O conceito de arte
“A arte é uma experiência humana de conhecimento estético que transmite e expressa ideias e emoções.” Para se apreciar a arte é necessário aprender a analisar e criticar com opiniões fundamentadas nos diferentes gostos, estilos, materiais e modos de fazer arte. (AZEVEDO Júnior, 2007). Com base nisso, podemos entender que conhecimentos estético não se categoriza como padrão estético. E que cada produtor de arte terá a sua forma de realizar arte. Como bem nos provou em 1917 Marcel Duchamp com sua obra “Fonte” – Obra essa que se tratava de um mictório virado ao contrário assinado em seu nome – que fez parte de uma de suas exposições na intenção de desconstruir o conceito de arte burguês que se prendia à crença de que a arte tinha ligação estreita com o dom. E Júnior Azevedo reafirma isso dizendo que a arte é conhecimento e como tal é a forma do ser humano marcar sua presença criando objetos, formas, sons, etc. que representam sua vivência no mundo.
No livro didático Descobrindo a História da Arte, Graça Proença diz que o ser humano sempre procurou produzir arte proporcionando ao mundo a sua visão do ambiente em que vive, sua natureza etc. Proença, ainda, deixa claro que cada época na existência da Terra surgiu uma representação da deusa Vênus diferente, ou seja, cada época teve o esteriótipo de mulher atraente, gravado em obras, com base no ambiente que seus artistas viviam. Assim, já perdemos aqui um dos preconceitos que rondam o universo musical com o ritmo do Funk, ao percebermos que esse “(…)é uma experiência humana de conhecimento estético que transmite e expressa ideias e emoções” (AZEVEDO Júnior, 2007) e, portanto, é arte, em seus diversos nichos.
O artigo pretende desmistificar o funk como uma “sub-produção” artística e demonstrar que o preconceito apregoado ao funk surge fortemente embasado em características sociolinguísticas variacionistas à simplesmente sua própria produção artística. Assim, o objetivo dessa introdução é demonstrar que o ritmo musical funk de fato se encaixa plenamente na definição de arte para que no próximo tópico a sua compreensão seja mais esclarecida.
O preconceito linguístico e social
Falando-se do Funk quanto arte já nos norteamos a respeito dessa produção e, logo, o compreendemos como tal. Além de toda essa defesa com base na conceituação de arte, posso, embasado nos anos de formação superior em Letras – Português e Espanhol – defender a linguagem presente nas letras musicais desse ritmo. Fá-lo-ei com base nas variações linguísticas, as quais podemos enumerar como as mais comuns:
– A variação linguística regional – Em que os indivíduos de regiões diferentes pronunciam ou mesmo apregoam valor semântico a vocábulos comuns em todo o país de diferentes formas.
– A variação linguística etária – Em que os indivíduos de diferentes idades pronunciam ou mesmo apregoam valor semântico a alguns vocábulos de diferentes formas.
– A variação linguística urbana – Em que os indivíduos de diferentes áreas urbanas (Tribos Urbanas) pronunciam ou mesmo apregoam valor semântico a alguns vocábulos de diferentes formas.
– Variação sócio-cultural – Em que indivíduos de classes sociais diferentes pronunciam ou mesmo apregoam valor semântico a alguns vocábulos de diferentes formas.
Para essa defesa, a variação linguística que mais nos compete é a variação sócio-cultural, em que os indivíduos de classes mais baixas pronunciam palavras e frases com termos fora da Gramática Normativa, ou seja, não se preocupam em fazer concordâncias nominais ou verbais, utilizam vocabulário raso e mantém como natural a utilização de palavras de baixo calão em seu cotidiano. Assim, como já podemos imaginar, quando nos deparamos com letras de funk que se contextualizam e são produzidas por moradores ou ex-moradores de áreas desfavorecidas, devemos respeitar a obra por dois motivos: Primeiro, porque é uma expressão artística e entendemos durante a introdução que uma expressão artística busca demonstrar o meio que o artista vive, logo, se esse é seu meio, não podemos cobrar outra expressão, senão essa. Segundo, porque a linguagem usada em suas letras musicais são carregadas de variações sócio-culurais, deixando claro que, talvez, o artista não teve oportunidade financeira para alcançar o nível da Variação Normativa, ou mesmo que criou vício de linguagem devido ao meio em que vive ou viveu.
A título de exemplo, por seu um atual sucesso nacional dentro do ritmo musical Funk, com alguns textos contextualizados em áreas desfavorecidas, falarei de uma das músicas de Valesca Popozuda produzida junto ao grupo de funk “Gaiola das Popozudas”. O título de sua música “Agora Virei Puta” pode causar certo constrangimento – esse constrangimento será esclarecido mais à frente quanto o seu motivo – e sua letra se torna amplamente injustiçada por puro preconceito linguístico. Leia abaixo um trecho da letra da música para que a explanação do assunto seja mais coerente:
“Só me dava porrada!
E partia pra farra!
Eu ficava sozinha esperando você
Eu gritava e chorava, que nem uma maluca
Valeu, muito obrigada!
Mas agora eu virei puta!
(…)
Eu lavava, passava…
Tu não dava valor.
Agora que eu virei puta
Você vem falar de amor.”
Acontece que a letra de “Agora Virei Puta” “(…) é uma experiência humana de conhecimento estético que transmite e expressa ideias e emoções.” (AZEVEDO Júnior, 2007), porém, está expressando uma vivência diferente da que se espera de uma classe média. Está usando fortemente a linguagem compartilhada pelas classes desfavorecidas, o que causa o preconceito, infelizmente, naturalmente.
O que acontece é que a letra está fazendo o que todo discurso faz, “(…) todo discurso desvela uma ou várias visões de mundo existentes numa formação social. O homem não escapa de suas coerções nem mesmo quando imagina outros mundos. Na ficção científica, por exemplo, em que o homem cria outros universos, revela os anseios, os temores, os desejos, as carências e os valores da sociedade em que vive” (FIORIN José Luiz, 2007). O que a autora de “Agora Virei Puta” quer nos demonstrar foi justamente o meio em que vive, desvelando suas vivências, que com o mínimo de interpretação textual conseguimos notar que se trata de uma mulher de classe inferior, subordinada ao marido, vítima de violência doméstica e que por fim resolveu transformar sua vida se tornando uma mulher independente e bem resolvida. Porém, o preconceito linguístico com a palavra “puta” e todo o vocabulário utilizado não deixou que muitos enxergassem a profundida literária desse eu-cancional.
Quem nos explica perfeitamente o possível constrangimento – já citado – com a palavra “puta” é outra vez Fiorin, quando diz que linguagem tem influência sobre o comportamento do homem. A sociedade transmite aos indivíduos – com a linguagem e graças a ela – certos estereótipos, que determinam certos comportamentos. Esses estereótipos entranham-se na consciência sendo considerados naturais (FIORIN José Luiz, 2007) É o que acontece com a palavra “negro”, por exemplo, em que carrega conotações ruins (O que de certo modo influencia à sutil permanência de um preconceito trazido ainda da Era Imperial.). Ou o que acontece com a palavra “vadia” que virou sinônimo de promiscua e carrega em seu signo conotações ruins, também. Mesmo que o dicionário Cegalla, de Domingos Paschoal, por exemplo, defina a palavra “vadia” como “desocupada”. Ao passo que temos o contrário nos exemplos de Fiorin, com as palavras “branco” e “esposa”, que carregam conotações de sentimentos bons na consciência. Com base no que foi dito, verificamos que a palavra “puta”, por trazer à consciência um sentimento ruim, torna-se um dos principais motivos pelo qual a obra de a “Gaiola das Popozudas” seja tão amplamente ignorada. Mas, obviamente, que podemos concluir que não é apenas pelo uso dessa palavra, e sim, também, pela variação linguística sócio-cultural presente em toda a letra, pelo discurso dessa letra musical desvelar um ambiente fortemente desprezado pela população de classes mais altas e pelo deficiente conceito de arte disseminado na sociedade.
Conclusão
Quando falamos de Leitura, é fundamental entender que podemos ler arte. Assim, um texto-canção, também, obviamente, passará por um processo de leitura. Logo, como apresentam Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias em Ler e Compreender, durante a leitura há ativação do conhecimento: É por essa razão que falamos de UM sentindo para o texto, não DO sentido, e justificamos essa posição, visto que, na atividade de leitura, ativamos: lugar social, vivências, relações com o outro, valores da comunidade, conhecimentos textuais (Paulino et al. 2001). Conclui-se, assim, que para que uma letra musical de Funk, ou de qualquer outro ritmo, comumente desconsiderado, ou, ainda, de qualquer obra literária, etc. tenha uma compreensão plena e cabível em sua proposta, o mais necessário é que o interlocutor busque compreender antes a contextualização social e cultural, os materiais entorno da criação, a proposta da criação e, como não poderia deixar de ser, a que tipo de variação linguística está ligada a produção da obra, para que o preconceito linguístico seja dirimido e não nos deixe perder manifestações artísticas em seus diversos nichos, as quais enriquecem a cultura da sociedade em que vivemos com a diversidade.
Bibliografia
Livros
FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. 8ª ed. São Paulo: Ática, 2007.
ELIAS, Vanda Maria; KOCH, Ingedore Villaça. Ler e Compreender. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 2010.
PROENÇA, Graça. Descobrindo A História da Arte. 1ª ed. São Paulo: Ática, 2005.
Artigos
FERREIRA, Irama Sonary de Oliveira; OLIVEIRA, Lívia Freire de. “Arte: Conceito, Origem e Função”.Universidade Federal Rural do Semi-Árido – UFERSA – Acedido em 19 de Março de 2014: http://www2.ufersa.edu.br/portal/view/uploads/setores/241/texto%205.pdf
Sites
LETRAS.MUS.COM. “Agora Virei Puta”. Gaiola das Popozudas – Acedido em 19 de março de 2014, em: http://letras.mus.br/gaiola-das-popozudas/1350205/
ERGON TURCI. A Fonte – Duchamp (Análise da Obra). Ergon Turci – Acedido em 19 de Março de 2014, em: http://egonturci.wordpress.com/2012/09/10/a-fonte/
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Hugo Dalmon é professor e escritor, Volta Redonda, RJ