Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O teatro dos discursos políticos

O equilíbrio que a Gazeta de Notícias manteve sob o fio da espada nos dias de início da República, entre a aclamação aduladora e a denúncia de ilegitimidade, permitiu-lhe expressar, não sem riscos, avaliações e reflexões críticas sobre o novo regime, em especial sobre o Congresso Constituinte de 1890/91. É no contexto desse jornalismo que se encontram, de forma recorrente, as comparações da retórica política com o teatro. O que levaria vários contemporâneos a associar o teatro com a política foram os sentidos do político e do teatral que circulavam historicamente naquele tempo: o teatro no Brasil do final do 19 sucita, mais do que uma simples metáfora, a instauração da distância entre espectador e atores correspondente àquela entre público e oradores; indica a faceta espetacular da política; remete à identidade do público do teatro com o público da política; e abre espaço, cria a possibilidade, a partir de uma tradição consolidada de crítica teatral, de a política receber as críticas da verossimilhança, da qualidade dos atores, do cenário, da estrutura da trama e da linguagem em todos os seus níveis (diálogos, empostação, vocabulário, expressão etc.). A política nacional no final do 19 se dava na experiência, no acontecimento da retórica parlamentar, assim como o teatro se realizava no ato de encenação.

Machado de Assis foi um desses jornalistas que uniu o exercício de observação e de elaboração de crônicas políticas aos conhecimentos da área teatral. Ele apresenta nas crônicas um constante intercâmbio de perspectivas dos gêneros teatral e político. Para tratar da situação do teatro brasileiro em 1859, compara-o ao oficialismo das comunicações públicas:

“Não sendo, pois, a arte um culto, a ideia desapareceu do teatro e ele reduziu-se ao simples foro de uma secretaria de Estado. Desceu para lá o oficial com todos os seus atavios: a pêndula marcou a hora do trabalho, e o talento prendeu-se no monótono emprego de copiar as formas comuns, cediças e fatigantes de um aviso sobre a regularidade da limpeza pública.

Ora, a espontaneidade pára onde o oficial começa” [publicado em 9 e 23 de abril de 1858 em A Marmota.ASSIS, Machado. Obras Completas, v. III, p. 790]

Essa crítica aproxima dois públicos: aquele que frequentava os banheiros municipais e o que ia aos teatros. No banheiro a comunicação banal, cotidiana, “sem graça”; no teatro, o mesmo. Esperava-se para o teatro o oposto disso. Do ponto de vista daqueles que desempenharam uma crítica realista-naturalista, o caso de Machado, o teatro representaria um poderoso instrumento de pedagogia cívica, uma ruptura com olhar corriqueiro sobre as coisas. Para os teatrólogos e produtores de revistas do ano, mágicas e musicais se tornava necessário construir atrativos para a população, alternativas ao comum, cediço e fatigante dia a dia.

Coros irrepreensíveis

E o teatro brasileiro seguiu esses dois caminhos: uma experiência realista muito curta – alguns anos em torno de 1860 –, mas marcante, que implicou uma reorientação na escola de atores, pautando-se pela espotaneidade das interpretações e o tratamento de temas sociais; outra experiência, a exitosa, do teatro espetaculoso, de luzes, músicas, figurinos fantásticos e intervenções mágicas.

O teatro nacional da época em que ocorreu o Congresso Constituinte de 1891/91 compunha-se de comédias, paródias de operetas, revistas do ano, mágicas e danças – pautado fortemente no seu caráter espetacular. As qualificações depreciativas do Congresso Constituinte derivadas de associações com o teatro, como veremos a seguir, devem ser compreendidas nesse contexto. Em 2 de novembro de 1890, lê-se na coluna Crônica da Semana daGazeta de Notícias o seguinte:

“O próximo Congresso há de e deve exercer tranquilamente as suas funções… Reina a doce convicção de que o Congresso não pretenderá depassar os limites que lhe estão traçados, como simples representantes de uma fantasia abstrata, criada no puro e inocente intuito de distrair e alegrar por algum tempo as populações da União. […] ao ilustre areópago cabe unicamente executar obra de encomenda, e papel de medíocre importância teatral” (grifo nosso).

O manifesto sentido farsístico que decorre da comparação da política com o teatro está longe de esgotar a variedade de significados que se poderiam remeter à época. Esse sentido forte da encenação teatral, de duplicação da realidade, de representação e falsificação cabe muito bem ao papel dos discursos e debates políticos no Brasil dos primeiros anos após a abolição. Diante dos olhos e ouvidos da plateia, os atores políticos encarnavam os sentimentos públicos, representavam interesses do povo e da Nação, mas nesse mesmo ato, ocultavam por trás dos bastidores algo de fundamental: os interesses privados e os compromissos de cada um dos atores.

Dessa aproximação da política com o teatro, a ironia de Machado de Assis pôde recolher uma apresentação “mais elaborada” do teatro da política no segundo Império, em 16 de setembro de 1888, dois anos antes do Congresso Constituinte:

“Venho de um espetáculolongo, em parte interessante, em parte aborrecido, organizado em benefício do incidente Manso.

Começou por uma comédia de Musset: Il faut qu’une porte soit ouverte ou fermée. […] No dia seguinte, tivemos um drama extenso e complicado, […] Boa composição, lances novos, cenas de efeito, diálogos bem travados. Um dos papéis, escritos em português e latim, produziu enorme sensação pelo inesperado. […] Os monólogos, os diálogos, que eram vivíssimos, e os coros foram, se assim se pode dizer de obra humana, irrepreensíveis” [ASSIS, Machado. Bons Dias, p.116-119].

Elementos indispensáveis para o espetáculo

As críticas que lemos não recaem sobre o efeito de os discursos serem um desdobramento da realidade, o que parecia estar certo, mas sobre a qualidade da representação. Tomando por alvo o Congresso Nacional, a pecha de fantasia abstrata com a intenção de alegrar o público foi amplamente difundida. A denúncia de uma mera fantasia repete, em relação ao parlamento, a crítica da falta do efeito de verossimilhança na representação política. A atração teatral oferecida pelos partidos e políticos nos eventos do parlamento não dispunha de tal efeito. Trata-se do teatral de “exibições toscas e balofas”, o desempenho dos papéis se daria de forma grosseira, sem polimento, as sequências desconectadas de razões plausíveis, a linguagem extravagante, produzindo a sensação de que a “aparência excedeu a realidade”. São esses alguns adjetivos usados na coluna, que não está assinada, Crônica da Semana, transcrita a seguir:

“O Congresso está disposto a discutir. Discutir não é um fim, é um meio, meio inútil, demonstrado por fatos anteriores.

[…] Toda a discussão do projeto de Constituição, salvo um ou outro caso, não tem tido o menor valor. Cada representante julga-se obrigado a fazer a sua profissão de fé, apresentando ideias que podem ser muito boas, mas que não têm oportunidade.

Não temos a pretenção de falar, nem de pensar em nome da nação. Mas o que nos parece é que os Srs. representantes satisfariam muito mais os seus eleitores se se deixassem de palavras, e fossem direto aos fatos […]

Um congresso constituinte não é uma academia, e muito menos o palco para exibições toscas e balofas” [Gazeta de Notícias, em 27 de dezembro, coluna Crônica da Semana, p.1](grifo nosso).

A crítica realista, que o naturalismo no teatro resgatava no final da década de 80, que se pautava pela espontaneidade, servia também para a reflexão sobre a retórica parlamentar. Senão, vejamos, com a ironia característica do cronismo da época, o mais um trecho da coluna semanal Crônica da Semana:

[O cronista convida a Musa para dirigir-se ao Congresso Constituinte, ao que ela interroga:] Mas para onde vamos nós, Sr. Cronista: e que tendes vós, que tão retórico amanhecestes hoje?

– Para onde… Para onde, inquires, como se permitido fosse a alguém ignorar porque se desloca hoje a população de Sebastianópolis, toda ela convidada para a festa do progresso, iniciada pela bela e risonha Pauliceia? Para onde?

– Embora os anúncios dissessem ao povo que era conveniente ir buscar os bilhetes ao Club de Engenharia […]

– […] Vamos apressa-te. Põe dentro da mala, ao lado da caixinha dos adjetivos mimosos, vibrantes, os conceitos justos, arrazoados, profundos de filosofia e de saber. Acondiciona ao cantinho uns paradoxos adoráveis…[…] Bem acolchoados, em outro ângulo da maleta, alguns tropos da linguagem; devaneios poéticos – estes envolvidos em macia pasta de algodão; e aqui e ali, por entre frases de humour por toda parte esparsas, disparadas após o traço precursor da graça (este : –), uma série de imagens, felizes, novíssimas, naturalistas agora, além arrojadas, sempre espontâneas, jamais rebuscadas

– E, francamente, onde encontrar tudo isso, assim repentinamente preparado, todo esse dilúvio de imagens, de figuras, de adjetivos, de tropos, de facécias ligeiras e profundos conceitos? Ainda se fosse possível uma olhadela ao Larousse…

[…] Apertam-se, confundem-se os convidados, ohs exclamativos, interjeições diversas, pontuam os encontros dos conhecidos e dos amigos.

[…] Onde esses elementos indispensáveis para o espetáculo que vai ser brilhante, para o baile que será esplêndido, consoante aos programas e a expectativa? [Gazeta de Notícias, em 27 de outubro, coluna Crônica da Semana, p.1] (grifos nossos).

“Um povo em ebulição”

Esses trechos expressam a atribuição consciente das críticas ao teatro-espetáculo à retórica parlamentar: a retórica parlamentar assemelha-se ao teatro-espetáculo e portanto lhe cabem também as críticas acometidas contra tal gênero teatral.

A crítica ao teatro como falseador da realidade reabilita, em 1890, o embate que se travou em meados da década de 50 de um teatro realista insurgente, comprometido com uma pedagogia moral da sociedade, contra o teatro romântico vigente. Independentemente de relativizações da decalagem histórica, o que afinal representou os anos 1850 para a geração de 1880, devemos considerar que muitos personagens dessa problematização da verossimilhança teatral serão os mesmos a formular as análises políticas. [Essa união entre política e teatro está explicita em Machado de Assis. Ferreira de Araújo, o editor da Gazeta de Notícias, também incursionara no teatro: “No dia 28 de abril de 1881, no Teatro São Luís, estreou o drama de Busnach e Gastineau, traduzido pelo jornalista Ferreira de Araújo.” FARIA, João Roberto de. Ideias Teatrais – o Séc. XIX no Brasil,p. 199. E não podemos esquecer que o próprio Arthur de Azevedo e Olavo Bilac eram colunistas da Gazeta de Notícias]

Em Notícia da Atual Literatura Brasileira, de 1873, Machado de Assis escreve sobre o teatro:

Hoje, que o gosto público tocou o último grau de decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores? [ASSIS, Machado. Obras Completas, p.808]

A postura ideológica dos críticos realistas, que se transfere para a política, refletia uma modificação na escola de atores: o teatro romântico, encenado no Teatro São Pedro e liderado por João Caetano, possuía uma expressão caricatural dos personagens, naquilo que diz respeito à elocução e a gestuália. O Teatro do Ginásio, fazendo eco a críticas de diversos intelectuais, pôde, tendo por parâmetro Dumas Filho e Victor Hugo, com o ator Furtado Coelho, durante uma década exercer a antítese, primando pela naturalidade, contra as extravagâncias interpretativas, grandiloquências da linguagem e contorções corporais. Contudo, o teatro realista no Brasil teve sucesso por pouco tempo, cedendo espaço ao teatro de entretenimento com as paródias de operetas e espetáculos mágicos, recheados de estímulos visuais e musicais, como o cancã.

No ano mesmo de 1890, aos doze dias de janeiro, Raul Pompeia escreveria para o Jornal do Comércio:

“Mas o que interessaria ao viajante, de estada aqui, para espiar um povo que vem da mais completa viravolta da sua existência, era a afluência em cacho, o entusiasmo esquecido e feliz da população que enchia o teatro. Vinha ver o que é um povo em ebulição, depois de alguns dias de suprema febre política; deparava-se-lhe, em vez de um comício palpitante de cidadãos, almas e votos turbilhoando em vertigem de intriga, ao redor da urna do sufrágio miúdo, donde deve sair a constituição da futura nacionalidade – uma plateia absorta, na suprema ansiedade de verificar que nova surpresa vai produzir, ali na cena, a cauda prodigiosa de um gato de mágica.

Durante alguns dias de novembro, a população desertou dos teatros, como a significar que a alegria popular vem da confiança na ordem. O alarma passou logo e os teatros todos animam-se, com um entusiasmo de renovamento, e a alegria dos que se divertem na tranquilidade, desdobra-se no Variedades com o Gato Preto, para os Cavaleiros Andantes do Santana, e daí para os Filhos do Capitão Grant do Recreio.

Bom senso e confiança é o sentido de tudo isso.

Como nota de viagem através de um povo revolucionado, esta observação não renderia muito aos cronistas viajantes que nos visitam, como recomendação do critério público, não negar que vale alguma coisa” [FARIA, João Roberto de. Ideias Teatrais – o Séc. XIX no Brasil,p. 597-598] (grifo nosso).

Um povo receptivo ao teatro-espetáculo e distanciado da participação na vida política ou um povo que esperava para a política a distração espetacular encontrada no teatro? Essa última alternativa apresentaria o lugar da retórica no contexto do Brasil pós Proclamação. Explica toda a atenção ao caráter cenográfico do Congresso Constituinte, como veremos adiante, de preparação e ornamentação. A atenção está dirigida para as novas surpresas que se vão produzir no púlpito, mesmo que isso seja um escarrar:

Pessoas que têm ido flanar ali assim pelo palácio onde se reúne o Congresso Nacional, na esperança de apanharem um belo rasgo oratório do Dr. Assis Brasil, ou um aparte entusiástico do Sr. Alminio, referem que têm ficado extremamente surpreendidas ao verem que os Srs. Congressistas dão-se ao luxo de cuspir nos tapetes e sobre os mesmos atirarem as pontas de cigarros e charutos que fumaram. Para quem não está habituado a isto o incidente é efetivamente curioso […] pois evidentemente não pode haver um discurso que produza efeito sem que comece por um pigarro bem puxado, que limpe a garganta do orador e traga cá para fora, com a cusparada do estilo – uma bela tirada retórica de arrancar aplausos [Gazeta de Notícias, em 22 de dezembro, coluna Coisas do dia, p. 1].

As expectativas do público pelo surpreendente, espetacular, curioso em relação à retórica parlamentar e ao teatro estão associados ao ambiente urbano da capital federal. O Rio de Janeiro do final do séc. 19 segue o caminho que atravessaram as metrópoles:

A modernidade transformou a estrutura não apenas da experiência diária fortuita, mas também da experiência programada, orquestrada. À medida que o ambiente urbano ficava cada vez mais intenso, o mesmo ocorria com as sensações dos entretenimentos comerciais. Perto da virada do século, uma grande quantidade de diversões aumentou muito a ênfase dada ao espetáculo, ao sensacionalismo e à surpresa [SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular, p.133].

Foi a crítica teatral o espaço privilegiado para as reflexões sobre essa mudança de ênfase e expectativas. Antes de João do Rio e Gilberto Amado, os primeiros a elaborarem avaliações mais sociológicas sobre esse processo de aceleração da vida que implicava o ambiente urbano e todos os seus desdobramentos com relação aos estímulos, a crítica teatral pode oferecer à análise política o vocabulário para o articulismo tratar dos efeitos da retórica política.

Nos arriscamos em afirmar que a crítica teatral desenvolveu-se na imprensa por constituir-se no intercambio intenso de posições, construindo uma genuína esfera pública. Livres de interferências das esferas do poder político e econômico, pôde o jornalismo quando tratava de teatro, esse tema aparentemente inofensivo, elaborar esse saber que depois retornaria para tratar de temas políticos.

Um trecho de Esaú e Jacó, que pela cronologia narrativa corresponderia ao momento exato da Proclamação da República e de sua legitimação pelo Congresso Nacional, ganha outros sentidos quando destacamos esse costume de usar o teatro para falar da política:

Enquanto os meses passam, faze de conta que estás no teatro, entre um ato e outro, conversando. Lá dentro preparam a cena, e os artistas mudam de roupa. Não vás lá; deixa que a dama, no camarim, ria com os seus amigos o que chorou cá fora com os espectadores. Quanto ao jardim que se está fazendo, não te exponhas a velo pelas costas; é pura lona velha sem pintura, porque só a parte do espectador é que tem verdes e flores. […] Falo por imagens; sabes que tudo aqui é verdade pura e sem choro [ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó, p. 115].

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Tiago de Castilho Soares é servidor público