo, Caco Barcellos explicou que mais de 10 mil alunos de jornalismo tentam uma vaga no Profissão Repórter, projeto gerido por ele na Rede Globo. Fui lembrar dessa fala, acompanhada por mim e por diversos estudantes do Mackenzie que faltaram à aula para vê-lo, estava assistindo o programa, cujo tema era “saída pro feriado”: em termos de telejornalismo, algumas edições discutíveis, pautas batidas (do tipo “vamos lá pra Imigrantes ver o que rola”) e uma atuação memorável de uma repórter que agora me falha o nome: ela avança a pé pela Marginal Pinheiros, chegando a poucos passos de um rapaz, acidentado e caído no asfalto, vítima de um encontro de moto e carro. Desce junto com a repórter o espírito dos grandes setoristas de futebol, e ela solta: “Desculpa estar chegando neste momento da sua vida… Mas você está bem?”
As minhas risadas com aquela entrevista surreal (amplificadas quando lembrei do discurso de Caco meses antes) eram cheias de desolação e, com alguma surpresa, continham uma perigosa dose de autocensura, o pior fruto que um jornalista pode desenvolver: afinal de contas, a que se vale o esforço que muitos alunos fazem para “romper a casca” das pequenas e médias faculdades e se tornar um grande profissional, sendo que seu lugar em qualquer lugar longe da produção de notícias está guardado? Você pode produzir quantas notícias você quiser, ou montar o seu próprio blog(que vem se mostrando uma solução temporária contra o tédio de muitos focas perdidos em outras áreas de trabalho) mas o seu negócio, garoto da Unip, vai ser escrever releases. Ou você, jovem da Uninove, que seria uma ótima pauteira para o jornal local, já que anda de trem como seus leitores, se prepare para entender SEO [search engine optimization].
“O jornalismo está em crise”. “O modelo de mídia está em seus dias finais”. “Passaralho é a palavra do ano para os jornalistas”. Essas frases são verdades incontestes na qual todo estudante aprende em seus anos esquentando a cadeira da sala de aula. Mas, como num inconsciente coletivo, se compreende também o aspecto desta batalha: talvez seja uma luta contra moinhos de vento.
Para quem aprende a considerar uma vaga de trainee em um grande jornal como questão de tempo, é bom que este modelo sobreviva. Mas uma massa cada vez maior de estagiários de assessoria, blogueiros fundo-de-quintal e renegados em vagas para repórter vem avançando, e esta é cada vez maior. Todos aprendem a conviver com a sensação de estar preso a uma ratoeira, engolidos pelo charme da profissão e agora presos a uma realidade tão diferente e crítica de si mesma que faz se parecer caricatura do próprio sonho dos primeiros semestres da faculdade. Talvez eles nunca saiam dali de baixo da ratoeira, mas, caso contrário, uma revolução deverá estar em seu parto no jornalismo brasileiro.
Azar de quem estiver de plantão na Folha este dia.
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Folha responde
A seleção para o Programa de Treinamento em Jornalismo Diário é pautada no mérito e valoriza a diversidade. Nosso objetivo é selecionar os candidatos que tragam boa formação, novas ideias e paixão pelo jornalismo à redação da Folha, independentemente da sua origem geográfica ou social e da faculdade que cursaram.
O processo de seleção é transparente. Nas duas primeiras etapas de seleção (prova online e prova presencial) os candidatos avançam com base no desempenho nos testes, ou seja, critérios objetivos. Na última etapa avaliamos o desempenho dos candidatos em entrevistas, textos e atividade em inglês. Ninguém é eliminado devido à universidade que cursa.
O nome dos selecionados em cada etapa é divulgado publicamente. Além disso, o jornal paga hotel, auxílio-alimentação e auxílio-transporte aos trainees durante os quatro meses do curso. O autor cita trainees que estudaram na USP e moraram no exterior; nas últimas turmas tivemos também trainees que fizeram ensino médio em escolas públicas, que moram na periferia de São Paulo e que nunca foram ao exterior. (Paula Leite, editora de Treinamento da Folha de S.Paulo, 03/02/2014)
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Guilherme Mendes é jornalista, Carapicuíba, SP