Formulamos, no contexto de uma pesquisa junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), concluída em 2012 e intitulada “A ideia do pós-jornalismo”, a hipótese de que o jornalismo atingiu uma fase, a que denominamos de pós-jornalismo, que veio a se acumular (e não a elidir) a duas outras, a do protojornalismo e a do jornalismo (propriamente dito). As três fases convivem, hoje, lado a lado, por vezes na mesma edição de um jornal, revista, canal, internet… que pode incluir desde as informações mais fáticas aos conteúdos de fait-divers, às notas sensacionalistas e até ao grotesco. Cada uma dessas três eras do jornalismo tem, no entanto, as suas características bem delimitadas.
O protojornalismo corresponderia a uma idade do ouro do jornalismo, lavra sobre ganga bruta que resulta e ainda resulta em achados para o deleite das massas, sobretudo os contingentes de operários e imigrantes (nos Estados Unidos) que adentravam ao mundo do consumo, da leitura e do entretenimento. Foi a era do penny press, isto é, a yellow press, que tem início na década de 1830 e nunca se esgotou, haja vista a presença atual de tabloides por todas as capitais brasileiras, valendo-se da mesma receita, explorando os mesmos ingredientes básicos: violência, fofoca, erotismo, esportes e passatempos.
No Brasil de hoje, seguindo a mesma trilha, mas acrescentando notas e matérias de “serviço”, o sucesso de vendagem é detido pelo jornal Super Notícia, de Belo Horizonte, que bate em tiragem a Folha de S. Paulo, jornal outrora líder nacional por esse critério de classificação. A exploração do “jornalismo popular”, eufemismo para o que outrora se denominava de “jornalismo policial” (imprensa marrom) tem feito com que, lado a lado e sob o comando de um mesmo grupo econômico e tradicional, cheguem às bancas o “jornal de referência” e o seu irmão mais novo, ironicamente, com uma receita velha, mas renovada: a mesma fórmula que nos idos de 1830 punha em lados distintos os jornais de ideias político-partidárias e os jornais de centavos (penny press). [Penny, partícula da moeda inglesa. Penny press, imprensa de centavos. Os jornais do gênero custavam exatamente dois centavos de dólares.] Enquanto os primeiros contavam com o apoio ideológico e financeiro de instituições políticas, a ‘nova’ imprensa, a ‘amarela’ contava tão somente com a venda direta ao leitor, nos quiosques ou da mão estendida dos jornaleiros.
Ojornalismo propriamente dito corresponde mais a uma filosofia, mais a um corolário, mais a uma proposta afirmadora e legitimadora de princípios do que a uma etapa com início e desenvolvimento, mas nem por isto deixa de ser um paradigma, de validação do jornalismo como espaço público e como instituição garante da vitalidade de uma esfera pública provedora da livre circulação das informações, das ideias e das polêmicas. É quando o jornalismo se afirma como um campo, ao mesmo tempo profissional, industrial e institucional. É o jornalismo-quarto-poder-fiscal; é o jornalismo da trilogia objetividade-neutralidade-imparcialidade; é o jornalismo que procura ser reconhecido como “espelho da realidade”, “testemunha ocular dos fatos”, aquele que se dedica aos fatos (“aconteceu, virou manchete”), separando-os da opinião e da ficção, sem abdicar contudo de seu segredo mercadológico, qual seja, o trato para com os valores-notícia e, com eles, os chamados critérios de noticiabilidade (newsworthiness). É ainda o jornalismo como sinônimo de circulação de uma mercadoria chamada notícia, com fluxo por todo o mundo, a despeito das apropriações nacionais, regionais e locais, que variam de acordo com a intensidade dos interesses e emoções despertados. Com a globalização das telecomunicações e dos mercados, os ‘fatos’ e ‘relatos’ circulam em abundância e velocidade jamais vistos, mas sujeitos a maior ou menor grau de envolvimento por parte dos contextos (etos) receptores.
Já o pós-jornalismo consiste numa hipótese de trabalho, formulada face a indícios empíricos de que o jornalismo ‘atual’ passa por mudanças estruturais, tanto por questões de sobrevivência econômica e tecnológica, quanto por uma constante necessidade de legitimação social e política, que ultrapassa em muito a sua inserção no mundo das trocas mercadológicas. O jornalismo e os jornalistas não se limitam e não se contentam aos contextos da produção e da corporação. Arvoram-se à condição e ao dever de missionários. Em nenhum momento o jornalismo deixa de ser um negócio – como todos, à base da relação capital-trabalho –, mas não que seja um negócio qualquer, pois institucionaliza-se (e assim é reconhecido) como função cívica, libertária e emancipatória. Seja nas arenas corporativas, seja nas arenas políticas, patrões e empregados jornalísticos irão se identificar pelos seus vínculos sociais e institucionais, sendo o principal deles a proclamada relação biunívoca, constitutiva e interdependente entre imprensa e democracia. E nada mais imortal (de citação ainda lapidar) do que a máxima de Thomas Jefferson, de que é preferível uma nação com jornais, mas sem governo a uma nação com governo, mas sem jornais.
Em termos de ideário legitimador, o jornalismo ainda se constrói civicamente como a própria alma-mater (literalmente, a mãe que nutre) de uma ética discursiva em que, a todo momento, se avalia e questiona o que é o melhor para todos, o que é o bem comum. O jornalismo seria, então, mais que uma atividade técnica e econômica, seria o próprio coração do espaço público, nele exercendo uma centralidade dinâmica, centrípeta e centrífuga, ao prover, coletivamente, os elementos para os juízos formadores de uma opinião pública e de uma sociedade autorreflexiva e, consequentemente, autodeterminada.
Houve um tempo em que se acreditava que o simples provimento de notícias e reportagens era suficiente para que o jornalismo fosse reconhecido em seu papel institucional. Bastava a sacralização da liberdade de expressão e de imprensa como princípio para se ter em mente que sociedade livre, democrática e plural é sociedade com imprensa livre, democrática e plural. A correlação entre imprensa livre e democracia não deixou de existir, mas, o próprio jornalismo passou a cobrar de si mais do que um valor cívico e político, passou a querer incorporar algo mais aos fatos, e que não é nem a ficcionalização dos mesmos e nem o acréscimo de opinião aos mesmos. Esse algo mais se traduz em serviço. Já não basta ao jornalismo se contentar com a oferta de acontecimentos transformados em notas, notícias e reportagens. Já não são suficientes os fatos narrados em sua natureza jornalística primordial, a natureza acrescida de valor, o valor-notícia (news value). Nesse novo paradigma, é preciso ir além dos fatos, é preciso recobri-los de contexto, de utilidade pública, transformando-se a função noticiosa numa espécie de serviço público. E embora sendo muito mais uma atividade privada do que estatal, faz as vezes de um serviço público. E embora seja uma atividade de mercado, procura caracterizar-se como uma militância de terceiro setor, algo como: privado, porém público.
Atribuindo às três categorias palavras-chave delimitadoras e caracterizadoras, diríamos que ao protojornalismocorresponde o termo sensação; ao jornalismo corresponde o termo informação; e ao pós-jornalismo corresponde o termo comunicação. Essas três categorias, correspondentes a três epistemes do jornalismo, e, portanto, representativas de distintas marcas relativas a diferentes épocas (séculos XIX, XX e XXI) também poderiam servir para a orientação de análises de conteúdo com o objetivo de ponderar para que lado se inclina uma publicação jornalística, não havendo pois um “agenda” jornalística pura, completamente voltada para o sensacionalismo, ou para a informação exclusivamente factual, ou inteiramente dedicada a conteúdos de utilidade pública e serviços. Uma publicação jornalística, por mais que tenha ênfases editoriais (manifestas, ou não), sempre foi – e tudo indica que o será no futuro –, um carrefour de conteúdos híbridos. Tal hibridismo encontra explicação na própria diversidade que caracterizam os critérios de noticiabilidade (newsworthiness).
Trabalho e sobretrabalho jornalísticos
Reconhecer dentre os acontecimentos quais merecem ser objeto de seleção e de hierarquização é um saber difuso e heurístico, não sendo, portanto, um conhecimento científico (embora não pertença ao senso comum), mas uma cultura profissional que se acumula desde o século XVI, quando as primeiras gazetas já decidiam o que deveria ser publicado. Porém, séculos de prática não resultaram – e certamente isto nunca virá a acontecer –, no estabelecimento de regras fixas para o exercício do julgamento do que é notícia (news judgement). É até muito comum que os mesmos fatos coincidam na escolha e no destaque, por parte dos editores, do que será manchete nos telejornais, jornais, revistas e webjornalismo, mas isso não acontece da mesma forma como os médicos sabem (por formação e catálogos) que determinados fármacos são universalmente válidos em se tratando, por exemplo, do combate aos resfriados ou aos problemas de pressão, baixa e alta.
Numerosos são os fatores que entre em jogo na composição dos chamados valores-notícia (news values) e, portanto, no reconhecimento do que é importante e interessante do ponto de vista midiático. Caprichosamente, nem tudo que é importante é interessante sob a ótica dos selecionadores de notícias (gatekeepers). E, mais caprichosamente ainda, nem tudo que é interessante do ponto de vista midiático tem alguma importância social, econômica, cultural, histórica e política. Por vezes, o espaço midiático irá se render aos encantos não propriamente de fatos, mas de metafatos [Metafato: categoria a que se refere o professor Adriano Duarte Rodrigues, no texto “O acontecimento”, que abre o livro organizado pelo seu colega na Universidade Nova de Lisboa, Nelson Traquina: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa, Vega, 1993], ou seja, aqueles fatos com alto grau de singularidade ou por despertarem, por si e quando do seu acontecimento, um desempenho performático. Em 2011, a imprensa deu destaque a um círculo que apareceu em redor do Sol, embora se tratasse de um fenômeno explicável e inofensivo. Foi algo com certeza curioso e interessante, mas que em nada afetou a vida de ninguém, o que demonstra, de forma convincente, que na cultura profissional jornalística nem tudo que tem valor de troca temvalor de uso e que nem tudo que tem valor de uso vale alguma coisa no mundo das trocas simbólicas. Ou seja, também a mercadoria notícia pode, eventualmente, estar impregnada de fetiche. Aliás, corriqueiramente é o fetiche com o seu valor de troca inflacionado e pouco ou nada de valor de uso que assegura o ‘faturamento’ do jornalismo em termos de audiência, haja vista a constante busca por parte dos repórteres daquele ‘algo mais’ em matéria de emoção e impacto.
Portanto, parte do trabalho do jornalista consiste em estar constantemente à procura do extraordinário. É a típica atividade que não é favorecida pela rotina. E isto, por si só, representa uma mais-valia extra, um sobretrabalho, o plus de estar muito mais atento aos fatores imprevisíveis e às acidentalidades do que a se contentar com a “rotina produtiva” de organizador e empacotador de fatos (news assembler). [News promoters, news assemblerse news consumerssão categorias de atores que se envolvem no processo de produção da notícia (newsmaking).] Mas nem só de singularidades vive a notícia e o noticiador. E, ao final de sua jornada, descobre o jornalista que para além do jornalismo-espetáculo ele tem igualmente de produzir algo de útil e de prestação de serviço. Descobre-se, assim, no desempenho de uma segunda mais-valia, na verdade, uma terceira performance: a primeira, como news assembler do que está rotineiramente na pauta (os fatos previsíveis e sob controle); a segunda, como profissional especializado em ‘farejar’ o que a realidade tem a apresentar ‘hoje’ de diferente, de sensacional; e, a terceira, agregar valor de uso às informações que presta: ao cidadão, ao consumidor, à comunidade, à sociedade, à democracia e, enfim, à Humanidade. Sobra para o trabalhador-jornalista o compromisso missionário assumido pelo jornalismo de se desempenhar perante a vida cívica e democrática um papel institucional, aquele da imprensa-instituição, sem a qual uma democracia e uma sociedade justa irão claudicar.
No seu dia a dia, o jornalista já se encontra numa condição de Sísifo, personagem da mitologia grega, cujo pathos é rolar pedra montanha acima, para, logo a seguir, recomeçar tudo de novo. Manchete publicada, novidade velha. News, news, news, incessantemente news, eis o pathos jornalístico, a novidade com a pedra a ser rolada para o alto, e com duplo valor: o primeiro valor, o do próprio labor primário e respectivo suor. O segundo valor, de produzir algo que não seja apenas interessante, mas que seja também importante. Se o jornalismo e o jornalista devem ou não ter um compromisso para com os problemas da ‘comunidade’ é combustível para polêmica antiga.
Data de 1920 o famoso embate Lippmann-Dewey [Walter Lippman (1889-1974) e John Dewey (1859-1952). Para maiores detalhes, uma boa referência está em SCHUDSON, MICHAEL . The “Lippmann-Dewey Debate” and the Invention of Walter Lippmann as an Anti-Democrat 1986-1996”. Em: International Journal of Communication 2 (2008), 1-20. Disponível aqui], o primeiro, a vislumbrar os mass media facilitando um “governo das elites” e, o segundo, a só reconhecer uma autenticidade dos mass media estando os mesmos a serviço da ‘comunidade’ na busca perene de soluções para os seus problemas. Resulta deste segundo posicionamento a formulação da proposta do civic journalism ou public journalism, cujos desdobramentos têm sido expressos com muita frequência pelos veículos de comunicação, sempre que têm uma oportunidade de dizer ao público a que vieram.
Oportuno rememorar o célebre editorial de primeira página do Correio Braziliense, que ao ser desafiado com a indagação Para que serve um jornal? [Texto publicado na capa do Correio Braziliense, em 17/7/1999. Entre outras, encontra-se nele a máxima segundo a qual “Um jornal serve como serviço público que é a definição mais básica de imprensa como instituição!”], respondeu de pronto e repetidas vezes, como num mantra, que “um jornal serve para servir”. Um jornal, ideologicamente, é, antes de tudo, um serviço, um serviço ao público (e, por extensão, um serviço civil: ao cidadão, à comunidade, à sociedade e à vida democrática).
Da informação para a comunicação
Uma explicação para as três fases do jornalismo que estamos adotando como hipótese pode ser encontrada tanto sob a égide de Thomas Kuhn [Cf. KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2003], ao se valer do conceito de paradigma (emergente, ascendente e decadente), como em Michel Foucault, ao se valer do conceito de episteme [FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009], situada igualmente entre o nascimento de uma onda discursiva, que também sobe ao topo e da mesma forma encontra o declínio, à medida que uma outra tendência entra em ação. Podemos identificar as três fases referidas do jornalismo tanto como três paradigmas, quanto como três epistemes. No entanto, no caso do jornalismo intervém uma particularidade: as epistemes, embora demarcadas, não são excludentes. E os paradigmas em declínio não desaparecem, mas ressurgem. O resultado é uma convivência de paradigmas, pois o fenômeno da penny press (ou yellow press) reencontra sua vitalidade em pleno século XXI; o jornalismo informativo se mantém como prática corrente e ainda robusta; ao passo que o jornalismo de serviço também encontra o seu lugar, por vezes, dentro das próprias organizações que ‘industrializam’ as outras duas formas.
Vejamos alguns exemplos de como um ‘acontecimento’ midiático (portanto, impregnado de valores-notícia) pode gerar diferentes tratamentos, de acordo com as três epistemes referidas. Um fato bastante coberto pela mídia em geral, a violência nas escolas. Tal fenômeno tanto pode receber um tratamento de impacto (na conotação de sensacionalismo) na imprensa de centavos (penny press); como poderá ser noticiado e bem contextualizado pelo ‘jornalismo de referência’; como poderá receber objeto de uma ‘campanha’ jornalística, composta de uma série de matérias ou até de alguma edição especial voltada para o tema, o problema e as possíveis soluções. Ou seja, a violência nas escolas deixa de ser fato jornalístico isolado para se transformar em mobilização social, envolvendo os mais variados atores (do problema e das soluções). Nesse caso, os impactos esperados vão muito mais além dos aspectos dramáticos explorados pelo “jornalismo popular”, com também ultrapassam a efemeridade que usualmente caracterizam a sucessão de fatos, em que, por exemplo, uma onda de acidentes de trânsito venha subsumir as notícias e reportagens sobre violência nas escolas.
Um dos problemas do jornalismo de ‘informação’ é o envelhecimento precoce dos temas, dada o seu rápido esgotamento enquanto fato ‘novo’. Na realidade, novo apenas como circunstância, ou, como “gancho”, como se diz na gíria das redações. No presente, e, portanto, da vigência do paradigma do jornalismo de “comunicação”, dificilmente uma enxurrada de episódios de agressão entre jovens escolares será ‘coberta’ apenas no caso a caso. O mais esperado é que o veículo de comunicação, face ao seu vínculo social (para com o cidadão e com a cidadania), assuma uma vita activa (Hannah Arendt) perante tal contexto de violência, atuando como ‘parceiro’ social na busca de um novo patamar de cultura de paz, ou até mesmo assuma a liderança da mobilização, como o fez o Correio Braziliense, quando da ‘campanha do trânsito` em Brasília, que resultou na institucionalização da faixa de pedestres em todo o Distrito Federal e na difusão de uma série de condutas de Paz no Trânsito, como o “sinal de vida”, hoje assimilado, reconhecido e respeitado por todos (a não ser por eventuais e isoladas transgressões).
Esse mesmo percurso – da informação à comunicação –, pode ser reconhecido em se tratando de outros dramas do cidadão e da sociedade, como o foi em relação à violência doméstica, cuja mobilização resultou na “Lei Maria da Penha”. Mais recentemente, imprensa, legislativo, autoridades e movimentos sociais conseguiram em tempo recorde mudanças na lei penal brasileira, de modo a enquadrar os crimes cibernéticos, resultando na “Lei Carolina Dieckmann”, assim denominada por ter a atriz tido o seu computador invadido e pirateado. A reação da polícia, da imprensa e da ‘comunidade’ foi mais além da punição dos criminosos. Um mesmo crime – de invasão de computador e de publicação de fotos íntimas –, tem, agora, uma tipificação atualizada, e não com base em dispositivos anteriores a existência do computador pessoal. Os mesmos delinquentes do caso Dieckmann seriam, hoje, apenados de forma mais grave. Esse caso é bastante demonstrativo do quanto já não é tão frustrante ler jornais. As notícias podem ter consequências sociais, ultrapassando, assim, o seu caráter primário, o mercadológico, para se inserir num contexto de ética discursiva: tanto no que se refere ao discurso prático (do reconhecimento moral do que a todos agride nos costumes), quanto ao discurso teórico (da mudança de valores em torno das próprias normas).
Uma possível conclusão teórica em torno das hipóteses expressas neste artigo recai sobre a revisão do próprio conceito de mais valia e de expropriação dos excedentes da jornada de trabalho. Marx denunciou a condição da dupla jornada de trabalho do operário, a qual denominou de sobretrabalho: num primeiro momento, o trabalhador trabalhar para obter o suficiente para o seu sustento; num segundo momento, trabalha para que o empregador amortize os seus investimentos e ainda acrescente um percentual de lucro. O trabalhador-jornalista estaria nessa mesma condição de expropriado, se a expropriação se desse tão somente pelo seu patrão, ou seja, uma expropriação de caráter privado. A hipótese principal desta reflexão, no entanto, é a de que em se tratando de um trabalho com vínculo social (como o é o trabalho do jornalista), a expropriação já não é somente privada (por parte do capital) e reprodutora dos “fatores de relações de troca”, mas também coletiva. Ora, se há expropriação com dividendos para o coletivo é de se supor que o trabalho jornalístico cumpre uma parte de emancipação social e, portanto, ainda mais dignificadora. Para Marx, só o trabalho gera valor. No caso do jornalista, o seu trabalho decorre do que socialmente é reconhecido como valor (o valor-notícia), mas esse valor primário é reconduzido a um patamar cívico, de valor de troca, cuja nobreza não é simples fetiche da mercadoria, mas um valor-agregado-à-notícia e às suas consequências. Nesse caso, a informação serviu de insumo para a comunicação. E o que antes destinava-se a primariamente a consumo passou a se destinar prioritariamente à cidadania.
Segundo Marx, somente o trabalho produz valor. Esse valor, no entanto, passa a adquirir uma transcendência à medida que deixa de ser uma simples forma concreta de valor, para representar uma contribuição humana à história. A nossa hipótese é a de que o trabalho do jornalista (sem, aqui, o compararmos ao de outras categorias profissionais, tão nobres quanto) adquire foros de uma terceira camada de sobretrabalho, por força do que se tornou um ideal permanente do jornalista: já não se contentar com a produção da notícia como simples mercadoria, redobrando esforços para que ela venha a se transformar num produto social, de apropriação coletiva, que já não poderá ser encarado nem como mera forma-valor, nem como mero trabalho abstrato.
Entre os autores clássicos que se ocuparam do duplo caráter do trabalho – Ricardo, Smith e Marx –, o autor de O capital distinguiu-se por reconhecer no trabalho humano o caráter histórico de ação transformadora do mundo (práxis). O que pretendemos, no entanto, é advogar em favor do trabalho jornalístico o reconhecimento de que, para além do caráter humano e histórico de sua produção, ele se insere num contexto público, dialético e de ética discursiva ao mesmo tempo, ao fornecer para a própria esfera pública os elementos para que o cidadão possa autoconstruir-se na sua cidadania e contribuir para a construção de uma sociedade autorreflexiva.
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Luiz Martins da Silva é professor-associado da Universidade de Brasília – Faculdade de Comunicação, Departamento de Jornalismo –, atuando no ensino (graduação e pós-graduação), na pesquisa (Linha de Pesquisa “Imprensa e sociedade”) e na extensão (Coordena o projeto “SOS-Imprensa”). Pesquisador do CNPq (Bola-Produtividade) – pesquisa em curso: “O ensino de ética na comunicação”